Sylvia Colombo https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br Latinidades Tue, 30 Nov 2021 12:31:53 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Ditadura e oposição celebram ouro da Venezuela https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/08/01/ditadura-e-oposicao-celebram-ouro-da-venezuela/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/08/01/ditadura-e-oposicao-celebram-ouro-da-venezuela/#respond Sun, 01 Aug 2021 16:49:08 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/000_9j48lc-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3844 Não se sabe se o ditador Nicolás Maduro e a oposição, liderada por Juan Guaidó, de fato irão iniciar mais uma tentativa de diálogos por eleições livres na Venezuela. Esta novela, já reprisada e falida em momentos anteriores, continua incerta. A crise humanitária no país só se agrava em tempos de pandemia. E não parece haver perspectiva de um entendimento político por ora.

Mas, na manhã deste domingo (1), Maduro e Guaidó despertaram felizes e concordaram em algo, era necessário celebrar a vitória de Yulimar Rojas, em Tóquio, e, claro, tentar surfar na onda de sucesso da agora recordista mundial no salto triplo.

Maduro celebrou o “espírito combativo e de grandeza do povo venezuelano”, espelhado no exemplo da atleta. Já Guaidó exaltou sua “perseverança, esforço e confiança”. E completou: “Você une e alegra os venezuelanos”.

O sucesso de Yuli, como é conhecida na Venezuela, não é de hoje. Há anos ela vem disputando o reinado na modalidade com a colombiana Caterine Ibargüen. A imagem de ambas juntas em diversas premiações e elogiando-se mutuamente nos últimos anos mostra o quanto esses dois países estão vinculados, embora seus atuais governos venham hostilizando-se um ao outro.

Só que Rojas já não exalta tanto suas posições políticas ultimamente. É certo que já elogiou o ex-ditador Hugo Chávez (1954-2013) e tirou fotos com Maduro depois de vitórias. Mas também é correto que se deu conta de que não poderia chegar a um pódio olímpico se continuasse vivendo na Venezuela. Ali, segundo seu técnico da juventude, Jesus Velázquez, “ela não conseguia fazer três refeições por dia”.

Rojas vive em Guadalajara, na Espanha. Nascida em Caracas, passou a vida toda em Puerto de La Cruz, no estado de Anzoátegui, antes um rico pólo petrolífero do país, hoje uma cidade decadente marcada pela pobreza. “Minhas origens são das mais humildes, venho de uma família muito numerosa, seis irmãos, pai e mãe, e cresci numa casinha muito precária”, disse, em uma entrevista a um meio local.

Fã do personagem batman e de quadrinhos, a atleta de 25 anos é uma militante da causa LGBTI+. Apesar de estar longe de casa, visita a Venezuela com regularidade e vai a várias comunidades humildes, onde é recebida com fervor. Também é um sucesso nas redes com suas danças. Antes de cada prova, ensaia uns passos de vallenato ou reggaeton, para acalmar os nervos.

“Minha orientação, minha sexualidade sempre foram importantes para mim e para minha carreira. Desde que comecei no esporte, sempre tratei de lutar pelos direitos das mulheres e do coletivo LGBTI+”, disse a um jornal espanhol.

Com a menor delegação desde 1996, com apenas 43 atletas, os venezuelanos bateram um recorde de medalhas numa Olimpíada nesta edição. Já foram três de prata e uma de ouro.

Não sabemos se Rojas irá até a Venezuela mostrar sua medalha, nem se apertará as mãos de Maduro novamente, depois de fazer críticas ao regime pelo abandono dos centros esportivos do país e a falta de apoio ao esporte. Tampouco se tem alguma simpatia por Guaidó.

O certo é que os venezuelanos hoje, pelo menos, têm um dia de alegria em meio a uma situação tão trágica.

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Feministas venezuelanas sacodem redes sociais e pedem mudanças reais https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/05/22/feministas-venezuelanas-sacodem-redes-sociais-e-pedem-mudancas-reais/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/05/22/feministas-venezuelanas-sacodem-redes-sociais-e-pedem-mudancas-reais/#respond Sat, 22 May 2021 21:04:28 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/METOO-VENEZUELA_WEB-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3802 Com alguns anos de atraso, um movimento feminista organizado e robusto surgiu na Venezuela. Depois do #MeToo norte-americano, do #NiUnaMenos e tantos outros na América Latina. E, como toda organização que defende, em meio à ditadura de Nicolás Maduro, direitos civis e humanos, enfrenta imensas dificuldades.

Uma delas vem de parte da própria oposição ao regime. Há, entre os mais engajados, os que questionam como é possível que, ante a tamanha crise humanitária, fome, escassez de remédios e pandemia, as feministas agora queiram levantar a voz e pedir respeito a seus direitos como uma prioridade? Pois é, dá até preguiça de explicar. Mas, por fim, a união de várias delas tem falado mais alto, mostrando que, especialmente por conta da crise humanitária, lutar pelas causas de gênero é tão necessário como pedir eleições livres.

O movimento venezuelano se chama “YoTeCreo” e, ainda que tenha realizado alguns eventos presenciais, ganhou sua principal força nas redes sociais. Primeiro, porque estamos numa pandemia. Segundo, porque os abusos contra as mulheres venezuelanas agora ocorrem em vários países, desde que a diáspora começou. Hoje são quase 6 milhões de venezuelanos (ONU) que migraram, e muitos deles estão vivendo em países da região.

Em alguns casos, tanto predador como vítima são imigrantes, e o abuso ocorre fora da Venezuela. Como ocorreu com o escritor venezuelano Willy McKey, acusado de abuso por várias mulheres. Depois de admitir a veracidade das acusações contra ele, McKey acabou matando-se, saltando do nono andar de um prédio em Buenos Aires. O caso levantou polêmica dentro e fora da Venezuela, com acusações de seus amigos de que as mulheres o haviam levado a suicidar-se.

O “YoTeCreo” surgiu com força na Venezuela em 19 de abril, quando um grupo de mulheres começou a postar experiências de abusos sexuais por parte de amigos, familiares ou figuras públicas. Foi como uma avalanche, e logo as denúncias já eram milhares. As principais plataformas são o Instagram e o Twitter.

Assim como no trágico caso de McKey, há várias denúncias contra artistas, como o músico Alejandro Soto, da banda Los Colores, ou Tony Maestracci, da Tomates Fritos. A maioria dos casos, porém, indica abusos vindos de distintos lados, e centenas apontam a companheiros, familiares ou amigos próximos. 

Há líderes do movimento em Caracas e na Cidade do México que agora enfrentam o desafio. Deixar que as redes sejam o tribunal das denúncias? Não parece ser uma boa ideia. E o caso de McKey é exemplar. Se em vez de ser torpedeado pela internet, fosse levado à Justiça, não estaria morto, mas pagando por seus crimes como se deve, enfrentando um tribunal e, eventualmente, sendo condenado.

O dilema é, a que instituição levar as denúncias? As feministas do “YoTeCreo” baseadas em Caracas têm visões contraditórias. Há as que acreditam que vale levar os casos para a Justiça do regime chavista, mesmo sabendo de sua inoperância, da falta de credibilidade desta instituição e do fato de que muitas delegacias tratam mal as mulheres e menosprezam casos de violência de gênero. Outras, creem que os casos devem ser ecoados na internet apenas, exercendo pressão pelo “cancelamento” do agressor.

A atriz Grecia Augusta Rodríguez, por exemplo, levou uma acusação ao Ministério Público, e instou, vias redes sociais, que as demais façam o mesmo e que pressionem as autoridades. Há as que creem que é a estratégia correta, outras que já não creem na possibilidade de ter uma resposta de um Estado falido, que sequer tem dado atenção ao colapso sanitário do país ante a pandemia do coronavírus.

Das próprias redes, surgiram outras propostas. Por exemplo, um grupo de venezuelanas que está no México vem recopilando casos, por ora locais, ocorridos com vítimas venezuelanas, para levar a autoridades mexicanas, e estimulando que isso também seja feito nos outros países em que as venezuelanas estejam. É um paliativo, não resolve a questão de gênero na Venezuela, mas começa a mover as peças do jogo e a dar força a essas vozes.

Levantamentos de ONGs locais venezuelanas dão conta de que de cada 10 delitos contra mulheres denunciados às autoridades, nove ficam impunes. Desde 2015, o regime deixou de publicar cifras oficiais sobre a violência contra a mulher no país. Segundo ONGs, em 2019, houve 167 feminicídios. Em 2020, 256. O salto entre um ano e outro é de mais de 50%, e mostra como as medidas de quarentena incrementaram os casos de violência doméstica.

Entre as agressões contra as mulheres venezuelanas estão, também, a falta de acesso à saúde e ao acompanhamento da gravidez. Uma legislação sobre o aborto sequer é pauta de debate na nova Assembleia Nacional, controlada pelo chavismo.

A oposição à ditadura abraça as causas feministas. Porém, se mal tem conseguido jogar nesse campo inclinado com a ditadura pela realização de eleições livres, os opositores acabam deixando as causas de gênero num perigoso limbo, onde as mulheres continuam sendo vítimas de mais abusos.

As mulheres se cansaram, e a hashtag #YoTeCreo está no ar. As mulheres estão saindo da letargia causada pela grave crise do país e organizando-se em torno de suas bandeiras. Porque, ainda que outros digam que não são a prioridade neste momento, elas sabem que sim, o são.

 

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‘Populista!’ foge de generalizações comuns da América Latina https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/01/20/populista-foge-de-generalizacoes-comuns-da-america-latina/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/01/20/populista-foge-de-generalizacoes-comuns-da-america-latina/#respond Wed, 20 Jan 2021 14:57:54 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/15666809655d61a785605e9_1566680965_3x2_md-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3722 O jornalista britânico Will Grant, que passou os últimos 20 anos viajando pela América Latina como correspondente da BBC, acaba de lançar “Populista! – The Rise of Latin America´s Twenty-First Century Strongman” (“Populista! A ascensão do homem-forte do século 21 na América Latina”, importado, ed. Head of Zeus). Trata-se de uma reunião de perfis alentados de cinco ex-líderes latino-americanos e um atualmente no poder: o boliviano Evo Morales, o equatoriano Rafael Correa, o venezuelano Hugo Chávez, o brasileiro Lula e o nicaraguense Daniel Ortega. Além do ditador cubano Fidel Castro (1926-2016), que surge como aquele que teria aberto o caminho aos demais.

A amarração de todos eles é respeitosa com relação às diferenças históricas, conjunturais e pessoais de cada um, e não cai nas generalizações que usualmente são feitas em relação à América Latina por parte de observadores vindos do mundo anglo-saxão. Grant trabalha com o questionável rótulo de “onda rosa” (pink tide), fenômeno político que ele localiza entre a chegada de Chávez ao poder, em 1999, e a morte de Fidel Castro em 2016. Porém, o faz de forma crítica e responsável.

Entre os pontos em comum dos líderes perfilados, Grant lista que foram, por um tempo, imbatíveis nas eleições, e, para ganhá-las, se apresentaram como sendo “um dos seus” à população humilde, trabalhadora, indígena ou mulata. Merecem crédito por terem aberto espaços políticos para que estes setores da sociedade pudessem ter voz, algo que não ocorria antes. Colocaram, ainda, os pobres no topo da agenda de prioridades e lutaram para valorizar a identidade indígena.

Mostra que a maioria deles governou como se estivesse numa campanha eleitoral constante. Evo Morales com suas tours em jet privado por todo o país, o chavismo promovendo eleições quase que a cada ano, Correa com suas viagens pelo país e os intermináveis pronunciamentos no fim-de-semana.

Para explicar seu apelo junto ao eleitorado, Grant afirma que este se deve, principalmente, ao fato de que os governos anteriores, tanto ditaduras militares como democracias pouco inclusivas, “simplesmente não tinham funcionado para grande parte da população de seus países”.

Porém, quinze anos depois, tudo havia terminado, e mal, para quase todos. Chávez morreu, e seu país se aprofundou na ditadura que é hoje, Correa foi condenado e está refugiado no exterior, Lula passou um tempo preso e Evo foi pressionado a renunciar. Apenas Ortega continua no poder, embora em uma Nicarágua em grave deterioração econômica, social e sanitária.

Depois de suas saídas, milhões de pobres ficaram perdidos, e nas mãos daqueles que fizeram oposição a esses governos. Pelo menos por um tempo _no caso da Bolívia, o MAS conseguiu voltar ao poder, agora sem Morales.

Os pontos negativos desses líderes, para o autor do livro, foi terem se desviado de sua intenção original, que ele crê que era boa e honesta no começo. Esta era a de construir, de fato, uma transformação social e econômica profunda em seus países. Porém, ao crer que “arrumariam” seus problemas estruturais e históricos, acabaram caindo na armadilha do egoísmo, da vaidade, e começaram a acreditar que só eles podiam cumprir essa tarefa. Portanto, passaram a querer eternizar-se no poder, manipulando ou mudando Constituições.

Seu crescente autoritarismo teria levado ao enfraquecimento das instituições e ao aumento da faixa de opositores a seus regimes. A chave para entender como seus governos terminaram, considera Grant, é avaliar como foi sua relação com opositores. Quanto mais dura e repressora, pior a resposta. Isso teria sido o pano de fundo dos processos que surgiram para minar esses governos. Algo que ainda não se vê ocorrer na Venezuela, porém.

São muito interessantes os retratos de cada personagem (que Grant chama de “shakespeareanos” e “coloridos”), com bastante informação histórica e pessoal _Grant entrevistou a quase todos_ e dando voz a pessoas com as quais teve contato em cada país. Dá instrumentos que permitem que o leitor concorde ou refute as colocações que o autor faz no prefácio e no epílogo de posse de muitos argumentos e boa informação.

Curioso e intrigante é que o caso argentino não tenha sido incluído, quando o peronismo é parte do cânone dos populismos latino-americanos. E, na época da chamada “onda rosa”, tinha seu equivalente no poder na Argentina, encarnados no casal Néstor e Cristina Kirchner.

A capa do livro é bastante provocativa, porque traz imagens de Chávez e de Bolsonaro. O presidente do Brasil, porém, não é um dos perfilados. Em uma das entrevistas que concedeu, Grant explica que a opção teve como objetivo chamar a atenção para o fato de que o populismo não é nem de direita nem de esquerda.

É uma leitura agradável e super-recomendada aos interessados em entender a América Latina.

 

 

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América Latina em 2021, o que vem por aí? https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/01/05/america-latina-em-2021-o-que-vem-por-ai/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/01/05/america-latina-em-2021-o-que-vem-por-ai/#respond Tue, 05 Jan 2021 23:58:45 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/pleb2-320x213.png https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3714 Se 2020 foi um ano difícil para a América Latina, 2021 não parece que será muito melhor. Economias que já vinham desacelerando iniciam o o ano com quedas de PIB acentuadas por conta da pandemia. Na área da saúde, as novas ondas ou mutações do coronavírus parecem estar chegando muito mais rápido do que as vacinas. E, no meio de toda essa tempestade, vários países vão trocar de comando ou renovar parlamentos. Com isso, veremos candidatos fazendo promessas de campanha que dificilmente poderão cumprir e governantes tendo de realizar ajustes pouco populares que, deste modo, devem colocar mais lenha na fogueira das tensões sociais.

Más notícias já começaram nesta terça-feira (5), com a posse da nova Assembleia Nacional venezuelana, eleita em um pleito marcado por irregularidades e pelo boicote dos principais partidos. Assim sendo, o parlamento, último bastião de uma bastante imperfeita oposição, acaba de cair. O chavismo, agora, toma conta do Executivo, do Judiciário e do Legislativo de um país em grave crise humanitária, sem liberdade de expressão e com centenas de presos políticos. Para quem tinha dúvidas sobre o caráter ditatorial do regime, o discurso de Jorge Rodríguez prometendo perseguir Juan Guaidó e seus seguidores ajuda a dissipá-las.

O Chile vive um ano de transformações e sonhos, e espera-se que estes não se frustrem. Um calendário eleitoral atolado de votações, porém, pode atrapalhar um pouco. Em 11 de abril, os chilenos voltam às urnas para escolher os 155 integrantes da Assembleia Constituinte. O voto dos chilenos, em outubro último, no plebiscito que decidiu pela redação de uma nova Carta, foi nitidamente contra a classe política hoje no poder. Se isso sugere uma renovação, é uma excelente notícia. Mas é uma pena que a eleição para essa assembleia vá ser atropelada por uma campanha presidencial que já começou _o Chile escolhe o sucessor de Sebastián Piñera em 21 de novembro. Se o ano anterior foi de protestos constantes e nervosos, este será de escolhas, num país em que o debate está muito polarizado. O que parece certo é que o chamado “modelo chileno” deve terminar de se desmontar. O que viria no lugar dele?

As pesquisas indicam que o mal-estar contra a política tradicional, já sugerido no plebiscito, continuará. Prova disso é que quem lidera as pesquisas, o prefeito comunista de Recoleta, Daniel Jadue, tem apenas 18% das intenções de voto. E, em segundo lugar, está o direitista Joaquín Lavín, com 11%. Em terceiro lugar, o ex-chanceler de Bachelet, Heraldo Muñoz, com 3%. Ou seja, a maioria dos eleitores ainda está indeciso, ou não quer votar, o que deixa o cenário bastante aberto. A atual popularidade de Piñera também não entusiasma mais ninguém: 16%.

 

A primeira eleição presidencial do ano ocorre em pouco mais de um mês. Trata-se da escolha do sucessor de Lenín Moreno no Equador, em 7 de fevereiro. Depois de um ano de revoltas e em que a cisão da sociedade ficou clara, veio o ano da peste. Foi da cidade litorânea de Guayaquil que vieram talvez as mais terríveis imagens da chegada do coronavírus na região. Hospitais e cemitérios lotados, corpos abandonados nas ruas, enterros coletivos sem identificação dos cadáveres.

O governo de Lenín Moreno, que tão logo começou, em 2017, já se opôs a seu padrinho, Rafael Correa, foi marcado especialmente por esses dois eventos: as manifestações indígenas de 2019 contra o ajuste no combustível e o modo como o país foi golpeado pela pandemia. Todo o demais acabou ficando pequeno. Moreno, mesmo, não buscou nem sugeriu concorrer à reeleição. O governo sequer terá um candidato próprio na contenda.

Mas Rafael Correa, que se sente injustiçado e está condenado a 8 anos de cadeia por corrupção, não desistiu de nada. Primeiro, insinuou candidatar-se a vice de Andrés Arauz, repetindo a fórmula de Cristina Kirchner com Alberto Fernández, mas não deu certo. O fato de estar sentenciado e foragido _vive na Bélgica_ impediu que se candidatasse. Mas seu novo apadrinhado, participará e, se ganhar, terá o mesmo dilema de Moreno, ou ser um fantoche nas mãos de Correa ou também romper as relações com ele.

Arauz concorre com outros 15 candidatos, embora vários com indicação de uma votação inexpressiva. Quem lidera é o candidato de Correa, com 24% das intenções de voto. Em segundo e em terceiro, ressurgem dois veteranos da política equatoriana de poder regional e setorizado, o empresário Alvaro Noboa, com 17%, e o banqueiro Guillermo Lasso, com 12%. Arauz é de Quito, os últimos dois, de Guayaquil, coração financeiro do país. Assim como no Chile, os que não sabem em quem votar ou simplesmente não querem votar são mais de 50%. A rejeição ao modelo político tradicional também se nota no Equador.

Já os peruanos deveriam estar aliviados com a chegada das eleições, em abril, quando finalmente poderiam colocar fim a um mandato em que deu quase tudo errado. Houve três presidentes e dois Congressos, que se sabotaram o tempo todo entre si. Porém, não é bem assim. A apatia e a falta de envolvimento com as possíveis candidaturas também se nota no país andino.

A liderança nas pesquisas é do ex-goleiro do popular time Alianza e atual prefeito do município de La Victoria, George Forsyth, com uma cifra também magra, 18% das intenções de voto. Em segundo, está Julio Guzmán, do partido Morado, que cresceu muito nos últimos tempos. Na eleição mais recente, Guzmán vinha liderando, até que sua candidatura foi impugnada por uma questão técnica que foi bastante contestada. Porém, ele pertence ao partido Morado, do atual presidente interino do país, Francisco Sagasti, o que poderia ajudar a dar um impulso à sua candidatura.

Atrás de Guzmán, está a esquerdista Verónika Mendoza, com 6,5%, que foi uma das responsáveis por desempatar a eleição de 2016, em que o centro-direitista Pedro Pablo Kuczynski venceu por muito pouco a direitista Keiko Fujimori. No último momento, Mendoza anunciou o apoio da esquerda ao candidato, com quem admitia publicamente ter muitas diferenças, apenas para impedir a volta do fujimorismo ao poder. Agora, Mendoza planejava voar mais alto, mas com essa intenção de voto, pode não ser uma candidata competitiva. De todo modo, os números do Peru também mostram que um setor grande do eleitorado tampouco está decidido ou animado a votar. Assim como no Chile e no Equador.

Também haverá “eleição” na Nicarágua, e deixo entre aspas porque a ditadura já inviabilizou legalmente a participação da oposição, o que deve fazer com que seja fácil que tanto Ortega como sua mulher, Rosario Murillo, assim que decidirem quem concorrerá, vença o pleito. Murillo é uma figura-chave do regime hoje. Além de vice-presidente, é a figura mais ativa e a voz mais ouvida do governo, enquanto Ortega tem passado vários meses desaparecido, surgindo apenas de vez em quando.

Outro país centro-americano cheio de problemas irá às urnas neste ano, trata-se de Honduras, que, além da crise econômica e da pandemia, lida com o impacto de furacões e dos enfrentamentos entre grandes empresas mineradoras e líderes ambientalistas, embate que já levou à morte muito destes.

Há, ainda, duas eleições legislativas importantes. Na Argentina, onde vários economistas preveem que virá uma crise como a de 2001 e no México, onde a gestão de López Obrador será julgada nas urnas. O mexicano elegeu-se em 2018 prometendo uma renovação pela esquerda, mas tem se mostrado cada vez mais um populista conservador que, ainda por cima, não vem lidando nada bem com a pandemia.

 

O que certamente está garantido é que não faltarão notícias na região.

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Oposição venezuelana cai na mesma armadilha pela segunda vez https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/08/02/oposicao-venezuelana-cai-na-mesma-armadilha-pela-segunda-vez/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/08/02/oposicao-venezuelana-cai-na-mesma-armadilha-pela-segunda-vez/#respond Sun, 02 Aug 2020 22:39:47 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/271194-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3623 Neste domingo (2), a oposição venezuelana ao chavismo caiu na mesma armadilha de 2005. Ao não encontrar uma estratégia eficiente para enfrentar a ditadura de Nicolás Maduro, decidiu que boicotará as eleições legislativas marcadas para o próximo dia 6 de dezembro. Assim, abre espaço para a possibilidade de que o regime continue no poder por tempo indeterminado, mesmo com a grave crise econômica e humanitária pela qual passa o país e com o nível baixíssimo de popularidade de Maduro (13%, segundo o Datanálisis).

A decisão dos 27 partidos, incluindo os mais importantes da oposição (Ação Democrática, Copei, Voluntad Popular e Primero Justicia), foi anunciada em um comunicado. Nele, as agrupações enumeram as razões, todas elas legítimas, para não participar do pleito. Entre elas: a formação inconstitucional no novo Conselho Nacional Eleitoral (CNE), a inabilitação de atores políticos importantes, a intervenção no diretório dos partidos, a falta de convocação de observadores internacionais qualificados, a existência de presos políticos e o histórico recente de fraudes nas últimas eleições presidenciais e regionais.

Mas, se os motivos são justos, por que boicotar não é a melhor saída? Porque, como bem disse o analista político Luis Vicente León em entrevista à Folha, deixar de participar tirará desse grupo a única coisa que possui, que é a legitimidade dos cargos que conquistaram em 2015, na última eleição venezuelana de fato reconhecida como legal pela comunidade internacional. E “se quando tinham os cargos os parlamentares opositores não conseguiram seus objetivos, não será como poder alternativo, que sequer tem a ratificação do voto popular, que irão conseguir.”

Participar da eleição como se fosse uma partida de futebol com o campo inclinado a favor da ditadura tampouco é uma boa opção. Mas esta estratégia já foi tentada, em 2005, e mostrou-se um colossal erro. Nas eleições legislativas daquele ano, os principais partidos de oposição, por razões parecidas, também decidiram-se pelo boicote. O resultado foi terem demorado 10 anos para voltar a ter voz política no parlamento. E, com isso, deram uma década inteira ao chavismo para que centralizasse ainda mais o poder.

Em 2005, a coalizão chavista ficou com 90% da Assembleia Nacional. O resto do parlamento ficou com partidos pequenos e desimportantes. Chávez, na época, chegou a decretar a morte da oposição: “esses partidos (referindo-se aos que se abstiveram de participar) já cumpriram sua parte e creio que chegou a hora de sua morte. De suas cinzas surgirão novos líderes e grupos de oposição”. Com a frase, referia-se, ao falar de uma “nova oposição”, à parte desta que foi literalmente comprada por subornos, ou que recebeu favores indevidos, apenas para fingir que a Venezuela era uma democracia. Mais ou menos o que Maduro está fazendo hoje com dissidentes como Luis Parra, ex-integrante do partido Primero Justicia, e que vem se prestando ao papel de fantoche como “líder da AN” aos olhos do regime.

É compreensível que a oposição não veja um cenário ideal e competitivo na eleição de dezembro. Não há mesmo, a Venezuela é uma ditadura. Porém, dividir-se e sair fora do cenário eleitoral não parece ser a melhor estratégia. Talvez seja o momento de unir-se novamente num novo projeto, como já se tentou antes, com a formação da MUD (Mesa de la Unidad Democrática), em 2008, ou com o referendo de julho de 2017, ou mesmo com a autoproclamação de Juan Guaidó, em 2019. Quando apresentados a uma proposta nova e entusiasmante, os venezuelanos respondem em apoio, saem às ruas. As três iniciativas citadas falharam, é certo, mas foram tentativas que unificaram as forças da oposição e propuseram algo interessante, uma saída para a situação do país.

Agora não é o momento de ausentar-se, mas sim o de dar um novo passo e de articular as forças e atores políticos de modo diferente, com uma nova estratégia. Senão, o regime ditatorial venezuelano, mesmo que frágil das pernas, terá espaço para continuar causando estrago no país e expulsando dele milhões de cidadãos venezuelanos.

 

 

 

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Coronavírus na Venezuela é ameaça à região, diz deputado https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/03/19/coronavirus-na-venezuela-e-ameaca-a-regiao-diz-deputado/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/03/19/coronavirus-na-venezuela-e-ameaca-a-regiao-diz-deputado/#respond Thu, 19 Mar 2020 16:42:22 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/resultados-de-las-primarias-en-el-zulia-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3528 O vice-presidente da Assembleia Nacional, e um dos nomes em ascensão na oposição venezuelana, Juan Pablo Guanipa, 55, conversou com a Folha sobre a situação de seu Estado, Zulia, no meio da crise do coronavírus. A pandemia veio apenas acrescentar mais um elemento a uma localidade que vem sofrendo apagões, falta de água e de subsídios desde que a crise venezuelana passou a se agravar, em 2019.

Guanipa (55) tem sido a cara mais visível na Assembleia Nacional, de maioria opositora, desde que Juan Guaidó passou a ser alvo de ataques, pessoais e a seus familiares, e tem tido de se resguardar. Foi Guanipa quem representou a Venezuela, por exemplo, na posse de Luis Lacalle Pou, no Uruguai, tendo que fazer boa parte do caminho por terra e cruzando fronteiras de modo não convencional até chegar ao sul do continente.

Desde Maracaibo, onde vive, Guanipa contou que o coronavírus vem atacar a Venezuela em seu pior momento. “Temos 1o0 camas de terapia intensiva operantes em todo o país, e não mais que 36 respiradores”. E que políticas de conscientização da população são difíceis de convencer os venezuelanos, especialmente aqueles que estão fora de Caracas, cidade mais equipada que as demais capitais. “Aqui em Maracaibo as pessoas acordam com o café da manhã que conseguiram garantir na noite anterior, depois saem para a rua para conseguir o almoço, e depois, o jantar. Tudo é informal. Como dizer a essas pessoas que o isolamento é necessário?”, diz à Folha, por telefone.

Guanipa diz que a Assembleia Nacional comemorou o fato de o FMI (fundo monetário internacional) não ter concedido recursos ao ditador Nicolás Maduro. “Todo dinheiro que Maduro arrecada vai para as forças de segurança. A própria resposta que ele está dando ao coronavírus é a de colocar mais forças de segurança na rua, não a de equipar os hospitais”, avisa. Com isso, conta que é frequente ver, em Maracaibo, que os oficiais estacionam seus veículos em praças e lugares públicos para vender gasolina. “Os próprios oficiais sugam o combustível com a boca e enchem barris, que vendem a um preço exorbitante à população, que compra, é o único comércio que se vê aqui”. Além disso Guanipa, defende que todos os médicos e enfermeiros sejam convocados pela emergência do coronavírus. “Hoje nem tem como eles sairem de casa, com ruas vigiadas, extorsão praticada pelos oficiais e falta de equipamentos nos hospitais. A Venezuela vai ser o grande problema da América Latina por conta do coronavírus. Pode ser controlado nos outros países, mas daqui, pode se espalhar de volta”, avisa.

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Ícone arquitetônico reabre para alimentar ditadura na Venezuela https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/01/22/icone-arquitetonico-reabre-para-alimentar-ditadura-na-venezuela/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/01/22/icone-arquitetonico-reabre-para-alimentar-ditadura-na-venezuela/#respond Wed, 22 Jan 2020 16:34:56 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/1-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3492 Quem visita Caracas nos últimos tempos e levanta os olhos para admirar El Ávila, a imponente montanha que se sobressai entre a cordilheira do litoral, fica intrigado com a torre que vê ali, e que por muitos anos esteve fechada ao público.

Trata-se do Humboldt, um hotel e cassino inaugurado em 1956, dentro de um projeto que buscava expôr ao mundo o sucesso econômico da Venezuela e sua abundância então gerada pelo petróleo. Eram os tempos do ditador Marcos Pérez Jiménez e do início da construção das grandes obras arquitetônicas na cidade. A 2.140 metros acima do mar, e com 60m de altura, o Humboldt tem 19 andares e 70 suítes de luxo. Uma torre com restaurante e bar com vista de 360 graus, além de piscina coberta, cassino e um teleférico. Dali, se vê tanto a cidade quanto o mar caribe.

O edifício ficou fechado por muitos anos, depois que, ainda no início da gestão de Hugo Chávez (1999-2013), todas as casas de apostas do país ficaram proibidas.

Nos últimos tempos, porém, notei que a imponente torre estava iluminada quase todas as noites, mesmo quando Caracas vivia  apagões. Logo descobri que o hotel tinha voltado a ser usado, mas desta vez apenas pelos militares e por “boliburgueses” (os empresários ligados ao governo), para festas privadas. Mil lendas urbanas corriam, então, sobre o que ocorria ali, que havia bebidas importadas, prostitutas, jogo ilícito. A única coisa que era certa era que se aproximar dali era impossível. O acesso estava bloqueado pelo Exército.

Enquanto isso, foi divulgado que uma restauração havia sido iniciada, com a intenção de devolver o brilho do local assim como ele era nos anos 1950/60. Curioso como num país que vive uma crise humanitária tão terrível e que já obrigou mais de 4 milhões de venezuelanos a migrarem, o regime passou a se preocupar em gastar tanto para recuperar o velho hotel-cassino _o valor não foi divulgado, é claro, mas imagine, uma torre dessa dimensão e com esse luxo, no alto de um pico a mais de 2 mil metros acima do nível do mar…

Cartão-postal com o Humboldt e o teleférico, nos anos 1950 (Reprodução)

Nos últimos dias, o ditador Nicolás Maduro fez o anúncio oficial. O Humboldt irá reabrir ao público, e seu cassino estará disponível para jogos agora “legais”. Porém, seus lucros serão direcionados ao regime. Será possível apostar em petro (a criptomoeda venezuelana) ou em outras moedas estrangeiras. Nunca em bolívares, obviamente, a moeda oficial cuja inflação devora ferozmente a cada dia.

Também haverá visitas guiadas e será possível se hospedar em seus quartos de luxo, porém, igualmente pagando nessas moedas e com o lucro voltado a manter o falido Estado.

É claro que se trata de uma boa notícia para a arquitetura venezuelana, e para a beleza algo perdida da bela Caracas.

Por outro lado, não há como esconder a imensa crueldade desse empreendimento. Enquanto milhares passam fome e hospitais não têm recursos, gasta-se uma fortuna para restaurar essa imponente torre na cordilheira. Ali, por um preço altíssimo, hóspedes, que darão dinheiro à ditadura, poderão contemplar o lindo mar caribe, mas também a capital que agoniza a olhos nus abaixo do Ávila. Se isso os incomodar muito, poderão ir ao bar ou ao restaurante e apreciar comidas que os venezuelanos comuns não possuem, além de embriagar-se com drinks feitos com elementos contrabandeados. 

Triste epílogo para o Humboldt. Pelo menos por enquanto. Tomara que um dia ele volte a ser um patrimônio acessível a todos os caraquenhos.

 

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José Balza, um venezuelano inquieto https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/09/23/jose-balza-um-venezuelano-inquieto/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/09/23/jose-balza-um-venezuelano-inquieto/#respond Mon, 23 Sep 2019 21:09:49 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/balza-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3403 O escritor venezuelano José Balza, às vésperas de completar 80 anos, recebeu uma merecida homenagem na Espanha, nesta semana. Na ocasião, aproveitou para fazer uma doação à história, depositando um pacote fechado na Caja de las Letras do Instituto Cervantes, que só poderá ser aberta dentro de 40 anos. A instituição guarda outros acervos do gênero, e Balza disse que, no seu caso, o que contém sua caixa será “uma homenagem a quem nela está incluído ou mencionado”.

Enquanto o mistério fica no ar, resta celebrar essa voz literária que é pouco conhecida, mas integrou o chamado “boom latino-americano” dos anos 1970 com grande versatilidade: ficção, ensaio e incríveis aforismos literários. Como estes: “Por isso é fácil, ao ler romances, saber onde estamos”, ou “Uma notícia pode ser um conto, mas este nunca pode ser somente notícia”. Estes últimos estão contidos em “Ensayos de Humo”, lançado pela editorial Equinoccio, de Caracas.

Balza nasceu e cresceu no Delta do Orinoco. Quando conta como começou a escrever, já é de um modo poético. Diz que, em San Rafael de Manamo, o povoado em que vivia, havia apenas cinco casas, estavam rodeados pela floresta e pelas águas. Ali perto, uma tribo da etnia warao. Balza criança achava que os animais e as plantas eram como os seres humanos, e apenas aprendeu quais eram as distinções, já queria escrever sobre elas e sobre o mundo que o rodeava. Assim começou sua carreira, sempre marcada por esse tom contemplativo.

“Fui criado com frangos, porcos e outros tipos de animais. Achava que era irmão deles, que éramos uma família. Aos cinco ou seis anos, aprendi que éramos diferentes, e que eu era diferente também das árvores. Comecei a escrever para poder me diferenciar das árvores”, escreveu certa vez.

 

Mais tarde, foi viver em Caracas, para estudar na Universidade Central da Venezuela, a principal do país. Desde então, publicou cerca de 50 livros. Seu romance mais conhecido é “Percusión” (1982). Nos ensaios, analisa de tudo, a literatura de ontem e hoje, os críticos de literatura, ópera e artes plásticas. É autor também de reflexões sobre a arte cinética, tão presente na Venezuela.

 

 

Em suas entrevistas recentes, é difícil que a política e a crise do país seja o principal assunto. Suas preocupações estão de fato relacionadas à arte. Mas ele não se cala. Em entrevista recente ao “El País”, afirmou: “Não entendo por que demônios esta gente, desde Chávez até hoje, se empenhou tanto em destruir o país. Não podemos pensar que se trata de uma disputa ideológica. Não se trata de comunismo contra capitalismo, o que há na Venezuela hoje é apenas perversão humana, é a ideia de causar dano aos demais, e os mais destruídos são os pobres.”

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Um ano da prisão de Requesens, outro abuso da ditadura de Maduro https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/08/07/um-ano-da-prisao-de-requesens-outro-abuso-da-ditadura-de-maduro/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/08/07/um-ano-da-prisao-de-requesens-outro-abuso-da-ditadura-de-maduro/#respond Wed, 07 Aug 2019 20:23:13 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/download-225x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3386 Sabrina e Adriano, os dois filhos pequenos de Juan Requesens, 30, pensam que o pai está numa “missão especial”. Foi o único argumento encontrado pelos familiares para confortar as crianças, que de repente se viram, em casa, com uma nova situação: o vazio da ausência desse pai jovem, barbudo, falante e carinhoso.

Nascido em Caracas, Requesens é deputado pela Assembleia Nacional, pelo partido opositor Primero Justicia (do veterano Henrique Capriles), e representa Táchira, um dos Estados mais afetados pela repressão da ditadura venezuelana contra seus opositores nos últimos anos.

Junto a Stálin González, Juan Guaidó, Miguel Pizarro e outros, Requesens integra a chamada “Geração de 2007”, um grupo de jovens politizados anti-chavistas que logo entrariam de fato na política, com vontade de mudar o rumo da Venezuela.

Nesta quarta-feira (7), houve um ato em Caracas, convocado pelo presidente encarregado, Juan Guaidó, para homenagear Requesens e pedir sua libertação. A razão? O deputado está preso há um ano, sem acusação formal e sem ter iniciado um julgamento contra ele. Nesse período, tem sido vítima de torturas físicas e psicológicas.

Juan Requesens inflamado durante um discurso (Foto captura de tela)

As causas contra Requesens são muitas, porém delirantes. Tanto não há evidência que o julgamento sequer tem início. E o deputado, conhecido por seus inflamados discursos nas ruas e no parlamento, espera numa cela do temido presídio do Helicóide.

Entre os crimes pelos quais querem que responda estão: “instigação pública continuada”, “tentativa de homicídio contra Nicolás Maduro” (no episódio dos drones), “associação para delinquir”, “financiamento ao terrorismo” e, para finalizar, “traição à pátria”.

Embora ele, seus colegas de parlamento e sua família saibam que se trata de um julgamento político, sua defesa tenta construir uma causa de abuso de poder para que seja liberado o mais rápido possível. Seu advogado, Joel García, aponta várias irregularidades em sua prisão. São elas: violação de seu foro como parlamentar, invasão de sua casa para sequestrá-lo sem ordem de busca e captura (foi realizada por agentes do Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional), o prisioneiro foi mantido sem comunicação por mais de 72 horas e manifestou ter sido torturado.

Imagens de Requesens mais magro e machucado (foto divulgada pelo governo)

Além disso, Requesens ainda não foi acusado formalmente, o que implicaria na necessidade de libertá-lo depois de 72 horas, tempo já escandalosamente excedido. A arbitrariedade é clara, e assim, Requesens passou a integrar a cifra de 550 presos políticos (segundo a ONG Foro Penal).

À família, Requesens tem enviado palavras de coragem. “O pior não é estar preso, mas sim que a Venezuela esteja sequestrada”, segundo relatou sua mulher ao site Efecto Cocuyo. Seus parentes também contam que, nas poucas visitas que podem fazer, o encontram com sinais de tortura no corpo, e algumas vezes desorientado como quem sofreu também tortura psicológica.

O ministro da comunicação e um dos homens-fortes do regime, Jorge Rodríguez, divulgou um vídeo em que um alterado Requesens, com aspecto de quem estava sob forte pressão, admitia ter ajudado no atentado contra Maduro.

Segundo o advogado Joel García, o vídeo também mostra irregularidades em sua produção, pois não há a presença de membros da Procuradoria nem de um representante legal de Requesens.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos já emitiu solicitação ao governo venezuelano para que “se adotem medidas necessárias para proteger os direitos à saúde, à vida e à integridade pessoal do deputado”. Até agora, de nada adiantou.

Em seus discursos, Guaidó se refere a Requesens como a um irmão e um colega de luta, e não deixa de lembra-lo na maioria dos atos. Cada dia que passa é um dia mais de abuso aos direitos humanos deste deputado e dos outros 550 presos políticos do regime ditatorial de Maduro. Nos últimos tempos, as vítimas dessas prisões arbitrárias têm sido, justamente, as pessoas mais próximas a Guaidó, numa tentativa de “quebrar” o ânimo do líder opositor. Em entrevista recente à Folha, Guaidó disse: “Quem está no meu entorno já sabe que é um alvo e tem de se preparar. Ninguém está com medo. Requesens é quase um irmão para mim e está demonstrando o espírito de nossa luta”, afirmou.

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Morre Carlos Cruz-Diez, o mestre das cores venezuelano https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/07/28/morre-carlos-cruz-diez-o-mestre-da-cores-venezuelano/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/07/28/morre-carlos-cruz-diez-o-mestre-da-cores-venezuelano/#respond Sun, 28 Jul 2019 16:59:19 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2019/07/cruz-diez-320x213.png https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3379 Quem chega pela primeira vez ao aeroporto de Maiquetía, na Venezuela, se defronta com mais uma beleza, além do azul esverdeado do mar Caribe: o tapete de cores que o maestro da arte cinética venezuelano Carlos Cruz-Diez produziu para o edifício. Nestes duros tempos que vive o país, é de se lamentar que sua obra não tenha tido como seguir se desenvolvendo e prosperando em Caracas, onde nasceu. Por sorte, nela deixou várias obras, que fazem com que o visitante e o venezuelano, cansados de encarar tanta miséria e destruição, possam de vez em quando topar com a beleza de sua arte. O presidente encarregado do país, Juan Guaidó, despediu-se neste domingo (28) dessa forma do artista veterano venezuelano: “Descansa em paz, maestro Carlos Cruz-Diez. Sua obra atravessou fronteiras e nos encheu de orgulho como venezuelanos. Logo, as cores que deixou no aeroporto de Maiquetía verão regressar milhões”.

Cruz-Diez, conhecido como um dos mestres da arte cinética, morreu aos 95 no último sábado (27), em Paris, onde estava radicado havia muitos anos. Nascido em Caracas, tem sua obra espalhada por museus do mundo, como o MoMa, de Nova York, a Tate Modern, de Londres e outros.

Em 2012, entrevistei-o durante uma breve passagem por Buenos Aires, onde ele exibia suas obras no Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires. Apesar de tantos anos vivendo na Europa, lembro de seu modo alegre e caribenho de cumprimentar uma desconhecida, de falar com saudades da Venezuela e de seu modo de se referir ao que estava ocorrendo em seu país de modo muito lúcido.

Vale ressaltar que a entrevista foi feita antes da morte de Hugo Chávez e antes da radicalização da crise venezuelana. Mesmo assim, creio que vale a leitura como documento histórico. Segue:

Folha – Seu trabalho vem sido revisitado por artistas jovens. Como vê isso?

Cruz-Diez – É uma beleza e estou feliz. Sinto que finalmente estão entendendo minha proposta, como minha geração jamais conseguiu.

Por quê?

Quando comecei a trabalhar com a cor, me diziam que essa questão estava resolvida. Que a cor era um tema que tinha caducado.

Mas eu sentia que era necessário mudar os hábitos milenares por meio dos quais as pessoas prestavam culto à forma e ao objeto. Na minha obra, não privilegio o objeto, mas sim o acontecimento.

Também acho que, na época, as pessoas se impressionavam com a matéria, com a composição dos quadros. Mas tampouco se tratava disso para mim. O que me importava era como tudo se movia, como as cores se transformavam. A prioridade era reforçar o contraste entre uma forma inerte e a dinâmica, e na dinâmica há algo mais para perceber do que simplesmente a forma.

E como as novas gerações o veem?

Entendem que a proposta não é a forma ou o suporte. Começam a entender que meu trabalho sempre se propôs a apresentar uma outra noção de cor. A cor é uma situação, um acontecimento, algo aleatório, sem noção de permanência, uma circunstância, algo que está acontecendo no tempo.

Os filósofos também deixavam a cor em segundo plano; foi o que me estimulou a experimentar com ela. Hoje percebo que não errei.

O senhor antes fazia pintura figurativa.

Sim e, quando eu a abandonei, as pessoas me diziam que eu tinha abandonado o homem, mas não era nada disso. Pelo contrário, eu estava ainda mais metido na investigação da alma humana.

Li que o senhor se incomoda quando usam o termo arte cinética para definir sua obra.

Não estava contra na época em que se criou o termo. Mas, a partir dos anos 1980, formou-se uma grande confusão, porque se generalizou a ideia de que arte cinética eram objetos movidos por motorzinhos -quando o que queríamos era criar uma outra realidade. E creio que funcionou desde o ponto de vista da criação, porque todos os artistas deram um aporte.

Eles me relacionam ao movimento cinético porque meu trabalho tem a ideia de participação. A possibilidade de mexer, o prazer produzido por observar a transformação da cor. Mas não há motorzinho no que faço. Quando pensam isso, fico incomodado.

O que o senhor pensa da pintura de propaganda, que está em voga na Venezuela?

Não se pode confundir tanto a arte com a política. Um sindicalista em cima de um banquinho pode mudar uma situação de um momento para outro, um pintor não consegue fazer isso, leva mais tempo para um quadro causar impacto na sociedade.

E a pintura de propaganda não muda nada. Todas as que existiram desde a Revolução Russa são reacionárias. Hoje, vejo como algo decadente.

Vivendo na França, como analisa a Venezuela hoje?

Estou na França há 51 anos. Mas amo muito meu país. Há quase 50 anos, sabíamos que chegaria a mudança que Hugo Chávez representa. A democracia, na Venezuela, mudou e melhorou muito o país, mas não fez nada pelos mais pobres. E se percebia que, se a democracia não levava prosperidade às favelas, elas viriam cobrar sua parte.

Agora, o populismo não resolve a fome dos pobres, apenas alimenta sua ilusão. O discurso de Chávez é arcaico, do século 19.

Como vê a arte contemporânea latino-americana? Há alguma renovação?

Vejo coisas interessantes acontecendo, principalmente na Argentina, no Uruguai e no Brasil. Artistas como Guillermo Kuitca [Argentina] e Ernesto Neto [Brasil] demonstram que a vanguarda está na América do Sul.

A Europa está muito pessimista e depressiva, mas por aqui (na América Latina) percebemos que estamos entrando numa nova época da história. Estamos vivendo um novo século 17. A filosofia, a matemática e a música de hoje são o ponto culminante do que se passou naquela época, mas tudo isso está se esgotando.

Agora há algo novo, relacionado à compactação do tempo, à rapidez das informações e à desaparição do proletariado.

Por que desaparição?

O proletariado já não está no campo. Como apresentar, para simbolizar as lutas do povo, uma foice e um martelo? É preciso começar mudando, de cara, o logo. Talvez colocar um dedo e uma tecla, por exemplo.

Já não há trabalhadores como no passado, nem soldados, nem camponeses. Há técnicos. É um outro mundo. E os políticos estão com os mesmos discursos dos séculos 19 e 20.

 

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