Sylvia Colombo https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br Latinidades Tue, 30 Nov 2021 12:31:53 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Série mostra encontro do narcotráfico latino e europeu https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/02/13/serie-mostra-encontro-do-narcotrafico-latino-e-europeu/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/02/13/serie-mostra-encontro-do-narcotrafico-latino-e-europeu/#comments Thu, 13 Feb 2020 14:58:59 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2020/02/4XNryWdN1FvxLhaDabwWi4-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3509 O cenário de “Vivir Sin Permiso” (viver sem permissão) é paradisíaco. Estamos na Galícia, na Espanha, e suas praias belíssimas, seus “pazos” (casas de gente rica) amplos e acolhedores, sua culinária baseada em deliciosos produtos do mar e seus vilarejos idílicos. Só que nem tudo é felicidade nesse canto da Espanha em que o idioma soa familiar aos que falam português. Na cidade fictícia de Oeste, há uma família poderosa, os Bandeira.

Oficialmente, eles se dedicam a uma grande empresa de conserva de alimentos e de construção. Porém, tudo isso é apenas um disfarce. O magnata por trás desse império em Oeste, o empresário Nemo Bandeira (José Coronado), é também um poderoso narcotraficante. Nemo tem os barcos e a logística para fazer entrar, pela costa galega, a cocaína que vem da Colômbia e do México, para daí ser distribuída pela Europa. O nome da série é um slogan de sua crueldade. Em Oeste, trata-se de uma máxima conhecida: “ninguém vive sem a permissão de Nemo Bandeira”.

Em uma produção de apenas duas temporadas, cujo ciclo está encerrado, mas que está toda disponível no Netflix, vemos uma trama que mistura suspense, thriller, romance e um violento embate de poder. Tudo começa quando Nemo é diagnosticado com Alzheimer. Ninguém pode saber, para que ele não seja desbancado, e ele finge não ter a doença até onde consegue. Depois, passa até mesmo a usá-la em seu favor. Enquanto isso, prepara a sucessão de seus negócios, tanto os lícitos como os ilícitos. Estão entre os candidatos personagens que por si só têm sua subtrama que merece acompanhar, Lara, a filha bastarda, Mario (Ález Gonzalez), o filho adotivo, Carlos (Àlex Monner), o filho homossexual e viciado em drogas, e Nina (Giulia Charm), a filha caprichosa.

Entre os talentosos atores, destaca-se Luis Zahera, que de longe faz o melhor personagem da série, Ferro, o homem de confiança que protege Nemo dos inimigos, dos “brancos” que o chefe têm por conta da doença, e se sai com as melhores frases de efeito e as piadas, algumas apenas para quem tem algum conhecimento do espírito e da cultura galegas.

Mas a trama de disputa pelo poder fica muito mais violenta e interessante quando surgem os sócios mexicanos de Nemo. E, com eles, o encontro de dois “códigos de valor” entre narcos. Nemo passa a figurar como o narco “bonzinho”. Ou seja, que nunca deixou que Oeste se manchasse de sangue, cujas contas a acertar eram sempre realizadas de forma disfarçada, que valorizava seus filhos e respeitava os cidadãos de Oeste, embora tivesse a polícia, a Justiça e os funcionários do porto todos comprados com o dinheiro sujo da droga.

Pois seu sócio, que chega do México ao saber que Nemo está próximo de perder a razão, tem outro modo de agir. Germán Arteaga (Rubén Zamora) é o narco “mau” e aparece com seu estilo mexicano de atuar. Vinganças à luz do dia, matanças, assassinatos de menores, instalação de tráfico de mulheres, com os colombianos jogando a seu lado. Se Nemo joga com habilidade de estrategista, embora esteja perdendo a faculdade de pensar direito, Arteaga atua na base da pistola, do sicariato e na varredura dos inimigos, derramando sangue por todos os lados.

Assinam a história duas feras do roteiro e da literatura espanholas, Aitor Gabilondo, o basco que está adaptando a versão para a HBO do romance “Patria”, de Fernando Aramburu (publicado no Brasil pela Intrínseca) e Manuel Rivas, o mais importante autor galego da atualidade. A série teve o mérito de, na Espanha, ter uma média de 1 milhão de espectadores por episódio, e esse número não caiu nem mesmo quando a Netflix disponibilizou todo o restante da temporada no serviço de streaming. A transmissão de seu capítulo final atingiu a marca de 2 milhões de espectadores.

Não espere até que tirem do ar.

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Jornalismo posto à prova em Tijuana https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/04/08/jornalismo-posto-a-prova-em-tijuana/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/04/08/jornalismo-posto-a-prova-em-tijuana/#comments Mon, 08 Apr 2019 21:07:05 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2019/04/1554485631824-tijuana-la-serie-de-netflix-muestra-los-riesgos-del-periodismo-en-mexico.001-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3320
“Tijuana”, sobre jornalistas mortos e a realidade social na fronteira do México (Foto Divulgação)

Como fazer uma boa série sobre a situação mexicana e o jornalismo local sem cair em estereótipos e mostrando com as cores reais a complexidade de uma cidade como Tijuana? Que sim, é violenta, perigosa, mas também tem, como tantas regiões do México, disparidades incríveis, cassinos, casas luxuosas, gente rica vivendo bem, e tramas entre a mídia e o poder que selam pactos ou abrem guerras entre famílias por décadas? A solução é trabalhar com uma maioria de criadores, produtores e atores mexicanos e que se estude bem a história e a construção do tecido social local.

Assim é “Tijuana”, exibida antes na Univisión e que estreia agora na Netflix. Criada pelo veterano da TV mexicana, Daniel Posada (de “El Chapo”), a série tem no elenco um ator peso-pesado, Damián Alcazár, que interpreta Antonio Borja, um dos donos do jornal “Frente Tijuana”, e outros muito talentosos, como Claudette Maillé, que faz a ponderada diretora do diário, Federica. Além deles,  uma geração de novatos, como Ivan Aragon, que faz Andrés, o filho de Borja, motivado a descobrir os segredos do passado do jornal, Tamara Vallarta, que é Gabriela, uma repórter que vai ao limite para provar seu talento, e Tete Espinoza, a fotógrafa Malú, que se envolve emocionalmente nas coberturas. À frente da equipe, o calejado chefe de redação Lalo (Rolf Peterson).

O elenco acaba refletindo também um dos aspectos relevantes não apenas para o jornalismo mexicano como o mundial, o “gap” entre a geração anterior, acostumada a um modo de fazer reportagem, uma ética e, principalmente, um formato, o de papel, e que, pelas mesmas razões que estão mudando o jornalismo no mundo inteiro, hoje precisa aprender com os mais novos como ser mais ágil, ousado, dar novos enfoques às reportagens, e como sobreviver financeiramente. Os mais velhos por sua vez, principalmente encarnados na figura de Antonio Borja, insistem em passar adiante a velha e ainda válida ética jornalística, que se faz complicada de seguir em uma terra sem lei como Tijuana, com políticos corruptos, cartéis de narco por trás das campanhas eleitorais, empresas de fachada, que por fora são “maquiladoras”, e por dentro, facilitadoras do transporte de substâncias ilegais aos EUA.

É nesse ambiente que se desenvolve a trama. A equipe do “Frente Tijuana” quer investigar quem mandou matar um dos candidatos a governador de Baja California, Eugenio Robles (Roberto Mateos), um ex-operário que quer mudar, em favor dos trabalhadores, as regras a que são submetidos nas fábricas locais, as “maquilas”. Óbvio que, assim como os jornalistas incômodos, o candidato Robles não dura muito tempo, e é brutalmente assassinado por um sicário.

O jornal abraça o caso e, de repente, começa a sentir pressão do partido do governo, que na série se chama PTI, mas usa o logo e as cores do tradicional PRI (Partido Revolucionário Institucional), conhecido, entre outras coisas, pelo seu passado de corrupção. O “Frente Tijuana” passa a sofrer sufoco com os preços da gráfica e do papel, por parte dos anunciantes e a pressão para migrar para o digital. Antonio Borja resiste o que pode, sob o lema: “sem imprimir, não existimos”.

Além da história principal, que se baseia na caça de pistas na investigação da equipe do “Frente Tijuana” para encontrar o assassino de Robles, há outras subtramas. Andrés, o filho de Antonio, quer descobrir como foi morto o tio, co-fundador do semanário, e com isso se envolve perigosamente na zona de influência do empresário que é tido como o mandante do crime, às costas do pai. Também surgem subtramas sobre imigrantes centro-americanos mortos na fronteira pelos próprios “coyotes” que haviam recebido dinheiro para cruzá-los, e sobre prostituição e contrabando de crianças.

O “Frente Tijuana” se inspira na história de um semanário que existe no país, o “Zeta”, também famoso por não intimidar-se diante de ameaças. O “Zeta” tem já 39 anos, teve um de seus diretores, Héctor “El Gato” Félix Miranda, assassinado em 1988, e um jornalista, Francisco Javier Ortiz Franco, que investigava o narcotráfico local, morto em 2004. Na série, histórias parecidas ocorrem, incluindo uma quase destruição de sua redação por bandidos armados por metralhadoras.

Não há exageros nas histórias que conta “Tijuana”, que reflete o que vem passando em várias redações do interior do país nos últimos anos. Além de mostrar muito do que é a violência no México hoje, e principalmente a violência contra jornalistas, é um bom ponto de partida para a discussão sobre como seguir fazendo jornalismo, com as regras básicas de ética da profissão, num ambiente como este e num mundo em transformação.

São lembrados jornalistas famosos e reais, mortos nos últimos anos, como Javier Valdez e Miroslava Breach. Eles integram a lista de, pelo menos, 124 jornalistas assassinados entre 2000 e 2018, além dos 19 desaparecidos. Segundo a ONG Artículo 19, que monitora esses números, houve, apenas em 2018, 544 ataques contra a imprensa. E talvez o número mais assustador seja o da impunidade _99,13% desses crimes não foi sequer julgado.

Em tempos em que o presidente do México elegeu-se com um discurso de que a violência no país era um problema a ser atacado de uma nova maneira, sem o recurso único do enfrentamento direto, “Tijuana” também serve para aumentar o ponto de interrogação nesse sentido. Como e quando as cifras de homicídios irão baixar? Como se garantirá a liberdade de expressão? E como se desarmará esse sistema já solidificado em que os poderosos se aliam aos narcos, enquanto os mais pobres e os jornalistas morrem?

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Chapo condenado, e agora? https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/02/12/chapo-condenado-e-agora/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/02/12/chapo-condenado-e-agora/#comments Wed, 13 Feb 2019 00:49:26 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2019/02/fotonoticia_20190108210944_640-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3288
O traficante Chapo Guzmán, considerado culpado em julgamento nos EUA (Foto El Universo)

Uma vez, ao entrevistar o filho do líder do Cartel de Medellín, Pablo Escobar (1949-1993), Juan Pablo Escobar, que vive aqui em Buenos Aires, ele me disse: “No dia seguinte em que assassinaram meu pai, não faltou uma grama de cocaína no mercado de drogas de Medellín”. E é verdade que, mesmo com esforços de distintos tipos de controlar, vigiar e perseguir os cartéis colombianos, que mudaram de estrutura e se horizontalizaram, houve avanços no sentido de haver menos mortes causadas pela guerra ao narco, mas a Colômbia continua sendo o maior provedor de cocaína para os EUA e para grande parte do mundo.

O que estou querendo dizer? Que não vale nada perseguir e prender os grandes barões da droga? Claro que não. Eles precisam enfrentar a Justiça não apenas por crimes de comércio ilegal de substâncias ilícitas, mas por todo o sangue derramado por conta da natureza de seu negócio. Mas a criação desses barões como anti-super-heróis tem também seu lado daninho. Pois servem de contra-exemplo para adolescentes, para a indústria cultural, onde são pintados como “rebeldes anti-sistema”.

Desde a derrocada dos grandes cartéis colombianos, nos anos 1990, o sistema do narco em torno desses “drug lords” mudou. As estruturas ficaram mais fragmentadas, horizontais, ou seja, muito mais difíceis de serem capturadas, e o comércio seguiu. E, enquanto não houver uma discussão séria sobre legalização e acesso às drogas com enfoque para políticas de saúde pública, não sairemos desse ciclo. As drogas ilícitas, enquanto continuarem sendo ilegais, continuarão movimentando cifras altíssimas e favorecendo não mais apenas os super-traficantes, mas também os narco-empresários, narco-políticos, narco-presidentes e por aí vai.

É claro que até a indústria do entretenimento prefere a figura do “drug lord” que escapa de todas as prisões e emboscadas, engana a polícia, o governo e a CIA, como prova o sucesso da série “Narcos” e de suas seguidoras, que fazem com que inevitavelmente adolescentes, jovens e o público em geral torçam para que os bandidos se deem bem, criando um precedente terrível para o futuro.

Mas voltemos ao “Chapo”, considerado culpado, nesta terça-feira (12), de todas as acusações pelas quais respondia, relacionadas a seu comando do cartel de Sinaloa: narcotráfico, assassinatos, fugas de cadeias, mortes por encomenda. Sua sentença final sairá dia 25, e é pouco provável que ele não pegue penas máximas em todos os casos, uma vez que está sendo julgado nos EUA, onde seu poder de corromper a Justiça é pequeno ou nulo.

Olhemos, porém, os números. Com Chapo, líder do cartel de Sinaloa, o mais perigoso e rico do México, já preso, 2018 foi um ano com uma cifra altíssima de homicídios relacionados à guerra ao narco: 33.341 pessoas. Na verdade, o mais alto desde que se começaram a realizar essas estatísticas, em 1997.

Quanto ao fluxo de substâncias ilícitas, que vão da marijuana às chamadas drogas de desenho, os opióides e heroína, com destino final os EUA, houve também um aumento _na época do Chapo era maconha e cocaína, apenas.

Os meios que acompanharam o julgamento levado adiante pelo juiz Brian Cogan, numa corte do Brooklyn, disseram que todos os 10 crimes a que o Chapo Guzmán foi relacionado tiveram grandes quantidades de evidências contra ele, num julgamento que durou três meses, e com poucos espaços para que a defesa pudesse armar uma estratégia de saída. Quando tudo estava terminando, conta-se que Chapo olhou para sua mulher, Emma Coronel, e para suas filhas gêmeas de sete anos com a mão no coração e uma expressão facial de quem já aceitou que, apesar de possuir US$ 1 bilhão (contabilizados), deverá passar o resto de sua vida na prisão.

Diego Luna, como Félix Gallardo, patriarca dos narcos mexicanos retratado em “Narcos Mexico” (Foto Divulgação)

Seria importante que o novo governo do México tomasse a prisão do Chapo como um ponto final de um certo modo de combater o narcotráfico. E a atual Presidência do esquerdista Andrés Manuel López Obrador parece estar nessa sintonia. Segundo ele, já não haverá mais “guerra ao narco”, esta que começou com o direitista Felipe Calderón (2006-2012), que já consumiu 80 mil vidas e causou mais de 100 mil desaparecidos. AMLO (como é conhecido) diz que “perseguir ‘capos’ não será uma prioridade”, e sim reforçar seu projeto, ainda um pouco vago, de criar uma “guarda nacional”.

Seus críticos creem que isso militarizaria ainda mais o México. E é verdade. Porém, quem conhece algo do país sabe o quanto instâncias do Exército e das polícias regionais estão corrompidas pelos cartéis. Até que ponto essa “guarda nacional” poderá permanecer “limpa” é o desafio de AMLO.

“Oficialmente não há mais guerra”, disse AMLO ao tomar posse no último dia 1 de dezembro. O que precisa, então, a tal “guarda nacional”, para ser eficiente? Primeiro, contar com a colaboração dos Estados, e para isso será necessário desmontar uma difícil trama de governos regionais cujas campanhas eleitorais são pagas pelo narco local. Depois, armar um sistema de uso e compartilhamento de inteligência entre os Estados, para poder seguir e acompanhar os movimentos dos cartéis, agora mais móveis e divididos. Depois, tratar o assunto de descriminalizar algumas substâncias e montar um sistema de saúde pública que saiba lidar com os viciados. Nem tudo isso consta do programa vago apontado por AMLO, ainda.

Porém, se ele declarou o “fim da guerra”, são questões que tem de levar em consideração.

 

 

O caminho parece complicado, muito mais complicado do que repartir armas e mandar que Exército e cartéis se matem. Mas essa estratégia já há mais de uma década não funciona, além de ter ceifado milhares de vidas, entre militares, delinquentes e civis. Está bem que não existam mais Escobares, nem Chapos. Isso terá de obrigar Hollywood e a Netflix a buscar outros filões. Mas será por uma causa nobre, que outras pessoas sigam vivendo sem ter esses sujeitos como ídolos da morte a levar seus filhos e parentes.

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Peña Nieto, um melancólico adeus https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2018/12/03/pena-nieto-um-melancolico-adeus/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2018/12/03/pena-nieto-um-melancolico-adeus/#comments Mon, 03 Dec 2018 21:09:08 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3249
O ex-presidente mexicano Enrique Peña Nieto (El Universal)

Quando estreou como presidente do México, em 2012, Enrique Peña Nieto, 52, surfava numa onda de esperança. O país vivia um bom momento econômico, tinha previsão de crescimento de 4% a 6% do PIB e era chamado de “tigre asteca”. Sua aposta pelo pólo industrial de automóveis e outras fábricas no centro do país era vista como um “case” de sucesso. Também foram bem recebidas, principalmente no exterior, suas reformas energética, tributária e educacional. Um inédito acordo entre partidos, o Pacto por México, que reunia a esquerda, o centro e a direita, lhe davam respaldo para aprovar leis no Congresso.

Porém, logo os problemas começaram a se mostrar maiores do que sua capacidade de resolvê-los. Antes de mais nada, o da violência. Anunciando que trocaria a brutal “guerra ao narcotráfico” dos anos do PAN (Partido da Aliança Nacional) por um esquema mais focado em descabeçar os grandes cartéis, realizou prisões de líderes e anunciou acordos com as chamadas “autodefensas”, ou milícias cidadãs. Não deu certo, os cartéis, com sua enorme capacidade mutante, iam se deslocando, horizontalizando e fragmentando sua hierarquia, e se tornaram mais poderosos e mais difíceis de rastrear. Peña Nieto teve de voltar com a mão pesada, e o resultado foi um ano recorde em homicídios.

Nesta nova guerra, são mortas 85 pessoas por dia, colocando o país como um dos que têm uma das taxas mais altas da América Latina (25 assassinatos por cada 100 mil habitantes)

Em 2018, foram mais de 22 mil assassinatos. Inclui-se nesse capítulo a desaparição, ainda não explicada, dos 43 estudantes da escola rural de Ayotzinapa, cujo esclarecimento ainda não foi feito de todo, mas aponta para uma “solução” encontrada por autoridades locais em conluio com um cartel e talvez também com o Exército para matar os garotos. Não apenas o fato é uma tragédia, como o governo lidou muito mal com isso, apresentando uma versão que depois foi desautorizada por organismos estrangeiros que foram investigar o caso.

Outro tema a ressaltar ainda no capítulo violência é a morte de jornalistas. Foram 44 no sexênio de Peña Nieto, a maioria morta ou por cartéis ou a mando de políticos locais que são financiados por cartéis. Com isso, o México se coloca como o lugar mais perigoso para um jornalista exercer sua profissão na América Latina. E o prejuízo vai além da tragédia da perda dessas vidas. A maioria dos mortos são jornalistas que cobrem o interior do país, e que muitas vezes são fontes valiosas para os jornais que existem nas grandes cidades. O desaparecimento deles faz com que grandes regiões sofram um verdadeiro apagão informativo.

Em suma, Peña Nieto, que havia prometido amenizar o efeito da “guerra ao narcotráfico” iniciada em 2006 por Felipe Calderón, deixou nada menos que um saldo de 19% mais mortos do que seu antecessor. 

Mas há outros flancos que foram desgastando o presidente.

Hoje, cerca de 8 de cada 10 mexicanos crê que EPN foi um mau mandatário e que deixou o país pior do que estava. Um desses temas é a corrupção. Diversos membros da cúpula do governo foram pegos cometendo delitos, tráfico de influência, desvios de verbas e ganhando com o superfaturamento de obras. Mas o caso mais emblemático acabou sendo protagonizado pela própria primeira-dama, a ex-atriz Angélica Rivera, que comprou por um preço ridículo, de um empresário beneficiado com a concessão de obras do Estado, uma mansão avaliada em US$ 7 milhões. O caso, conhecido como “o escândalo da Casa Branca” demoliu a popularidade do presidente.

 

 

 

 

 

Um terceiro aspecto negativo foi o modo como Peña Nieto lidou com as humilhações de que os mexicanos vêm sendo vítimas, desde 2016, quando Donald Trump estava em campanha. Desde os comentários racistas às afirmações dizendo que o país teria de pagar pelo “muro” na fronteira, causaram imensa bronca entre os mexicanos, que exigiram de Peña Nieto que protegesse o país. O então presidente, porém, não fez isso, ao contrário, recebeu Trump candidato numa ridícula visita, em que foi também humilhado pelo americano, e depois foi obrigado a aceitar o acordo que substituirá o Nafta, em que o México sairá perdendo. Em nada disso se mostrou abalado. A última peça que faltava ocorreu há alguns dias, aqui em Buenos Aires, quando Peña Nieto condecorou nada menos que Jared Kushner, durante o G20.

Por sorte o México tem essa cláusula pétrea na Constituição, herança da Revolução de 1910, que impede que um presidente se reeleja em qualquer circunstância. Peña Nieto também disse que se retira da vida pública. Não vai deixar saudades.

 

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Ayotzinapa, 3 anos e a agonia da falta de respostas https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2017/09/26/ayotzinapa-3-anos-e-a-agonia-da-falta-de-respostas/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2017/09/26/ayotzinapa-3-anos-e-a-agonia-da-falta-de-respostas/#comments Tue, 26 Sep 2017 03:28:32 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=2983
Sobrinha de um dos estudantes mortos, em sua casa, em El Pericón, no Estado de Guerrero (Foto Sylvia Colombo)

Neste 26 de setembro completam-se três anos da desaparição dos 43 estudantes de Ayotzinapa, no Estado de Guerrero (México), o caso de violência que ficará marcado como o mais grave e com mais consequências políticas para a gestão de Enrique Peña Nieto, do PRI, que termina no ano que vem.

Alguns meses depois da tragédia, visitei, para uma reportagem para a Ilustríssima, a casa de um dos dois únicos estudantes cujos restos mortais foram identificados através de estudo de DNA realizado por peritos austríacos. Seu nome era Alexander Mora Venancio, tinha 21 anos. Estava terminando o curso no colégio Rafael Burgos, de Ayotzinapa, e preparava-se para ser professor.

Vivia no vilarejo de El Pericón, uma aldeia de chão de terra batida no interior do Estado em que todos se conhecem e rezam seus mortos juntos, em longas sessões de oração. A casa da família consistia numa só peça. Ali dormiam o pai e o irmão de Alexander, com a mulher e os dois filhos deste. Apesar de o espaço ser pequeno, a família encontrou uma maneira de montar um altar dedicado ao estudante. Bem ao estilo mexicano, ali estavam fotos do rapaz de semblante sério, em roupas escolares ou usando camisetas de futebol. Era começo de noite, e as velas estavam acesas, iluminando imagens de santos, rosários e as mensagens escritas à mão pelos colegas. Quando terminei de fazer as entrevistas, a cunhada de Alexander me disse: “Por que não conversa com a avó dele, doña Brígida?”. Eu disse que gostaria muito e ela, então, me levou para a casa que ficava na parte de trás. Ali vivia essa senhora de então 83 anos. Apenas quando pus os pés em seu quarto, onde ela debulhava milho com o olhar perdido, a cunhada me alertou: “nós ainda não contamos para ela que Alexander está morto”. Fiquei uns segundos sem ação, e comecei, então, a perguntar a doña Brígida sobre sua vida, uma vez que não podia mencionar a tragédia. Ela, então, me contou como era Guerrero no passado, quando ela era menina e ali chegou caminhando, pois não havia estradas. Tinha estado só uma vez na Cidade do México, e contou que preferia a vida do campo. Falava de Alexander com carinho, esperando sua próxima visita, que ela imaginava que ia ser logo porque, afinal, ele já estava demorando a aparecer. Uma bola de angústia se formou na minha garganta. E a partir daí eu já não consegui perguntar mais nada.

Não sei se doña Brígida ainda está viva, se alguém por fim lhe contou que seu neto não voltará jamais, ou que reação teve ao receber a notícia.

O fato é que a desaparição dos rapazes de Ayotzinapa hoje assombra tanto ou mais do que naquela época, não apenas pelo tamanho da tragédia, como por conta das perguntas não respondidas e das explicações desencontradas que foram surgindo e se acumulando desde então.

O que se sabe de concreto é que, naquele dia, 100 alunos da escola rural Rafael Burgos tinham se reunido e subido em três ônibus para ir à cidade de Iguala. Dali, buscariam como ir à Cidade do México, onde a ideia era participar da homenagem aos mortos do Massacre de Tlatelolco, ocorrido em 1968. Os ônibus foram cercados por forças de segurança, houve um tiroteio e seis mortes. Os meninos foram levados dali e nunca mais se soube deles.

A versão oficial e a principal linha de investigação aponta somente para as autoridades e criminosos locais. O prefeito, irritado porque a parada dos estudantes em Iguala teria como objetivo atrapalhar o ato de lançamento da candidatura de sua mulher, havia pedido à polícia local que os contivesse. Ainda segundo esta versão, os policiais teriam capturado o grupo e os entregado a um cartel, o Guerreros Unidos. Estes teriam matado os garotos, e depois queimado seus corpos num lixão.

Várias coisas, porém, seguem sem encaixar. Ou simplesmente são de cair o queixo se forem verdade. A que ponto se chegou, no interior do México, em que um prefeito pede que a polícia sequestre um grupo de estudantes só porque estes atrapalhariam um ato político? Que polícia obedece a essa ordem, indo ao extremo de entregar os meninos a um cartel da droga? E a que nível de crueldade chegaram essas facções, capazes de realizar essa matança e depois se desfazer assim dos corpos?

O que complica as coisas para o governo federal é que há testemunhas que dizem ter visto soldados do Exército participando da ação. Isso colocaria em dúvida a tese de que tudo ocorreu apenas localmente, sob a batuta do prefeito, e que nenhuma autoridade acima dele teria tomado conhecimento. Outra razão que faz com que familiares e grupos de direitos humanos estejam ainda mais furiosos com Peña Nieto é que a perícia encomendada pelo governo e sua versão oficial dos fatos foi depois desacreditada por um grupo de peritos internacionais, sob monitoria da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

A gravidade deste caso, entre tantos enfrentamentos violentos da guerra do Estado mexicano ao narcotráfico, reside naquilo que expõe: o fato de que, no interior do país, há um vínculo fortíssimo entre autoridades regionais, cartéis e forças de segurança. Não é de hoje que se acumulam acusações de que os cartéis financiam boa parte das campanhas de prefeitos e governadores.

Ayotzinapa mostrou como pode ser sangrento o desenlace dessa terrível associação.

Muito antes da tragédia, já se sabia que o sul do México, assolado pela pobreza, vinha vendo os casos de violência aumentarem. Isso por conta da expansão das plantações ilegais de papoula para produzir heroína, enviada pelos cartéis locais, como os Guerreiros Unidos, aos EUA. O contexto já era bem conhecido, pois o “boom” da heroína no Norte só vem aumentando na última década, penalizando os Estados pobres do sul do México. Ainda assim, o governo de Peña Nieto não ofereceu à região, nem antes e nem depois, uma proposta de investimento em outras áreas de produção, nem de incentivo à economia e de melhorias na educação local. Nem mesmo encarou, em seus seis anos de gestão, um debate sério sobre regulamentação das drogas para combater o narcotráfico.

Não há nada para comemorar nesse terceiro aniversário da tragédia de Ayotzinapa. Apenas o fato de ter despertado consciências dentro e fora do país e de haver mais cobrança com relação às autoridades. Mas só isso não basta, pois os números de homicídios no México relacionados ao crime organizado aumentaram em 16% neste ano com relação ao anterior.

Por ora, a tragédia de doña Brígida, infelizmente, está fadada a repetir-se em outras famílias da região.

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Santos pede alternativa à guerra às drogas https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2016/12/12/santos-pede-alternativa-a-guerra-as-drogas/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2016/12/12/santos-pede-alternativa-a-guerra-as-drogas/#comments Mon, 12 Dec 2016 12:58:05 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=2662 O presidente colombiano Juan Manuel Santos, em Oslo (Foto Reuters)
O presidente colombiano Juan Manuel Santos, em Oslo (Foto Reuters)

O ponto mais importante do discurso do presidente colombiano Juan Manuel Santos, em Oslo, no último sábado (10) passou um tanto despercebido. A emotiva homenagem às vítimas e o repeteco de suas falas anteriores sobre a importância da paz com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) ganharam as manchetes do mundo.

Mas talvez o trecho mais essencial de sua intervenção seja outro. Santos pediu abertamente, por uma “necessidade urgente”, “construir uma alternativa” à estratégia bélica para combater os cartéis de narcotráfico. O mandatário já havia ensaiado defender essa posição na Cúpula das Américas de 2012, mas, naquele encontro, em que questões mais urgentes se impuseram _as situações de Cuba e Venezuela_ a sugestão ficara no ar. Santos depois colocou a questão à ONU e à OEA, mas o tema não ganhou adeptos e não frutificou.

Agora, Santos foi mais claro, e para uma audiência internacional e qualificada. Tomara que tenha sido ouvido. “A Colômbia foi o país que mais mortos e sacrifícios colocou nessa guerra. Temos autoridade moral para afirmar que, depois de décadas de luta contra o narcotráfico, o mundo não conseguiu controlar esse flagelo, que alimenta a violência e a corrupção em toda nossa comunidade local”, afirmou.

No trecho final de seu mandato, Santos agora parece mais à vontade para abrir espaço para discutir a legalização das drogas em seu país. E, de fato, na Colômbia, esse debate vem aumentando, produzindo como resultado, até agora, a legalização do uso da maconha medicinal.

Disse, ainda, o presidente colombiano: “O narcotráfico é um problema global e requer uma solução global que parta de uma realidade que não se pode mais esconder: a guerra contra as drogas não foi vencida, nem está sendo vencida.” Neste momento, foi intensamente aplaudido. E ainda mais quando deu um exemplo. “Não tem sentido mandar para a cadeia um camponês que planta maconha quando hoje é legal produzi-la e consumi-la em oito Estados dos EUA.”

Santos deixou, assim, aberta a porta para uma discussão mais ampla sobre a legalização em todo o continente. “A guerra às drogas se mostra mais daninha que todas as guerras que estão ocorrendo no mundo juntas. É hora de mudar de estratégia.”

Curiosamente, o discurso do colombiano ocorre quando, no México, lembra-se que faz exatamente dez anos que o Estado deu início à sua “guerra ao narcotráfico”. Apenas oito dias depois de eleito, o conservador Felipe Calderón (2006-2012) enviou tropas a seu Estado natal, Michoacán, para reprimir uma disputa entre cartéis locais. Desde então, intensificou esses ataques, com ajuda financeira dos EUA.

O balanço dos números que essa guerra gerou, em dez anos, são assustadores. Segundo dados oficiais, desde então, quase 200 mil pessoas foram assassinadas e 28 mil são dadas como desaparecidas.

Espetáculos trágicos e sangrentos foram povoando a memória coletiva mexicana e anestesiando-a aos piores cenários: fossas comuns com mais de cem pessoas encontradas com frequência em vários pontos do país, plantações clandestinas de papoula (para a produção de heroína) recrutando crianças nos Estados mais pobres, a desaparição dos 43 estudantes de Ayotzinapa, a execução de 72 imigrantes, a maioria da América Central, pelo cartel dos Zetas, em 2010. O surgimento das milícias cidadãs, os “autodefensas”, também brutais e também metidos com o narcotráfico, eliminando a autoridade dos governos regionais. A lista de danos é imensa.

Números recentes, já do governo do priista Peña Nieto, mostra que o número de mortes como consequência de disputas entre cartéis ou entre cartéis e o Exército não vem diminuindo, pior, do ano passado para cá registrou-se um aumento de 16%.

A boa notícia é que também neste país do Norte, a discussão sobre a legalização das drogas começa a entrar na pauta do Congresso e dos políticos, ainda que recebendo muita resistência por parte da sociedade. O ex-presidente Vicente Fox é o nome mais destacado entre essas vozes, pedindo a legalização “de todas as drogas”.

Apesar da análise de vários especialistas de que isso, num primeiro momento, poderia ter um impacto negativo, também é uma conclusão de muitos estudiosos que, a médio e longo prazo, legalizar as drogas traria benefício, como a destruição desses cartéis ao dinamitar seu milionário negócio. Com o fim dos enfrentamentos armados, o número de vítimas fatais cairia brutalmente.

Que o discurso de Santos seja mais um passo para abrir de vez a porta para o debate sobre as alternativas ao combate bélico ao narcotráfico, como a legalização das drogas e o tratamento do problema na órbita da saúde pública, com campanhas de educação e prevenção e políticas de redução de danos e tratamento aos viciados, como já acontece em alguns países da Europa.

Até lá, a América Latina, como mostram os números do México em uma década de combate bélico, continuará dessangrando.

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Seguindo a rota narco da Argentina ao México https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2016/07/30/seguindo-a-rota-narco-da-argentina-ao-mexico/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2016/07/30/seguindo-a-rota-narco-da-argentina-ao-mexico/#respond Sat, 30 Jul 2016 16:46:42 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=2409 A jornalista mexicana Cecilia González (Foto Divulgação)
A jornalista mexicana Cecilia González (Foto Divulgação)

Na introdução de “Narcosur” (Marea, 2013), a jornalista mexicana Cecilia González, correspondente da agência Notimex na Argentina desde 2002, relata que levou um susto quando seus editores pediram, lá do México, em 2008, que ela averiguasse uma questão relacionada ao narcotráfico na Argentina. Naquele ano, em meio a um torvelinho político que contrapunha o governo kirchnerista e os ruralistas _caso que monopolizou os noticiários_ também ocorreu um fato não menos importante, mas que passou meio despercebido pelos meios e a opinião pública. Nos arredores de Buenos Aires, a polícia encontrou, pela primeira vez, um laboratório de drogas sintéticas operado por um grupo de mexicanos e argentinos.

Curiosamente, aconteceu uma coisa parecida comigo quando, ao chegar ao país com a mesma função, em 2011, passei a ler com cada vez mais frequência o quanto de violência, cifras, lavagem de dinheiro e trânsito de “drug lords” havia no país-vizinho. Certamente no Brasil, e seguramente para a maior parte do mundo, a Argentina ainda não era vista como um “Estado narco”, nem de longe era associada à violência como a que vemos, infelizmente, no México, com suas cenas terríveis de fossas coletivas e degolamentos em massa na luta dos cartéis por território. Para o imaginário do brasileiro comum, a Argentina é um destino turístico pacífico, com uma capital que _insistem os turistas_ “parece a Europa” e um lugar divertido para comprar livros, alfajores e jaquetas de couro de boa qualidade. Infelizmente, a realidade é um pouco mais cinzenta, e o fato de que a Argentina vem se transformando, desde o declínio dos grandes cartéis colombianos nos anos 90, em uma rota importante do narcotráfico latino-americano, não pode mais ser escondida.

Prova disso é que foi tema na agenda dos principais candidatos à Presidência no ano passado e é mencionado pelos argentinos nas ruas das grandes cidades. Eu, de minha parte, àquela época, fiz apenas um par de reportagens centradas em como se configurava o comércio de drogas ilícitas em Buenos Aires e, depois, no ano passado, uma incursão ao mundo narco de Rosario.

Mas Cecilia González, também depois de superado o ceticismo inicial, foi muito mais longe. E o resultado disso hoje são dois livros. Além do primeiro, mencionado acima, agora chega às livrarias de Buenos Aires sua segunda parte “Narcofugas”. Ambos cobrem os distintos passos que marcaram a transição da Argentina de “país de trânsito” para “país produtor”, principalmente de drogas sintéticas. Da chegada dos estrangeiros, das pistas de pouso clandestinas no norte do país, das montagens dos laboratórios, das rotas por mar e ar desde o Sul até o Norte, tudo foi investigado à fundo. Mais importante, e especialmente no caso do segundo livro, está explicado o contexto político que permitiu que tal indústria e tal rota passassem a funcionar de modo tão frequente e rentável.

O elemento no qual González põe mais o foco é a efedrina, produzida no país-vizinho e levada para os cartéis mexicanos. A efedrina pode ser usada para produzir dietéticos, energéticos e outros tipos de medicamentos, mas também para a confecção de drogas sintéticas. Em muitas partes do mundo, sua produção e distribuição são altamente reguladas. Quando o governo mexicano implementou uma legislação restritiva à sua produção lá, os traficantes encontraram na Argentina, com leis muito mais flexíveis, um território fértil para receber os novos laboratórios. A atividade deslanchou durante os anos do kirchnerismo (2003-2015).

Peña Nieto (México) e Mauricio Macri (Argentina), em encontro em Buenos Aires (Foto Reuters)
Peña Nieto (México) e Mauricio Macri (Argentina), em encontro em Buenos Aires (Foto Reuters)

Na última campanha eleitoral, o candidato kirchnerista ao governo da Província de Buenos Aires, Aníbal Fernández, foi relacionado ao tráfico de efedrina no país. Até agora, o processo contra ele avançou pouco, embora os meios de comunicação anti-kirchneristas tenham explorado muito as supostas evidências que vêm se acumulando. Se é Fernández ou não o chefe do bando, a Justiça determinará. Na verdade, importa mais é perceber que, nos últimos anos, de fato, houve a criação de um ambiente político propício para que os laboratórios e o comércio florescessem. Sobre essa relação promíscua entre poder político e mundo narco, González trata muito em ambos os livros. E aqui é importante reforçar que, em seu país, tal promiscuidade hoje é tão evidente que muitos líderes regionais já não se elegem sem dinheiro narco nas campanhas e que os principais crimes e matanças envolvem não apenas o crime organizado mas a complacência de autoridades locais. O caso mais exemplar disso é o do desaparecimento dos 43 estudantes de Ayotzinapa, Guerrero.

O atual presidente argentino, Mauricio Macri, assim como o candidato que ele derrotou, o peronista Daniel Scioli, pregam uma política de “tolerância zero” e de combate bélico ao narcotráfico. Em vez de inspirar-se no vizinho Uruguai, que pelo menos vem experimentando uma solução alternativa, liberando e regulando a distribuição da maconha, Macri prefere o discurso da mão-dura, que mais agrada a seu eleitorado e ao argentino médio nesse momento.

Num lapso que depois teve de explicar, pois criou um problema diplomático, o papa argentino Francisco havia dito que a Argentina estava “se mexicanizando”. Como o próprio México já vem sentindo que dez anos de enfrentamento bélico com o crime organizado vem causando muito mais mortes e destruição (80 mil vítimas fatais e mais de 100 mil desaparecidos) do que soluções, seria importante que o governo argentino em vez de apostar no discurso da “tolerância zero” buscasse pelo menos se abrir para outras alternativas. Discutir a legalização parcial da maconha, por exemplo, ou promover um debate sobre redução de danos, além combater a corrupção que vincula líderes regionais e o narco poderiam abrir um caminho promissor.

Em entrevista recente sobre seu trabalho, González apontou a dubiedade do discurso oficial argentino. “Enquanto na ONU a chanceler Susana Malcorra fala de drogas apoiada num discurso de direitos humanos, internamente, o ministério de Defesa segue com o discurso repressivo e proibicionista.”

Mauricio Macri e seu par, Enrique Peña Nieto se encontraram na semana passada em Buenos Aires. Tomara que esse tenha sido um dos tópicos tratados a sério e que a troca de experiências ilumine a ambos os líderes.

Se precisarem de biografia sobre o assunto, os dois volumes de Cecilia González certamente os ajudarão. Antes de terminar esse post, queria apenas reforçar que a nobre colega o dedicou aos jornalistas mexicanos que vêm morrendo às pencas em seu país, tentando dar visibilidade ao que vem ocorrendo. Certamente, para quem está na frente de batalha, no México, esse estímulo é valioso para que não desistam do jornalismo, nesse caso tão necessário.

 

 

 

 

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