Uma Noite de 12 Anos e a literatura de Rosencof
Agora que o filme uruguaio “Uma Noite de 12 Anos” (trailer abaixo), que retrata os anos de cativeiro de José “Pepe” Mujica, Eleuterio Fernández Huidobro (1942-2016) e Mauricio Rosencof, três integrantes da guerrilha tupamaros, durante os anos da ditadura uruguaia na década de 1970 e 1980, está disponível no Netflix, vale a pena chamar a atenção a outros aspectos da história.
No Brasil, onde os dois outros personagens são pouco conhecidos e o atrativo mais comum do filme é a história do ex-presidente Mujica, valeria a pena, numa segunda mirada, observar e prestar um pouco mais de atenção na trajetória de cada um dos outros dois que foram feitos prisioneiros com ele. Até porque, mostra que a tentativa de seus torturadores, que diziam que “já que não pudemos matá-los, vamos enlouquecê-los” não funcionou.
Foi todo o contrário. Fernández Huidobro, chamado de El Ñato (o que faz o gol imaginário no pátio do cativeiro) foi depois ministro da Defesa, de 2011 até sua morte, em 2016, e ajudou a organizar os tupamaros como partido político em tempos democráticos.
Mas queria chamar a atenção aqui para a obra de Mauricio Rosencof, 85, chamado de “El Ruso”, mas vivido no filme pelo filho de Ricardo Darín, o chamado “el Chino Darín”. Seria auspicioso se alguma editora brasileira se interessasse por alguns de seus 22 livros, que lhe deram reputação internacional.
É certo que a Record lançou por aqui o lindo “As Cartas que Não Chegaram”, que comento mais adiante. Mas seria muito oportuno que fosse lançada agora a nova edição, por exemplo, de “Memorias del Calabozo”, de 1989, reeditada no Uruguai (veja abaixo) e que foi a base para a construção do roteiro para o filme de Álvaro Brechner.
A história do nascimento do livro é insólita e angustiante como tudo o que os três passaram nos calabouços em que ficaram praticamente enterrados vivos. Como ali, a maneira que encontraram de se comunicar era uma reinvenção do código Morse. Em uma de suas conversas, El Ñato e Rosencof dizem um ao outro que, se um dos dois saísse vivo, contaria a história do que lhes passou. Pois ambos saíram vivos, e o escreveram juntos, com aportes de Pepe Mujica.
O livro é mais cerebral e intimista que o filme, Rosencof explora muito a luta para afastar a loucura, com a qual, em entrevistas recentes, com muito bom humor, diz que não sabe ainda se de todo conseguiu vencer. Mas o fato é que a literatura o salvou, assim como a política a seus dois companheiros. O livro conta os bastidores da prisão, mas o foco é o processo mental de como atravessaram esse longo e desumano cativeiro.
O que no filme são “flashbacks” de fatos reais ou lembranças e delírios, no livro são melhor explicados. Tanto que Rosencof sempre disse que temia que Mujica fosse aquele, entre os três, que teria chegado mais perto de enlouquecer. Rosencof viu o filme mais de uma vez, e por ser também ele roteirista, deu dicas no roteiro. Já Mujica viu apenas uma. E depois disse que não veria mais. Quando Rosencof perguntou por que, Mujica respondeu apenas que o filme o “fazia ver e lembrar de sua mãe novamente”, a mãe com quem manteve diálogos reais e outros imaginários durante os longos anos que passou isolado.
A obra de Rosencof está toda atravessada por sua história pessoal. Filho mais jovem de um casal de poloneses que escaparam do nazismo migrando para o Uruguai, teve uma infância de classe média baixa, e já na juventude se integrou aos tupamaros, chegando a ser seu dirigente. Foi preso em 1972 _a guerrilha iniciou suas atividades ainda durante o período democrático, e por isso até hoje ainda é também questionada_ só foi liberado no final da ditadura (1973-1985). Conta, em entrevistas, que logo que foi solto, partiu para a ação, mas já com outras armas. Uma, a escrita. Outra, o envolvimento na tarefa de transformar o que havia sido uma guerrilha urbana num partido político. Com isso, esteve no nascimento do que é hoje a Frente Ampla, coalizão de centro-esquerda que governa o país desde 2005.
Mas Rosencof, depois disso, se voltou apenas a escrever, e seus livros são verdadeiras jóias. “As Cartas que Não Chegaram”, apresentado a mim por minha amiga e grande leitora Francesca Angiolillo, é por um lado um resumo de sua vida, mas também uma busca interior por meio da literatura narrada de modo magistral.
Acompanhamos o pequeno Moishe, nome de infância do garoto Mauricio Rosencof, crescendo nessa família que foi a última de seu povoado polonês a partir antes de os nazistas varreram os judeus do local. Se salvaram por pouco. As “cartas” do título são aquelas que os pais esperavam a cada dia, observando a passagem do carteiro, com a esperança de que trouxessem notícias do que havia ocorrido com os parentes na Polônia, a maioria deles enviada a campos de concentração.
Em várias fases, o livro mostra primeiro Moishe escrevendo a seu pai cartas desde o cárcere que tampouco sabia se chegariam a ele, perguntando sobre sua juventude, sobre seu lugar de nascimento, sobre os parentes que ele conhecia apenas pelas fotos amareladas que a mãe guardava em caixas de papelão. Numa fase posterior, Moishe/Mauricio vai até a Polônia buscar parentes. Perambula pelas ruas de seu povoado, visita campos de concentração, numa angústia transformada em literatura. Com ele, viajam os fantasmas da infância, evocados sempre pela mãe por meio dos retratos e da memória de seu irmão mais velho, León, que veio com os pais da Polônia, mas morreu de meningite aos 16 anos, deixando-o infinitamente só. “Era ele quem me explicava as coisas do mundo”, conta.
Que o filme, agora disponível a mais gente e por uma nova plataforma, dispare o interesse pelo resgate literário do que aquela época provocou. A obra de Mauricio Rosencof é um exemplo de uma coleção que já podia estar entre nós.