Sylvia Colombo https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br Latinidades Tue, 30 Nov 2021 12:31:53 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A difícil tentação de não mexer na Constituição https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/09/01/eles-querem-mudar-as-leis/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/09/01/eles-querem-mudar-as-leis/#respond Wed, 01 Sep 2021 14:27:19 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/1629929101_478014_1629929213_noticia_normal-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3881 Enquanto o Chile prepara uma nova Constituição que é resultado de um processo democrático, outros países da região têm visto seus mandatários avançarem sobre as leis com propostas menos claras e com toques autoritários e populistas.

Um deles é El Salvador. Já faz tempo que o o direitista Nayib Bukele não se presta mais a piadas de que é um “líder millennial” e cool. O que o jovem mandatário tem feito é digno de um filhote de autocrata. Primeiro, avançou contra o legislativo, depois, sobre juízes do tribunal supremo e, agora, tratando de mudar a Carta do país, em vigor desde 1983.

Já há alguns meses, Bukele entregou a seu vice, Felix Ulloa, a liderança de um comitê que tem como objetivo redigir reformas à Constituição nacional. Pelo que se revelou até agora, elas não são totalmente negativas, uma vez que fazem concessões no que diz respeito a direitos individuais, como casamento igualitário e relaxamento na draconiana proibição total do aborto. Por trás disso, está a ideia de afastar a tão presente Igreja Católica local das decisões políticas. Também se prometem reparações a abusos em direitos humanos na repressão da guerra civil (1979-1992).

As boas notícias, porém, param por aí. Está nos planos estender o mandato do presidente de cinco para seis anos. Além disso, o tribunal eleitoral sairia do controle da Justiça e seria uma entidade independente, com membros nomeados pelo Executivo. Em ambas as medidas, se vê um amplo espaço para que Bukele aumente e centralize seus poderes.

A reforma constitucional também deve prever que a aprovação de leis no Congresso seja mais fácil. Em vez de uma maioria de dois terços, exigirá apenas a de 50% mais um voto. 

A ideia é apresentar essas reformas ao texto de 1983 ao Congresso no próximo dia 15 de setembro, dia do bicentenário da independência de El Salvador. No parlamento, o partido de Bukele (Nuevas Ideas) é hegemônico. Depois disso, elas teriam de ser votadas num referendo. Mas isso não será um obstáculo para Bukele, que continua sendo um líder da aprovação popular na América Latina.

Em pesquisa recente, da Gallup, 87% dos salvadorenhos afirmaram seu apoio ao presidente, enquanto sua gestão tem apenas 11% de rejeição.

No México, o presidente de esquerda Andrés Manuel López Obrador passa já da metade de seu mandato encrencando com a Justiça eleitoral de seu país. Após seu partido, o Morena (Movimento de Regeneração Nacional) ter encolhido das Legislativas e seu esdrúxulo plebiscito para julgar ex-presidentes ter tido uma participação pífia (7% do eleitorado), o mandatário decidiu partir para cima das autoridades eleitorais.

AMLO (como é conhecido) considera que o Instituto Nacional Eleitoral (INE) e o Tribunal Electoral do Poder Judicial da Federação (TEPJF) são responsáveis pela baixa participação nas últimas votações e, assim, os responsabiliza indiretamente por suas próprias derrotas. Os ataques incluem chamar o poder eleitoral de “Frankenstein” e de um instrumento a serviço dos partidos tradicionais.

A solução para isso, ele já vem trazendo ao debate: uma reforma eleitoral. López Obrador afirmou que esta faria uma “renovação total” desses órgãos, por meio da remoção de todos os seus funcionários. “Uma mudança total, eles não são democratas, não respeitam a vontade da população e não estão a altura das circunstâncias. Precisamos de uma troca de funcionários para estabelecer a autêntica democracia no país”, afirmou.

Espera-se que a proposta chegue ao Congresso nas próximas semanas. Não se sabe, ainda, como seria o mecanismo para realizar essa demissão coletiva, quando muitos são funcionários do Estado, e como seriam as novas contratações, caso fossem aprovadas. Mas, com tantas prioridades na pauta, como a pandemia do coronavírus, seu impacto na economia e a imigração ilegal, essa não parece ser a principal das questões do país.

Chama a atenção, ainda, que AMLO continue obcecado com o sistema eleitoral mexicano. Afinal, não é de hoje que ele ataca essa instituição.

Em 2006, AMLO não aceitou a derrota na corrida presidencial contra o então vencedor, Felipe Calderón (PAN), e resolveu fazer uma campanha contra o resultado. Chegou a comandar o bloqueio de vias e a acampar no Zócalo da Cidade do México em protesto. Em 2012, fez o mesmo quando vencido por Enrique Peña Nieto (PRI).

Outro que está de olho em reescrever as leis de seu país é o também esquerdista Pedro Castillo, no Peru. Embora venha agindo com cautela nestas primeiras semanas desde que assumiu (em 28 de julho), por conta das polêmicas com relação a seu gabinete, o mandatário deixou claro em sua campanha e em sua posse que sua ideia era trocar a Constituição do país, de 1993, por uma nova.

O problema começa com a própria lei. Segundo atual texto, não é possível formar uma Assembleia Constituinte ou chamar um referendo para tal sem que seja por meio do Congresso. Ou seja, o Executivo sozinho não pode propor tal mudança. “Não é possível que o povo esteja condenado a continuar prisioneiro da atual Constituição”, já esbravejou Castillo em um discurso. A força política do mandatário, o partido Perú Libre, apesar de compor a maior bancada da assembleia unicameral do país, não tem a maioria.

Enquanto busca acordos improváveis ante um Congresso que, por pouco, não rejeitou logo de cara seu primeiro time de ministros, o Perú Libre, partido governista comandado pelo polêmico Vladimir Cerrón busca uma alternativa para colocar o plano em marcha. A agrupação considera a atual Constituição “neoliberal” e que apenas serve aos grupos de interesse que comandam a economia do país. Para Castillo, é necessário incorporar a ideia de uma nação pluricultural. Isso na teoria. Na prática, a oposição considera que uma nova Carta pode ser usada para o mesmo fim de seus aliados e gurus, o venezuelano Hugo Chávez e o boliviano Evo Morales. Ambos de fato promoveram novas Constituições mais inclusivas e que se refletiram em melhorias sociais. Porém, por outro lado, significaram uma ampliação dos poderes desses mandatários e uma escalada autoritária.

É importante que as sociedades salvadorenha, mexicana e peruana busquem fiscalizar esses processos pelas vias democráticas e pacíficas.

 

]]>
0
Os ‘fatos alternativos’ e o desprezo de AMLO ao jornalismo https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/07/18/os-fatos-alternativos-e-o-desprezo-de-amlo-ao-jornalismo/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/07/18/os-fatos-alternativos-e-o-desprezo-de-amlo-ao-jornalismo/#respond Sun, 18 Jul 2021 11:21:04 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/AMLO-krauze-Ramos-dictador-615-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3833 Desde o início de sua gestão, em 2018, o presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador (conhecido como AMLO) deixou claro que pelo menos um aspecto de seu mandato seria autoritário: o da relação com os meios de comunicação. Com a justificativa populista de que não favoreceria nenhum grupo midiático em especial, mas que seria “transparente” diariamente, determinou que quase toda a comunicação presidencial fosse feita por meio do espaço das “mañaneras”. Trata-se de uma sessão matutina que pode durar mais de duas horas, em que recebe poucos jornalistas num solene e belo espaço do Palácio Nacional.

Ali, ele fala livremente e responde a poucas perguntas. Muitas vezes monótona de escutar, por seu tom pausado e inalterado, a narrativa de López Obrador contém uma tentativa frustrada de transmitir imagens poéticas e históricas de sua própria gestão, que ele compara a um processo revolucionário. Desde então, porém, do ponto de vista factual, as sessões se mostram não apenas inócuas como equivocadas. Nas “mañaneras”, as cifras da pandemia, da violência causada pelo enfrentamento ao narcotráfico ou do assassinato de jornalistas são todas minimizadas e alteradas, sempre para tirar a responsabilidade do governo nessas tragédias.

É certo que há liberdade de imprensa no México, e que diversos meios de comunicação estrangeiros trabalham ativamente ali, muitas vezes questionando cifras e informações oficiais. E o que AMLO decidiu fazer com relação a eles? Abrir uma sessão em suas “mañaneras” para criticar sua cobertura. Chama-se “Quem é Quem Nas Mentiras da Semana”, um espaço oficial vergonhoso em que o mandatário critica e desmente matérias e jornalistas. Justo ele, que segundo uma agência de fact-checking local, mencionou fatos incorretos em mais de 56 mil oportunidades desde dezembro de 2018.

O embate mais circense que ocorreu recentemente em uma “mañanera” foi com o jornalista mexicano-americano Jorge Ramos. Este, com números oficiais na mão, questionou AMLO sobre o fracasso de sua política de enfrentamento aos homicídios relacionados à guerra contra o narcotráfico. López Obrador, com ar professoral e apontando o dedo indicador para o experiente jornalista, disse que Ramos estava errado, e que tinha “fatos alternativos” para dar a ele.

Num país em que 43 jornalistas foram assassinados durante o exercício de sua profissão desde 2018, a desmoralização diária que AMLO faz da imprensa independente do México é perigosa e antidemocrática. Ela anima a serem ainda mais hostis e violentos os milhares de inimigos dos jornalistas pelo país: autoridades corruptas, chefes de cartéis e milícias –em geral aqueles que estão por trás dos assassinatos desses profissionais. Pior ainda, normaliza a impunidade total –nenhum desses casos terminou até hoje em condenação– a quem comete esses crimes. Isso garante que continuarão ocorrendo.

AMLO iniciou sua gestão prometendo “abrazos y no balazos” (abraços e não tiros) em sua abordagem à violência no país. Claramente a estratégia não deu certo, uma vez que sua gestão, em comparação com seus antecessores recentes, já é a mais violenta do México, com mais de 86 mil homicídios desde que chegou ao poder.

Enfrentar a verdade e os que dizem a verdade pode parecer mais fácil do que enfrentar os assassinos. Mas, no fundo, acaba encorajando-os a serem ainda mais perigosos.

]]>
0
México no caminho do autoritarismo https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/04/01/mexico-no-caminho-do-autoritarismo/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/04/01/mexico-no-caminho-do-autoritarismo/#respond Thu, 01 Apr 2021 15:30:08 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/mexico-andres_manuel_lopez_obrador_-amlo-corrupcion_517960182_159078621_1706x960-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3768 O México terá eleições de meio de mandato no próximo dia 6 de junho.

Num país em que o período presidencial é de seis anos (sem reeleição), trata-se de um momento importante.

O presidente precisa que seu espaço político tenha um bom desempenho nesta votação para garantir o apoio do Congresso e ter governabilidade nos próximos longos três anos que tem adiante, assim como importa muito eleger autoridades regionais que o ajudem a liderar um país tão grande, mais ainda diante de um cenário de tamanha crise sanitária e de retração econômica. De outro modo, sua administração ficará completamente enfraquecida.

No caso atual, o esquerdista Andrés Manuel López Obrador, 67, está muito bem, não pelo que prometeu fazer, mas por continuar mantendo a popularidade alta (63%) diante de imensas adversidades. As pesquisas mais recentes mostram que o seu partido, o Morena (Movimiento Regeneración Nacional), está pelo menos 20 pontos adiante dos partidos de oposição quando se fala de Congresso. Nacionalmente, o país está mais dividido, o Morena lidera em pelo menos 15 dos 31 estados.

Estes números são intrigantes, uma vez que 49% dos mexicanos afirmam que o governo vai mal na economia, e 54% está contra a política de segurança, um dos mais graves problemas do México. A projeção de retração do PIB neste ano está por volta dos 9%.

Quando AMLO (como é conhecido) chegou ao poder, houve uma festa imensa no país. Sua eleição, depois de três tentativas, soava para muitos mexicanos como uma libertação com relação ao PRI (Partido Revolucionário Institucional), e como a virada de página com relação às duas administrações do PAN (Partido da Aliança Nacional), que havia metido o país numa sangrenta guerra contra o narcotráfico que já custou mais de 200 mil vidas.

O líder esquerdista veterano vem surfando desde então em uma alta aprovação popular, embora esteja desagradando tanto ao empresariado como os próprios progressistas que nele votaram, que começam a apontar nele o surgimento de um líder autoritário aos moldes de tantos já produzidos pela América Latina.

Essa transformação de AMLO surge clara no novo livro de um dos mais importantes pensadores do México hoje, Roger Bartra, em “Regreso a la Jaula” (ed. Debate, importado), que acaba de ser lançado. Na obra, o sociólogo descreve o caminho do autoritarismo que vem sendo tomado por AMLO.

Diz Bartra sobre o mandatário mexicano: “AMLO é um populista reacionário, que pode ser comparado às correntes populistas reacionárias da Europa, como Erdogan, ou com o próprio Trump, a quem tanto criticou”. Bartra explica que um sinal disso é sua “tentativa de fazer regressar o país dos anos 60 e 70, com uma economia fortemente estatizada e que se nega a reformas fiscais”. E completa. “Além disso, acrescentamos que está militarizando o país, e isso é uma razão para alarmar-se”. 

Os sinais de seu crescente autoritarismo se mostraram desde o início do mandato, em 2018. AMLO tomou posse com um discurso semi-esotérico de reconectar-se com o México pré-descobrimento, desacreditando a democracia. Com ele, foi atropelando intermediários e instituições. Impôs um sistema de comunicação no qual desvia de todos os meios de comunicação. O presidente mexicano não dá entrevistas e não responde diretamente aos meios. Sim, fala todos os dias nas tediosas “Mañaneras”, em que discursa diariamente e é o canal oficial de comunicação do governo.

No começo da pandemia, foi no espaço das “Mañaneras” que AMLO mostrou-se como um negacionista do vírus. Não estimulou o uso de máscaras, falava da necessidade de as pessoas saírem às ruas e aos restaurantes para “estimular a economia popular” e negou-se a dar uma resposta baseada na ciência ao coronavírus. O resultado foi um atraso imenso na tomada de medidas. Depois de muitas críticas, AMLO retrocedeu, mas não muito. Passou toda a comunicação sobre o assunto a seu titular da saúde, López Gatell. A princípio, este parecia muito eficiente, ao estabelecer um regime de quarentenas regionais. Mas foi sendo desacreditado por várias reportagens, especialmente de meios estrangeiros, que, através de levantamentos independentes, começaram a mostrar que o México estava tendo muito mais mortes do que as que registrava.

Finalmente, mais de 6 meses depois dessas denúncias, o governo teve que ceder. Na semana passada, admitiu que o número de mortes pelo coronavírus no país é, pelo menos, 60% maior do que o anunciado oficialmente.

Há, porém, outras áreas em que o governo AMLO vem falhando e em que seu autoritarismo vem sendo mais pronunciado. A segurança é um deles. O país continua numa guerra interna, com o narcotráfico comandando na prática vários estados, por meio de narco-empresários, narco-políticos e narco-policiais. Um dos exemplos mais públicos desse fenômeno se vê no fato de que a tragédia dos 43 estudantes desaparecidos em Ayotzinapa, em 2014, um crime cometido por vários personagens de poder vinculados ao tráfico, nunca foi resolvida.

E este é apenas o mais famoso entre muitos massacres parecidos.

AMLO assumiu com a promessa de reduzir a violência com um olhar distinto sobre a segurança. Nem a mão-firme como a do PAN, que desatou ainda mais a violência, nem a política de acordos obscuros com os cartéis do PRI. Sem que conheçamos bem, afinal, qual foi a via usada por AMLO, a violência vem crescendo ano a ano. E, em 2020, com pandemia e tudo, o número de homicídios foi de 35.515, apenas 0,3% menor que no ano anterior.

No último fim-de-semana, a revista “Proceso” publicou uma importante reportagem mostrando o aumento da influência dos militares no entorno do poder. A segurança não melhorou, mas AMLO cada vez está mais cercado de fardados, cujo apoio tem sido cada vez mais crucial para defender suas políticas.

Já o impulso estatista e o apego ao México dos anos 60/70 de que fala Bartra está se concretizando com a revogação da reforma energética que havia sido aprovada por Enrique Peña Nieto (2012-2018) e nos projetos de obras faraônicas como o Trem Maia ou na mega-base petrolífera que está construindo em seu estado Natal, Tabasco.

A população mexicana terá uma tarefa importante no próximo dia 6 de junho. Ou fazer um alerta ao presidente, para que mude o curso de seu comportamento rumo ao autoritarismo, ou dar-lhe os instrumentos para que continue igual.

 

]]>
0
Populismo de AMLO sugere atropelar a Constituição https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/09/24/populismo-de-amlo-sugere-atropelar-a-constituicao/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/09/24/populismo-de-amlo-sugere-atropelar-a-constituicao/#respond Thu, 24 Sep 2020 10:16:35 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/amlo-onu-640x360-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3657 Em sua intervenção na Assembleia Geral da ONU, o presidente Andrés Manuel López Obrador soltou uma frase que envergonhou mexicanos e viralizou nas redes. Ao elogiar Benito Juárez (1806-1872), considerado o fundador do México contemporâneo e vanguardista, não lhe ocorreu melhor exemplo que dizer que sua projeção internacional foi tanta que o pai do fascista italiano Benito Mussolini tinha-lhe dado esse nome porque era um admirador de Benito Juárez.

É possível que AMLO (como é conhecido) esteja mal-assessorado, mas não se deve descartar que, no fundo, seu populismo cada vez mais explícito no fundo guarda semelhanças com esse tipo de personagem _digo Mussolini, não Juárez.

Um exemplo disso é como ele vem sugerindo levar adiante a ideia de convocar uma consulta popular para que os mexicanos decidam se deve-se ou não levar a julgamento os cinco mandatários que governaram o país antes dele, entre 1988 e 2018. Nenhum deles está com um processo iniciado atualmente, embora existam investigações em andamento em que alguns estão envolvidos, como Felipe Calderón (2006-2012) e Enrique Peña Nieto (2012-2018).

Uma decisão dessas, de entregar ao povo o poder de decidir se esses ex-mandatários devem ou não ir a julgamento é um ataque ao Estado de Direito e sugere um tipo de tribunal popular bárbaro e primitivo. Por sorte, o México possui instituições que podem ainda colocar pedras neste caminho. Primeiro, a proposta tem de passar pelo Senado. Aí, é possível que seja aprovada, pois o partido de AMLO, o Morena, tem maioria. Depois, será a vez da Suprema Corte de Justiça, que determinará se a consulta é necessária e viável.

AMLO ainda vinha embalado pela popularidade com a qual se elegeu em 2018, mas esta veio caindo de modo constante desde o ano passado. Dos mais de 80% que tinha no começo da gestão, está em 47% hoje (segundo pesquisa realizada pelo Grupo de Economistas y Asociados). Os motivos são claros: a má administração da pandemia, o aumento da violência e da taxa de homicídios relacionadas ao narcotráfico, o prognóstico de uma queda do PIB de mais de 10% pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) em 2020 e por mudanças em seu próprio discurso de campanha _como passar de crítico de Trump a uma posição de vassalagem explícita.

A ideia da consulta popular é mais um gesto demagogo e populista. Não é necessário dizer que AMLO despreza os meios de comunicação e prefere “falar diretamente ao povo”. Na mesma linha, com esse gesto, mostra desprezo também ao sistema Judiciário, ao tentar transferir para a população a decisão de julgar ou não os presidentes que o precederam. Numa democracia com divisão de poderes, quem julga é a Justiça.

A proposta de AMLO é parte, também, de uma estratégia eleitoral. Em 2021, haverá eleições regionais no país. A ideia do presidente é fazer a consulta popular no mesmo dia, em 6 de junho. Trata-se de uma votação importante, na qual se define a governabilidade do país no segundo trecho de seu mandato (no México, é de seis anos). Ela escolherá 15 governadores, 500 deputados, 30 congressos regionais e mais de 2.000 prefeitos.

O apelo popular da consulta popular poderia alavancar as candidaturas dos políticos do Morena, e reforçar seu discurso de campanha contra a corrupção.

Uma plebiscito que sugira passar por cima da Justiça seria um ato autoritário e apelativo, um show mediático com o qual a figura do presidente ganharia protagonismo e poderia levantar sua aprovação popular. Parece uma ideia de quem tem pouco discernimento político ou mesmo, pura má fé.

Assim como a ideia de sugerir que Benito Mussolini merece alguma admiração.

 

]]>
0
López Obrador e Bolsonaro, dois lados da mesma moeda? https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/06/29/lopez-obrador-e-bolsonaro-dois-lados-da-mesma-moeda/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/06/29/lopez-obrador-e-bolsonaro-dois-lados-da-mesma-moeda/#respond Mon, 29 Jun 2020 07:58:29 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/5ef22c4a84eeb.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3597 Ambos lideram as duas maiores economias da América Latina. Ambos cultivam um tipo de poder personalista. Os dois desprezam a mídia e preferem a “conexão direta” com o povo em suas comunicações. Os dois minimizaram a pandemia do coronavírus, são acusados de maquiar os números dos contágios e seus países fazem, agora, uma atrapalhada, senão caótica, abertura econômica em busca de uma normalidade que já se mostrou impossível em países cuja curva de contágios ainda não se deteve. Um é de direita, o outro, supostamente, de esquerda. Mas a posição política, a essa altura, pouco importa. Andrés Manuel López Obrador (México) e Jair Bolsonaro (Brasil) mostram-se como dois líderes populistas sem preparo para a gravidade da situação que enfrentam.

Mais, com o discurso de priorizar a economia antes da saúde, estão falhando nas duas frentes. Com suspeita de haver subnotificação, o total de mortes no México pelo coronavírus, até agora, é de 26.915 pessoas. No Brasil, de 57,658. E, na semana passada, o Fundo Monetário Internacional (FMI) previu que a queda das duas gigantescas economias latino-americanas também seria grande. O PIB do México teria retração de 10%, e o do Brasil, de 9,1% em 2020.

O estilo pessoal de cada líder, obviamente, não é o único fator para explicar esse mau desempenho na pandemia, mas obviamente conta muito. Se, no México, López Obrador aparecia dizendo que as pessoas deveriam sair de casa e ir a restaurantes populares para reativar o consumo, Bolsonaro chamava o coronavírus de “gripezinha” e participava de atos populares sem precauções.

Os dois diferem no trato, é verdade. Se Bolsonaro é mais belicoso e agressivo no discurso, AMLO (como é chamado) cultiva um tom manso e aparentemente apaziguador. Ambos se apoiam numa visão religiosa de seu próprio poder. Bolsonaro citando versos da Bíblia, AMLO evocando uma mescla de catolicismo com as tradições religiosas ancestrais do país. Em suas aparições diárias nas chamadas “mañaneras”, suposto diálogo do líder mexicano com a imprensa, López Obrador parece mais um pregador, e o formato das coletivas não permite que ele fique exposto a perguntas incômodas.

Ambos, também, não param de pensar em eleições. Bolsonaro, em reeleger-se em 2022, e AMLO, com um objetivo mais próximo. Em junho de 2021, ocorrem as eleições de meio de mandato, que definem nada menos que 500 deputados, 15 governadores, além de parlamentos regionais em 30 estados e, ainda, 2 mil prefeituras. Do desempenho nesta eleição, depende o sucesso ou o fracasso da segunda metade do sexênio de López Obrador.

 

Há alguns dias, ambos deram mostras de humor involuntário ao tratar de tragédias. Bolsonaro, em sua live, homenageou os mortos pelo coronavírus com uma apresentação de sanfona, supostamente ao som da “Ave Maria” de Franz Schubert. Nas palavras mais certeiras do humorista português Ricardo Araújo Pereira, “a música tanto pode ser a Ave Maria do Schubert como o ‘Parabéns a Você’. O Bolsonaro diz que é uma homenagem aos que se foram, mas não diz que são pessoas. Pode ser uma homenagem muito bonita a um gato morto. A homenagem reproduz o som de gatos que estão miando”.

 

De seu lado, López Obrador apareceu em três vídeos postados em sua rede social tentando inovar o modo de comunicar que havia ocorrido um terremoto de 7.4 com epicentro na região de Oaxaca. Em vez de um pronunciamento à nação, apareceu, de modo patético, numa chamada telefônica em que, ao longe, se ouvia o responsável por dar o informe sobre os estragos enquanto o presidente lutava para encontrar uma caneta sobre sua própria mesa, destapá-la e escrever algo num papelzinho. Depois, interrompia o interlocutor e repetia o que ele havia falado, com muito menos detalhes. Pouco depois, apareceu novamente ao telefone com o mesmo sujeito, caminhando pelo Palácio Nacional, dando instruções e dizendo que a comunicação estava falha _como se Oaxaca ficasse em outra galáxia. A ideia era passar uma sensação de que ele estava no comando ante a tragédia (que foi menor desta vez, matando 10 pessoas), mas acabou passando a impressão contrária, transmitindo mais confusão que confiança. Não é necessário dizer que os vídeos viraram piada nas redes.

México e Brasil são países fundamentais na região. Um na Alianza del Pacífico, outro no Mercosul. Um com 126 milhões de habitantes, o outro com quase 210 milhões. O que ocorre com ambos repercute nas economias de toda a América Latina. Ter à sua frente dois líderes de estilo populista e que não demonstram estar à altura da crise que enfrentam é uma tragédia. Daqui para a frente, é torcer para que os pesos e contrapesos da democracia possam controlar seus impulsos autoritários.

]]>
0
Um mapa sonoro para a fronteira do México com os EUA, por Valeria Luiselli https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/02/04/um-mapa-sonoro-para-a-fronteira-do-mexico-com-os-eua-por-valeria-luiselli/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/02/04/um-mapa-sonoro-para-a-fronteira-do-mexico-com-os-eua-por-valeria-luiselli/#respond Wed, 05 Feb 2020 00:54:49 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2020/02/Valeria_Luiselli_foto_2_Diego_Berruecos-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3505 Na última vez em que conversei com a escritora mexicana Valeria Luiselli, acabava de sair no Brasil seu livro “Arquivo das Crianças Perdidas”, romance que, assim como o ensaio “Los Niños Perdidos” se baseava em investigações realizadas na fronteira entre o México e os EUA e em entrevistas com imigrantes, principalmente vindos da América Central. Agora, a reencontrei no Hay Festival, em Cartagena (Colômbia), no meio do processo de criação de mais um trabalho relacionado à fronteira. Desta vez, a escritura virá em segundo plano. Luiselli prepara uma “paisagem sonora” da região, que primeiro será um arquivo, depois uma performance e, por fim, um ensaio.

“Não quero ficar conhecida como uma escritora de um tema só, mas a fronteira está me atraindo muito nos últimos tempos”, disse Luiselli, 36, que vive em Nova York e que teve seu trabalho elogiado por Barack Obama, que a incluiu na lista dos melhores autores que leu em 2019. “Arquivo das Crianças Perdidas” também entrou no ranking dos melhores do ano do “The New York Times”.

A obra atual consiste em gravar os sons da fronteira, desde o vento na região onde já foi construída uma parte do muro de Donald Trump, até o da natureza, nos vales e montanhas, e o das pequenas cidades, de ambos os lados.

“A ideia é refletir sobre a história da violência na fronteira entre México e EUA. Então pensei em três marcos históricos. O ano de 1850, quando, depois da guerra com os EUA, o México vende a esse país ainda mais um trecho de terra, no Arizona. Depois, a chegada das ‘maquiladoras’, no século 20, e, agora, a construção dos grandes centros de detenção para imigrantes”, conta Luiselli. “É nessa zona que se encontram mais casos de violência, racismo e xenofobia. Mas também  há vilarejos do lado americano onde há gente que se manifesta contra isso, contra o muro, contra os vigilantes (civis que caçam imigrantes ilegais) e a favor da preservação do ambiente. É uma região muito rica em histórias a serem contadas”.

A isso, Luiselli vai contrapor outro relato, o de vilarejos como Shakespeare, no Estado norte-americano do Novo México, onde ocorrem ensaios de recriações históricas _esse tipo de espetáculo é comum nos EUA, e reconstrói momentos do passado americano, sempre de forma a glorificá-lo. “Em Shakespeare há ensaios de tiroteios, de enforcamentos, e de outras coisas que fazem parte do imaginário americano sobre a conquista do território e o mito da fronteira. Só que os momentos que são escolhidos sempre apagam os indígenas, os imigrantes, populações que foram vítimas da violência ao longo do tempo”. Ao contrapor os dois ruídos, Luiselli diz que pretende “restituir as vozes que foram apagadas”.

Sobre o México atual, Luiselli comentou que a decepção com a presidência de López Obrador vem aumentando, com as políticas anti-imigração e que vão contra seu discurso original. “Creio que cada vez mais se parece a Trump, como um populista de direita, que está indo contra a liberdade de expressão e fazendo aumentar a xenobofia dos mexicanos com relação os centro-americanos”.

 

]]>
0
Acolher refugiados e perseguidos é bela tradição mexicana https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/11/12/acolher-refugiados-e-perseguidos-e-bela-tradicao-mexicana/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/11/12/acolher-refugiados-e-perseguidos-e-bela-tradicao-mexicana/#respond Tue, 12 Nov 2019 22:09:36 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/sinmarcadeagua_1_-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3451 Há quem pense que a acolhida do México ao agora ex-presidente boliviano Evo Morales tem a ver com o simples alinhamento ideológico deste com o atual mandatário mexicano, o também esquerdista Andrés Manuel López Obrador. Ou seja, uma mera questão conjuntural.

Porém, um dos belos legados da tradição mexicana é justamente este, o de acolher estrangeiros com problemas políticos, refugiados ou perseguidos. Basta lembrar das centenas que fugiram das ditaduras do Cone Sul nos anos 1970 (brasileiros, argentinos, chilenos e uruguaios), para ficar num exemplo próximo. Ou do líder revolucionário soviético León Trotsky que, tentando escapar de Stálin, em 1936, foi acolhido pelo presidente Lázaro Cárdenas por influência do pintor Diego Rivera e se refugiou no lindíssimo bairro de Coyoacán, na Cidade do México. A fúria de Stálin contra ele, porém, foi maior, e Trotsky acabou sendo assassinado ali mesmo. Curioso é que essa terra que deve ter parecido tão distinta à sua, acabou sendo o lugar em que hoje está seu legado. Não apenas sua casa, seus objetos e muitos de seus escritos seguem ali, como seu neto, Esteban Volkov, que entrevistei na Cidade do México há alguns anos e que é a cara do avô, mas adora quesadillas e tacos e fala com o mais puro sotaque “chilango”.

Desde que decidiu que se aceitaria o pedido de asilo de Morales, o chanceler mexicano, Marcelo Ebrard, vem fazendo referências a essa tradição. Explicou que ela está viabilizada pelo artigo 15 da Constituição, que define o acolhimento como um direito humano.

Na Argentina, a gratidão pelo México é tão profunda que muitos ex-montoneros, intelectuais e defensores de direitos humanos que tiveram de deixar o país durante o regime militar (1976-1983) não quiseram voltar nunca, e são chamados de “argen-mex”.

Entre outros exilados importantes, o México recebeu ainda mais de 20 mil espanhóis republicanos durante e depois da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), fugindo das garras de Franco. E, em 1955, foi nesse território que o cubano Fidel Castro se encontrou com o argentino Ernesto “Che” Guevara, antes que ambos iniciassem sua luta pela Revolução Cubana. O México também jamais aceitou aplicar sanções contra Cuba e seguiu sendo o melhor aliado da ilha socialista nos piores anos da Guerra Fria.

Mais atrás ainda, o poeta José Martí (1853-1895), um dos próceres de Cuba, também passou um tempo exilado no México antes de virar um dos heróis da independência cubana.

No México, não se trata de proteger apenas quem tem afinidades ideológicas, mas sim de respeitar uma Constituição histórica, de viés humanitário, e que deixou marcas profundas na política e na cultura do país.

Se hoje o México é, também, célebre por sua literatura, seus movimentos artísticos e suas revistas culturais, deve muito a esses refugiados ou perseguidos vindos da América do Sul, da Europa ou da longínqua então União Soviética. Trata-se de um exemplo vivo de como a imigração e o acolhimento ao estrangeiro só tendem a enriquecer uma cultura e uma sociedade.

 

]]>
0
Jornalismo posto à prova em Tijuana https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/04/08/jornalismo-posto-a-prova-em-tijuana/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/04/08/jornalismo-posto-a-prova-em-tijuana/#comments Mon, 08 Apr 2019 21:07:05 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2019/04/1554485631824-tijuana-la-serie-de-netflix-muestra-los-riesgos-del-periodismo-en-mexico.001-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3320
“Tijuana”, sobre jornalistas mortos e a realidade social na fronteira do México (Foto Divulgação)

Como fazer uma boa série sobre a situação mexicana e o jornalismo local sem cair em estereótipos e mostrando com as cores reais a complexidade de uma cidade como Tijuana? Que sim, é violenta, perigosa, mas também tem, como tantas regiões do México, disparidades incríveis, cassinos, casas luxuosas, gente rica vivendo bem, e tramas entre a mídia e o poder que selam pactos ou abrem guerras entre famílias por décadas? A solução é trabalhar com uma maioria de criadores, produtores e atores mexicanos e que se estude bem a história e a construção do tecido social local.

Assim é “Tijuana”, exibida antes na Univisión e que estreia agora na Netflix. Criada pelo veterano da TV mexicana, Daniel Posada (de “El Chapo”), a série tem no elenco um ator peso-pesado, Damián Alcazár, que interpreta Antonio Borja, um dos donos do jornal “Frente Tijuana”, e outros muito talentosos, como Claudette Maillé, que faz a ponderada diretora do diário, Federica. Além deles,  uma geração de novatos, como Ivan Aragon, que faz Andrés, o filho de Borja, motivado a descobrir os segredos do passado do jornal, Tamara Vallarta, que é Gabriela, uma repórter que vai ao limite para provar seu talento, e Tete Espinoza, a fotógrafa Malú, que se envolve emocionalmente nas coberturas. À frente da equipe, o calejado chefe de redação Lalo (Rolf Peterson).

O elenco acaba refletindo também um dos aspectos relevantes não apenas para o jornalismo mexicano como o mundial, o “gap” entre a geração anterior, acostumada a um modo de fazer reportagem, uma ética e, principalmente, um formato, o de papel, e que, pelas mesmas razões que estão mudando o jornalismo no mundo inteiro, hoje precisa aprender com os mais novos como ser mais ágil, ousado, dar novos enfoques às reportagens, e como sobreviver financeiramente. Os mais velhos por sua vez, principalmente encarnados na figura de Antonio Borja, insistem em passar adiante a velha e ainda válida ética jornalística, que se faz complicada de seguir em uma terra sem lei como Tijuana, com políticos corruptos, cartéis de narco por trás das campanhas eleitorais, empresas de fachada, que por fora são “maquiladoras”, e por dentro, facilitadoras do transporte de substâncias ilegais aos EUA.

É nesse ambiente que se desenvolve a trama. A equipe do “Frente Tijuana” quer investigar quem mandou matar um dos candidatos a governador de Baja California, Eugenio Robles (Roberto Mateos), um ex-operário que quer mudar, em favor dos trabalhadores, as regras a que são submetidos nas fábricas locais, as “maquilas”. Óbvio que, assim como os jornalistas incômodos, o candidato Robles não dura muito tempo, e é brutalmente assassinado por um sicário.

O jornal abraça o caso e, de repente, começa a sentir pressão do partido do governo, que na série se chama PTI, mas usa o logo e as cores do tradicional PRI (Partido Revolucionário Institucional), conhecido, entre outras coisas, pelo seu passado de corrupção. O “Frente Tijuana” passa a sofrer sufoco com os preços da gráfica e do papel, por parte dos anunciantes e a pressão para migrar para o digital. Antonio Borja resiste o que pode, sob o lema: “sem imprimir, não existimos”.

Além da história principal, que se baseia na caça de pistas na investigação da equipe do “Frente Tijuana” para encontrar o assassino de Robles, há outras subtramas. Andrés, o filho de Antonio, quer descobrir como foi morto o tio, co-fundador do semanário, e com isso se envolve perigosamente na zona de influência do empresário que é tido como o mandante do crime, às costas do pai. Também surgem subtramas sobre imigrantes centro-americanos mortos na fronteira pelos próprios “coyotes” que haviam recebido dinheiro para cruzá-los, e sobre prostituição e contrabando de crianças.

O “Frente Tijuana” se inspira na história de um semanário que existe no país, o “Zeta”, também famoso por não intimidar-se diante de ameaças. O “Zeta” tem já 39 anos, teve um de seus diretores, Héctor “El Gato” Félix Miranda, assassinado em 1988, e um jornalista, Francisco Javier Ortiz Franco, que investigava o narcotráfico local, morto em 2004. Na série, histórias parecidas ocorrem, incluindo uma quase destruição de sua redação por bandidos armados por metralhadoras.

Não há exageros nas histórias que conta “Tijuana”, que reflete o que vem passando em várias redações do interior do país nos últimos anos. Além de mostrar muito do que é a violência no México hoje, e principalmente a violência contra jornalistas, é um bom ponto de partida para a discussão sobre como seguir fazendo jornalismo, com as regras básicas de ética da profissão, num ambiente como este e num mundo em transformação.

São lembrados jornalistas famosos e reais, mortos nos últimos anos, como Javier Valdez e Miroslava Breach. Eles integram a lista de, pelo menos, 124 jornalistas assassinados entre 2000 e 2018, além dos 19 desaparecidos. Segundo a ONG Artículo 19, que monitora esses números, houve, apenas em 2018, 544 ataques contra a imprensa. E talvez o número mais assustador seja o da impunidade _99,13% desses crimes não foi sequer julgado.

Em tempos em que o presidente do México elegeu-se com um discurso de que a violência no país era um problema a ser atacado de uma nova maneira, sem o recurso único do enfrentamento direto, “Tijuana” também serve para aumentar o ponto de interrogação nesse sentido. Como e quando as cifras de homicídios irão baixar? Como se garantirá a liberdade de expressão? E como se desarmará esse sistema já solidificado em que os poderosos se aliam aos narcos, enquanto os mais pobres e os jornalistas morrem?

]]>
1
Chapo condenado, e agora? https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/02/12/chapo-condenado-e-agora/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/02/12/chapo-condenado-e-agora/#comments Wed, 13 Feb 2019 00:49:26 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2019/02/fotonoticia_20190108210944_640-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3288
O traficante Chapo Guzmán, considerado culpado em julgamento nos EUA (Foto El Universo)

Uma vez, ao entrevistar o filho do líder do Cartel de Medellín, Pablo Escobar (1949-1993), Juan Pablo Escobar, que vive aqui em Buenos Aires, ele me disse: “No dia seguinte em que assassinaram meu pai, não faltou uma grama de cocaína no mercado de drogas de Medellín”. E é verdade que, mesmo com esforços de distintos tipos de controlar, vigiar e perseguir os cartéis colombianos, que mudaram de estrutura e se horizontalizaram, houve avanços no sentido de haver menos mortes causadas pela guerra ao narco, mas a Colômbia continua sendo o maior provedor de cocaína para os EUA e para grande parte do mundo.

O que estou querendo dizer? Que não vale nada perseguir e prender os grandes barões da droga? Claro que não. Eles precisam enfrentar a Justiça não apenas por crimes de comércio ilegal de substâncias ilícitas, mas por todo o sangue derramado por conta da natureza de seu negócio. Mas a criação desses barões como anti-super-heróis tem também seu lado daninho. Pois servem de contra-exemplo para adolescentes, para a indústria cultural, onde são pintados como “rebeldes anti-sistema”.

Desde a derrocada dos grandes cartéis colombianos, nos anos 1990, o sistema do narco em torno desses “drug lords” mudou. As estruturas ficaram mais fragmentadas, horizontais, ou seja, muito mais difíceis de serem capturadas, e o comércio seguiu. E, enquanto não houver uma discussão séria sobre legalização e acesso às drogas com enfoque para políticas de saúde pública, não sairemos desse ciclo. As drogas ilícitas, enquanto continuarem sendo ilegais, continuarão movimentando cifras altíssimas e favorecendo não mais apenas os super-traficantes, mas também os narco-empresários, narco-políticos, narco-presidentes e por aí vai.

É claro que até a indústria do entretenimento prefere a figura do “drug lord” que escapa de todas as prisões e emboscadas, engana a polícia, o governo e a CIA, como prova o sucesso da série “Narcos” e de suas seguidoras, que fazem com que inevitavelmente adolescentes, jovens e o público em geral torçam para que os bandidos se deem bem, criando um precedente terrível para o futuro.

Mas voltemos ao “Chapo”, considerado culpado, nesta terça-feira (12), de todas as acusações pelas quais respondia, relacionadas a seu comando do cartel de Sinaloa: narcotráfico, assassinatos, fugas de cadeias, mortes por encomenda. Sua sentença final sairá dia 25, e é pouco provável que ele não pegue penas máximas em todos os casos, uma vez que está sendo julgado nos EUA, onde seu poder de corromper a Justiça é pequeno ou nulo.

Olhemos, porém, os números. Com Chapo, líder do cartel de Sinaloa, o mais perigoso e rico do México, já preso, 2018 foi um ano com uma cifra altíssima de homicídios relacionados à guerra ao narco: 33.341 pessoas. Na verdade, o mais alto desde que se começaram a realizar essas estatísticas, em 1997.

Quanto ao fluxo de substâncias ilícitas, que vão da marijuana às chamadas drogas de desenho, os opióides e heroína, com destino final os EUA, houve também um aumento _na época do Chapo era maconha e cocaína, apenas.

Os meios que acompanharam o julgamento levado adiante pelo juiz Brian Cogan, numa corte do Brooklyn, disseram que todos os 10 crimes a que o Chapo Guzmán foi relacionado tiveram grandes quantidades de evidências contra ele, num julgamento que durou três meses, e com poucos espaços para que a defesa pudesse armar uma estratégia de saída. Quando tudo estava terminando, conta-se que Chapo olhou para sua mulher, Emma Coronel, e para suas filhas gêmeas de sete anos com a mão no coração e uma expressão facial de quem já aceitou que, apesar de possuir US$ 1 bilhão (contabilizados), deverá passar o resto de sua vida na prisão.

Diego Luna, como Félix Gallardo, patriarca dos narcos mexicanos retratado em “Narcos Mexico” (Foto Divulgação)

Seria importante que o novo governo do México tomasse a prisão do Chapo como um ponto final de um certo modo de combater o narcotráfico. E a atual Presidência do esquerdista Andrés Manuel López Obrador parece estar nessa sintonia. Segundo ele, já não haverá mais “guerra ao narco”, esta que começou com o direitista Felipe Calderón (2006-2012), que já consumiu 80 mil vidas e causou mais de 100 mil desaparecidos. AMLO (como é conhecido) diz que “perseguir ‘capos’ não será uma prioridade”, e sim reforçar seu projeto, ainda um pouco vago, de criar uma “guarda nacional”.

Seus críticos creem que isso militarizaria ainda mais o México. E é verdade. Porém, quem conhece algo do país sabe o quanto instâncias do Exército e das polícias regionais estão corrompidas pelos cartéis. Até que ponto essa “guarda nacional” poderá permanecer “limpa” é o desafio de AMLO.

“Oficialmente não há mais guerra”, disse AMLO ao tomar posse no último dia 1 de dezembro. O que precisa, então, a tal “guarda nacional”, para ser eficiente? Primeiro, contar com a colaboração dos Estados, e para isso será necessário desmontar uma difícil trama de governos regionais cujas campanhas eleitorais são pagas pelo narco local. Depois, armar um sistema de uso e compartilhamento de inteligência entre os Estados, para poder seguir e acompanhar os movimentos dos cartéis, agora mais móveis e divididos. Depois, tratar o assunto de descriminalizar algumas substâncias e montar um sistema de saúde pública que saiba lidar com os viciados. Nem tudo isso consta do programa vago apontado por AMLO, ainda.

Porém, se ele declarou o “fim da guerra”, são questões que tem de levar em consideração.

 

 

O caminho parece complicado, muito mais complicado do que repartir armas e mandar que Exército e cartéis se matem. Mas essa estratégia já há mais de uma década não funciona, além de ter ceifado milhares de vidas, entre militares, delinquentes e civis. Está bem que não existam mais Escobares, nem Chapos. Isso terá de obrigar Hollywood e a Netflix a buscar outros filões. Mas será por uma causa nobre, que outras pessoas sigam vivendo sem ter esses sujeitos como ídolos da morte a levar seus filhos e parentes.

]]>
1
Será o México o balão de oxigênio de que Maduro necessita? https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/01/05/sera-o-mexico-o-balao-de-oxigenio-de-que-maduro-necessita/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/01/05/sera-o-mexico-o-balao-de-oxigenio-de-que-maduro-necessita/#comments Sat, 05 Jan 2019 12:45:06 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2019/01/maduro_amlo-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3269
Maduro, López Obrador (centro) e as respectivas mulheres (Foto Presidência do México), no DF

Que a declaração do Grupo de Lima, divulgada na sexta-feira (5), após encontro de chanceleres e representantes dos 14 países membros da aliança, condenaria o “novo mandato” do ditador Nicolás Maduro na Venezuela, que tem início no próximo dia 10, chamaria eleições livres e pediria que a Assembleia Nacional, de maioria opositora, retomasse suas funções era algo mais ou menos esperado. 

O que causou estranheza foi a recusa do México de assinar o documento, sendo o único dos integrantes da coalizão a ficar de fora. Questionado, horas depois, sobre a razão, o presidente recém-empossado, Andrés Manuel López Obrador, disse apenas que o México “não se meteria em assuntos internos de outros países”.

A questão da soberania é uma fronteira tênue que divide os países da região. A Bolívia e o Uruguai costumam justificar assim a razão de não fazer críticas mais duras à ditadura venezuelana. Porém, há matizes nessa questão. Nenhum país do Grupo de Lima, e isso também consta do documento assinado na sexta-feira, defende, pelo menos abertamente e por enquanto, uma intervenção militar na Venezuela. Essa proposta, inclusive, até daria mais fôlego à retórica do regime, que usaria o argumento da ameaça imperialista em seu discurso de propaganda, e com isso encontraria apoio popular para armar-se mais e provocar militarmente os vizinhos.

Porém, nos níveis diplomáticos, políticos e econômicos ainda há muito que pode ser feito para enfraquecer Maduro sem que isso possa ser definido como uma ameaça à soberania, e isso também consta do documento assinado na capital peruana.

Ficou, portanto, difícil de entender a posição do México. Durante o mandato de Enrique Peña Nieto (2012-2018), as críticas ao endurecimento do regime venezuelano foram duras. Já o esquerdista AMLO, como é chamado seu sucessor, parece ter decidido amenizar esse clima hostil. Chamou Maduro para sua posse, e recebeu de volta uma resposta pouco auspiciosa, Maduro foi vaiado por onde passou e teve de deixar às pressas a capital mexicana.

Se o México decidir alinhar-se às posições de Bolívia, Cuba e Nicarágua e não tomar ações para ajudar a pressionar Maduro, pode virar o balão de oxigênio tão esperado pelo ditador venezuelano, justo num momento em que este começa a ver parte do apoio interno de sua própria base de apoio, militar e civil, tremer. É hora de pressionar mais, não menos. E principalmente de não dar-lhe novos aliados, mais ainda se este for a segunda maior economia da América Latina.

Durante sua campanha, AMLO não falou muito de política externa. Mais, ainda declarou que “a melhor política externa é a política interna”. Seus pontos principais foram o ataque a corrupção, aos altos gastos administrativos e a proposta de criar uma guarda nacional para combater a violência no interior. Ou seja, uma pauta interna importante, mas que não deveria excluir a externa num mundo cada vez mais interconectado.

Com os EUA, AMLO mostrou que pretende ser pragmático. Assinado o novo tratado de livre comércio com seus dois vizinhos do norte, ainda não mostrou desacordos frontais com Donald Trump, inclusive aceitando os integrantes da caravana de imigrantes da América Central que os EUA devolveram a seu território. Com 80% de suas exportações tendo como destino o vizinho do norte, AMLO não tem outra opção que a de ser amigo dos EUA, embora muitos de seus eleitores tenham votado nele imaginando que ele confrontaria Trump, principalmente no que se refere ao polêmico pagamento do “muro”, que Trump quer construir na fronteira. A estes, AMLO por enquanto segue respondendo com a limitada frase: “menos política externa, mais política interna”.

Será uma pena e um retrocesso que o México abra mão de condenar e pressionar Maduro. A crise venezuelana gera instabilidade regional em diversos setores, da saúde à geopolítica, da economia à xenofobia. Pelo seu tamanho e por sua importância histórica nos destinos da região, o México não deveria ficar neutro no debate sobre o futuro da Venezuela, muito menos pender mais para o lado de um apoio a Maduro.

 

]]>
1