Sylvia Colombo https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br Latinidades Tue, 30 Nov 2021 12:31:53 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Dez anos sem o olhar astuto e devorador de Rodolfo Fogwill https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/08/28/dez-anos-sem-o-olhar-astuto-e-devorador-de-rodolfo-fogwill/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/08/28/dez-anos-sem-o-olhar-astuto-e-devorador-de-rodolfo-fogwill/#respond Sat, 29 Aug 2020 00:05:59 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/images.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3635 Poucos eventos, típicos desta época pandêmica, e virtuais, lembraram os 10 anos da partida do escritor argentino Rodolfo Fogwill (1941-2010), morto devido a complicações respiratórias vinculadas a seu resistente vício aos cigarros. A lembrança, porém, foi intensa, em termos de homenagens postadas nas redes, artigos de críticos e de colegas escritores nos meios de comunicação argentinos.

A editora Alfaguara, em sua filial local, que lançou a maioria de seus livros, realizou uma semana de leituras, palestras e sessões de exibição, tudo online, tendo a obra de Fogwill como tema. Dela participaram escritores como Martín Kohan, Leila Guerriero, Pola Oloixarac, Alan Pauls, Patricio Pron e Patricio Zunini, entre outros.

Além disso, a Biblioteca Nacional também divulgou vários vídeos em que Fogwill aparece lendo seus próprios textos, algo que emociona, passados tantos anos.

Há uma novidade, porém. Em março do ano que vem, a Alfaguara argentina lançará uma edição especial de seus três primeiros livros de contos: “Mis Muertos Punk” (1980), “Pájaros En La Cabeza” (1985) e “Música Japonesa” (1982).

Os volumes se somam aos livros póstumos também lançados pela Alfaguara, “La Gran Ventana de Los Sueños” (2013), sobre o qual escrevi, na época, para a Ilustrada, e “La Introducción” (2016), seu último romance.

Rodolfo Fogwill faz parte da geração que renovou a literatura argentina pós-Borges e Cortázar. Ao lado de Cesar Aira, Ricardo Piglia (1941-2017) e Juan José Saer (1937-2005), marcou uma nova fase nas letras argentinas. Foram autores que discutiram o realismo e lançaram um olhar crítico à própria classe média argentina.

O principal exemplo disso é o livro mais conhecido de Fogwill, “Os Pichiciegos”, sobre os garotos que resolvem escapar do Exército durante a Guerra das Malvinas. O romance foi escrito em seis dias e pouco depois do conflito, que terminou com uma terrível derrota da Argentina.

Fumante inveterado, foi vítima de vários efeitos do cigarro, desde uma deformação no rosto até o enfisema que terminou matando-o de forma relativamente precoce.

Em 2007, na Bienal do Livro do Rio, entrevistei Fogwill, em meio a uma cortina de fumaça, pois ele apagava um cigarro acendendo outro. Mesmo com o cigarro aceso na ponta dos dedos, dizia que andava obcecado em melhorar seu modo de vida, estava indo a uma academia e nadando. Seu corpo magro, alto e enrugado transmitia uma estranheza excêntrica que tinha como emblema máximo seu olho mais aberto que o outro, atento ao interlocutor, e sua fina ironia. 

Em homenagem aos dez anos de sua morte, republico aqui os principais trechos da entrevista realizada por mim, com Fogwill, em 2007, no Rio de Janeiro.


Folha –
“Os Pichiciegos” foi escrito no calor dos acontecimentos, em 1982. Ou seja, não havia ainda relatos pessoais sobre o que estava sucedendo (na Guerra das Malvinas). Em que baseou seus personagens?

Rodolfo Enrique Fogwill – Quando escrevi essa história, não havia informações sobre o cenário de conflito. Tudo é invenção. Acertada, mas invenção. Diria que foi uma invenção dedutiva. A visão dessa guerra falsa e subterrânea era produto do meu conhecimento sobre as guerras, sobre aquela geração de rapazes, sobre o comportamento dos impérios e sobre o clima inóspito do sul argentino.

Folha – Por que o sr. preferiu o ponto de vista dos que desertaram, e não o dos que seguiram lutando?

Fogwill – Naquela época, assim como hoje, eu odiava as Forças Armadas argentinas, o Exército britânico e o imperialismo. Se me tivessem recrutado compulsivamente, como aconteceu com os rapazes do livro, eu teria optado pela deserção. A propaganda oficial dos dois lados recrutava consciências. Isso era um desafio para um escritor de ensaio ou de narrativa. 

Requeria operações de ficção e trabalhos com a narrativa. Não podia fazer outra coisa senão esse tipo de relato. Meus desertores imaginários eram o melhor objeto de investigação para minha ideia, a de que um desertor é quem constrói uma economia de guerra pelas costas dos outros. Parecia-me mais verdadeiro falar deles do que investigar o destino dos infelizes que se condenaram a protagonizar o conflito. Penso que o verdadeiro, no ser humano, só aparece no exercício da liberdade dentro de situações-limite.

Folha – Por que a divisão da obra em duas partes, a primeira, composta apenas pelos diálogos dos garotos, e a segunda, mais ensaística?

Fogwill – A primeira parte é o que eu achava que estava acontecendo no cenário do conflito. A segunda corresponde ao que imaginei que sucederia depois. Era uma aposta alta e o rumo dos acontecimentos posteriores mostrou que eu tinha razão.

Folha – Estamos no aniversário de 25 anos do conflito das Malvinas. Que lugar acha que o episódio teve dentro do processo de redemocratização da Argentina?

Fogwill – A aventura das Malvinas se produziu quando a ditadura já havia derrotado a guerrilha e sua frente interna estava minada pelos que preparavam a transição democrática com o apoio do consenso internacional. Sem as Malvinas, a transição teria sido mais lenta, mas teria se cumprido da mesma forma.

Folha – O debate sobre os suicídios de ex-combatentes, cujo número continua aumentando [estima-se que mais de 260 oficiais tenham se matado desde então], está muito presente na sociedade argentina. Você também pensou nessa conseqüência enquanto escrevia o livro?

Fogwill – Enquanto a tropa resistia sem contato com o país e com o mundo, eu imaginei duas manifestações trágicas posteriores. O fato de que os ex-soldados seriam tratados cada vez mais como doentes mentais e o esquecimento, que resultou nas pensões vergonhosas que recebem até hoje. A sociedade argentina usou todos os meios para neutralizá-los. Esperava pelos suicídios, mas não numa taxa tão alta.

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Doença e literatura na América Latina em 5 livros https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/06/05/doenca-e-literatura-na-america-latina-em-5-livros/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/06/05/doenca-e-literatura-na-america-latina-em-5-livros/#respond Fri, 05 Jun 2020 20:59:37 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/0ad79514-2041-4357-bce4-26bcaf015809_1200.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3571 “Esta penumbra é lenta e indolor/ flui por uma mansa inclinação/ e se parece à eternidade.”

Assim descrevia o argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) a sua própria cegueira, que foi paulatina até deixá-lo sem ver nada no final de sua vida. Doenças e sofrimentos físicos fazem parte da literatura latino-americana desde sempre, basta lembrar-se de como morriam os indígenas com as doenças trazidas pelos europeus, deixando esse grito registrado nos documentos históricos.

Segue aqui uma pequena seleção de relatos contemporâneos sobre enfermidades e escrita na região:

  1. “Antes que Anochezca” (ed. Tusquets, importado) – Reinaldo Arenas. Também levado às telas, o livro é um relato pessoal e um depoimento político do escritor cubano, diagnosticado com Aids no final dos anos 1980, quando vivia no exílio, em Nova York. Tido como um pária do regime de Fidel Castro, que bania e perseguia os homossexuais, Arenas se refugiou nos EUA. Ali, tenta remontar sua carreira como escritor, apesar de Cuba tentar apagar seus escritos. Depois de receber a notícia de que tinha a doença, passou a escrever sobre o que sentia e sobre a degradação de seu corpo, ao mesmo tempo em que evocava suas lembranças da esperança e a posterior desilusão com o regime cubano. Arenas se matou antes que a doença o levasse a seu fim.
  2. “Distância de Resgate” (ed. Record) – Samanta Schweblin. Em sua estreia nos romances, em 2014, a escritora argentina contou a historia de duas mães e seus filhos marcados pela doença e pelo medo da morte e do sobrenatural. Enquanto Carla narra a tragédia de sua relação com o filho, David, Amanda não para de antecipar um horror que pode estar por vir para ela e sua filha, Nina. O livro se constrói a partir de um diálogo entre Amanda e David. Uma novela rápida e cheia de tensão, que foi finalista do Man Booker Prize, o principal prêmio da língua inglesa. Em breve, será adaptado para a Netflix, enquanto outra versão irá parar no cinema, pelas mãos da peruana Claudia Llosa.
  3. “Los Días de La Peste” (ed. Malpaso, importado) – Edmundo Paz Soldán. Numa prisão chamada La Casona, mais de  30 personagens contam a história do ambiente claustrofóbico e sujo que compartilham. Eles são ricos e pobres misturados, num ambiente de forte tensão interna, até que tudo piora com a chegada de uma epidemia. Claro que a ideia é reproduzir, de certa forma, a sociedade dos países sul-americanos contemporâneos. Curiosamente, a peste que surge para unifica-los na tragédia está relacionada com a população de morcegos que também habitam o mesmo espaço que eles, em La Casona. Pouco conhecido no Brasil, o escritor boliviano Paz Soldán vive nos EUA, dá aulas na Universidade de Cornell, e é um dos mais importantes autores contemporâneos da região.

    O escritor cubano Reinaldo Arenas (Foto Divulgação)
  4. “El Desbarrancadero” (ed. Alfaguara, importado) – Fernando Vallejo. O incômodo escritor colombiano conta nesse livro a agonia do irmão doente. É um ensaio sobre o amor fraterno, ao mesmo tempo em que um questionamento tanto à própria mãe de ambos como à mãe Colômbia, a quem o autor atribui todos os males herdados pelo país em que nasceu. Vallejo viaja por sua própria história e explora a fundo os traumas da família e do país, identificando a todos como doentes. É também a história de alguém que vê como um homem se desfaz aos poucos. Apesar de ter impedido a própria mãe de lê-lo, pelas coisas ruins que diz dela, “El Desbarrancadero” é uma história de amor entre familiares, um amor forjado na desgraça humana.
  5. “O Amor Nos Tempos do Cólera” (ed. Record) – Gabriel García Márquez. Um dos clássicos da literatura latino-americana contemporânea, conta a história do incurável amor de Florentino Ariza por Fermina Daza, que dura mais de 50 anos e se concreta durante um surto de cólera que impede um barco de aportar. Antes disso, Fermina se casou com um outro homem e Ariza, sem duvidar, passou a vida toda a esperá-la. A trama se baseia no conto de amor que foi o próprio romance dos pais de Gabo, Gabriel Elígio Garcia e Luiza Márquez, impedidos de casar-se pela família da moça.

 

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Mercado editorial argentino adota delivery, mas mergulha em crise https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/05/06/mercado-editorial-argentino-adota-delivery-mas-mergulha-em-crise/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/05/06/mercado-editorial-argentino-adota-delivery-mas-mergulha-em-crise/#respond Wed, 06 May 2020 21:12:50 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/C6BYfd2WgAEtZBo.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3551 Conhecida como a capital das livrarias na América Latina, a cidade de Buenos Aires tem mais de 400 estabelecimentos independentes de vendas de livros, além das lojas que pertencem às grandes cadeias. Nestes tempos de quarentena, porém, suas portas estão todas fechadas desde o último dia 20 de março, complicando ainda mais a situação do mercado editorial argentino. Só no primeiro trimestre do ano, a compra de livros no país caiu 70% em relação ao mesmo período no ano passado.

A quarentena levou os vendedores de livros a buscarem ajuda do governo nacional. Acabaram conseguindo algo. No último decreto de ampliação da quarentena, veio a autorização para que as livrarias funcionassem em modo delivery, ou seja, de entrega dos itens em casa, após pedido por telefone. 

“Desde então, estamos usando a criatividade”, conta Rogélio, vendedor da livraria Paradigma, “Mudamos nossa vitrine toda semana. Às vezes, a dedicamos a um só autor, ou oferecemos promoções”, diz. Muitas delas deixam as vitrines iluminadas, para atrair a atenção de quem passa na rua caminhando para os títulos em exposição. Nas portas, há sempre um cartaz com o telefone da loja.

Outras lojas apostam mais nas redes sociais e anunciam aí suas promoções com a “hashtag” #YoMeQuedoEnCasaLeyendo (eu fico em casa lendo).

A tradicional Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, que agitava a cidade todo outono, neste ano foi cancelada, assim como os eventos com escritores nas livrarias _alguns deles ocorrem, mas agora por videoconferência.

Não é a primeira vez que o mercado editorial argentino entra em crise profunda. Depois do “corralito” de 2001, praticamente não havia como trazer livros de fora, por conta da desvalorização do peso, e muitas livrarias e selos faliram. Por outro lado, surgiram com força as pequenas editoras, publicando traduções de obras cujos direitos autorais estavam livres de cobrança ou republicando clássicos, além de abrir a porta para jovens autores.

Não foi fácil, e saiu-se dessa crise para cair em outra, em 2010/2011, quando as políticas protecionistas da gestão de Cristina Kirchner (2007-2015) tornaram quase impossível importar livros a um custo razoável. Mais uma vez, as pequenas editoras abriram espaço desta maneira, enquanto os grandes selos sofriam mais. O que garantia a alta qualidade de alguns catálogos é o fato de que, nas décadas de 1950 e 1960, a Argentina era a capital das publicações e das traduções em espanhol na América hispânica. Com isso, a republicação de obras de excelente qualidade, mas há muito tempo longe das vitrines, ajudou a segurar a onda de editoras e pequenas livrarias.

Nos últimos anos, o mercado tampouco vinha bem, mas encontrou soluções paliativas para continuar vivo. Uma delas foi a criação das livrarias de curadoria mais artesanal, como a Falena, em Colegiales, que é discreta, fica numa esquina quase sem sinalização, e tem um salão com estantes bem iluminadas e um lounge. Ali, pode-se tomar um café ou uma taça de vinho enquanto se folheia novidades. Espaços assim passaram a sobreviver não apenas pela venda de livros, mas também por ter um bar e por oferecer um espaço para encontros e reuniões ou para o trabalho solitário. Outra deste estilo é a Libros del Pasaje, cujo bar costumava estar sempre cheio, ou a Otras Orillas.

O delivery de livros pode ser um remédio para os sintomas da atual crise do livro argentina, mas não oferecerá a cura. Outra aposta tem sido a promoção de livros em e-book. A propaganda do setor é forte, e algumas editoras, como a Penguin Random House, aumentaram seu mercado em 50%. Há também uma plataforma digital, a Bajalibros, cujas vendas aumentaram em 400% desde o começo da quarentena.

Outras livrarias, ainda, estão oferecendo promoções para depois da quarentena. Pode-se comprar livros por delivery agora e já ganhar cupons com descontos para gastar em novidades quando as lojas físicas reabrirem. É o que fez, por exemplo, a Cúspide, outra grande cadeia de livrarias local.

De todas as formas, o cenário adiante não é muito animador para o comércio em geral, e as livrarias e editoras não vão ficar de fora. A Argentina deve ter seu PIB reduzido em 5,7% em 2020, segundo cálculo da Cepal, e a recessão deve sufocar ainda mais o mercado editorial.

O diagnóstico do mundo do livro argentino no momento é de que precisa urgentemente de um respirador, o que pode vir na forma de algum tipo de política de estímulo. É triste, mas, o mercado argentino sempre encontrou um modo criativo de continuar vivo. Espera-se que possa fazer o mesmo desta vez.

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Um mapa sonoro para a fronteira do México com os EUA, por Valeria Luiselli https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/02/04/um-mapa-sonoro-para-a-fronteira-do-mexico-com-os-eua-por-valeria-luiselli/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/02/04/um-mapa-sonoro-para-a-fronteira-do-mexico-com-os-eua-por-valeria-luiselli/#respond Wed, 05 Feb 2020 00:54:49 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2020/02/Valeria_Luiselli_foto_2_Diego_Berruecos-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3505 Na última vez em que conversei com a escritora mexicana Valeria Luiselli, acabava de sair no Brasil seu livro “Arquivo das Crianças Perdidas”, romance que, assim como o ensaio “Los Niños Perdidos” se baseava em investigações realizadas na fronteira entre o México e os EUA e em entrevistas com imigrantes, principalmente vindos da América Central. Agora, a reencontrei no Hay Festival, em Cartagena (Colômbia), no meio do processo de criação de mais um trabalho relacionado à fronteira. Desta vez, a escritura virá em segundo plano. Luiselli prepara uma “paisagem sonora” da região, que primeiro será um arquivo, depois uma performance e, por fim, um ensaio.

“Não quero ficar conhecida como uma escritora de um tema só, mas a fronteira está me atraindo muito nos últimos tempos”, disse Luiselli, 36, que vive em Nova York e que teve seu trabalho elogiado por Barack Obama, que a incluiu na lista dos melhores autores que leu em 2019. “Arquivo das Crianças Perdidas” também entrou no ranking dos melhores do ano do “The New York Times”.

A obra atual consiste em gravar os sons da fronteira, desde o vento na região onde já foi construída uma parte do muro de Donald Trump, até o da natureza, nos vales e montanhas, e o das pequenas cidades, de ambos os lados.

“A ideia é refletir sobre a história da violência na fronteira entre México e EUA. Então pensei em três marcos históricos. O ano de 1850, quando, depois da guerra com os EUA, o México vende a esse país ainda mais um trecho de terra, no Arizona. Depois, a chegada das ‘maquiladoras’, no século 20, e, agora, a construção dos grandes centros de detenção para imigrantes”, conta Luiselli. “É nessa zona que se encontram mais casos de violência, racismo e xenofobia. Mas também  há vilarejos do lado americano onde há gente que se manifesta contra isso, contra o muro, contra os vigilantes (civis que caçam imigrantes ilegais) e a favor da preservação do ambiente. É uma região muito rica em histórias a serem contadas”.

A isso, Luiselli vai contrapor outro relato, o de vilarejos como Shakespeare, no Estado norte-americano do Novo México, onde ocorrem ensaios de recriações históricas _esse tipo de espetáculo é comum nos EUA, e reconstrói momentos do passado americano, sempre de forma a glorificá-lo. “Em Shakespeare há ensaios de tiroteios, de enforcamentos, e de outras coisas que fazem parte do imaginário americano sobre a conquista do território e o mito da fronteira. Só que os momentos que são escolhidos sempre apagam os indígenas, os imigrantes, populações que foram vítimas da violência ao longo do tempo”. Ao contrapor os dois ruídos, Luiselli diz que pretende “restituir as vozes que foram apagadas”.

Sobre o México atual, Luiselli comentou que a decepção com a presidência de López Obrador vem aumentando, com as políticas anti-imigração e que vão contra seu discurso original. “Creio que cada vez mais se parece a Trump, como um populista de direita, que está indo contra a liberdade de expressão e fazendo aumentar a xenobofia dos mexicanos com relação os centro-americanos”.

 

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Margaret Atwood, guia das feministas argentinas https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/11/18/margaret-atwood-guia-das-feministas-argentinas/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/11/18/margaret-atwood-guia-das-feministas-argentinas/#respond Tue, 19 Nov 2019 00:30:47 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/belen-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3454 Quando a escritora canadense Margaret Atwood, 80, escreveu “O Conto da Aia”, romance de  1985 que deu origem à série homônima, afirmou que, apesar do terrível tom “dark” da trama, ela nada mais era do que uma coletânea de situações reais, que já vinham ocorrendo na história da humanidade. Para quem não leu o livro ou não viu a série, trata-se de uma distopia, que ocorre no que uma vez foram os EUA, após a tomada do poder por extremistas religiosos, que transformam o país numa teocracia chamada de República de Gilead. A base dessa sociedade, na qual a fertilidade por alguma razão está em queda, são as “criadas”, as poucas mulheres férteis que, reduzidas a meras reprodutoras, vão se revezando em casas de famílias prósperas, com o objetivo de dar-lhes filhos, antes de ir prestar seu serviço a outros senhores.

Na época, pouco tempo depois de terminada a ditadura na Argentina (1983), Atwood disse que um dos “exemplos reais” dos quais tinha tomado inspiração era o roubo de bebês por militares durante a ditadura (1976-1983). Estima-se que cerca de 500 bebês tenham sido retirados de seus pais, considerados subversivos pelo regime. Com os progenitores assassinados, as crianças eram entregues a famílias consideradas “mais apropriadas” à sua criação _a saber, as de militares ou policiais, ou seja, “gente de bem”, segundo seu modo de entender.

A escritora canadense Margaret Atwood (Foto Divulgação)

Mal podia imaginar Atwood que, mais de 30 anos depois, seu livro seria referência fundamental a jovens feministas argentinas. Desde 2014, com o movimento Ni Una Menos, que luta pela diminuição da violência doméstica, e de 2018, quando uma lei de aborto (até a 14a semana de gestação) foi votada e, posteriormente, rejeitada pelo Senado, a leitura do livro de Atwood é praticamente obrigatória entre as garotas que vestem lenços verdes (pela lei do aborto), e usam glitter em numerosas manifestações pelas ruas de Buenos Aires e outras grandes cidades, em favor dos direitos das mulheres.

E eis que agora chega às livrarias uma obra importante para entender o motor dessa onda feminista na Argentina. Trata-se de “Somos Belén”, de Ana Correa, uma das fundadoras do Ni Una Menos, e com prefácio da própria Atwood.

Em ritmo de livro-reportagem, a obra conta a história real de Belén (nome fictício), uma jovem de 27 anos, da Província de Tucumán, que, em 2014, foi parar num pronto-socorro por conta de uma hemorragia vaginal. Foi diagnosticado um aborto espontâneo. Porém, ainda assim, Belén foi acusada de ter causado de forma proposital a perda do feto. Quando acordou da anestesia, estava cercada por policiais. Foi presa e condenada a oito anos de cadeia.

Houve uma grande mobilização social, que cresceu, caminhando lado a lado com as reivindicações de mais segurança para as mulheres contra a violência machista e pelo aborto legal, seguro e nas redes públicas de hospitais. As marchas por Belén aconteceram em várias cidades do país, e sua mobilização foi fundamental para construir a imensa base de apoiadores que o movimento feminista argentino tem hoje. O resultado foi que, em 2017, a Corte Suprema de Tucumán libertou Belén e, seis meses depois, a absolveu completamente.

 

Escreve Atwood no prólogo: “O caso de Belén não é uma injustiça isolada. Que uma mulher tenha sido presa por abortar, quando na verdade teve um aborto espontâneo, é uma história que poderia ter saído diretamente das páginas de meus livros sobre Gilead”.

“Somos Belén” sai em um momento oportuno. A Argentina muda de presidente no próximo dia 10. Mauricio Macri, o atual, apesar de ser contra o aborto, permitiu em sua gestão que uma legislação fosse votada pelo Congresso, ainda que tenha sido derrotada. Já Alberto Fernández, comprometeu-se com a causa, e afirmou que enviará um novo projeto ao Congresso, e fará campanha por sua aprovação, assim que assumir. É para anotar e conferir. Outras Beléns sofrem dramas parecidos de forma rotineira.

 

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José Balza, um venezuelano inquieto https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/09/23/jose-balza-um-venezuelano-inquieto/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/09/23/jose-balza-um-venezuelano-inquieto/#respond Mon, 23 Sep 2019 21:09:49 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/balza-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3403 O escritor venezuelano José Balza, às vésperas de completar 80 anos, recebeu uma merecida homenagem na Espanha, nesta semana. Na ocasião, aproveitou para fazer uma doação à história, depositando um pacote fechado na Caja de las Letras do Instituto Cervantes, que só poderá ser aberta dentro de 40 anos. A instituição guarda outros acervos do gênero, e Balza disse que, no seu caso, o que contém sua caixa será “uma homenagem a quem nela está incluído ou mencionado”.

Enquanto o mistério fica no ar, resta celebrar essa voz literária que é pouco conhecida, mas integrou o chamado “boom latino-americano” dos anos 1970 com grande versatilidade: ficção, ensaio e incríveis aforismos literários. Como estes: “Por isso é fácil, ao ler romances, saber onde estamos”, ou “Uma notícia pode ser um conto, mas este nunca pode ser somente notícia”. Estes últimos estão contidos em “Ensayos de Humo”, lançado pela editorial Equinoccio, de Caracas.

Balza nasceu e cresceu no Delta do Orinoco. Quando conta como começou a escrever, já é de um modo poético. Diz que, em San Rafael de Manamo, o povoado em que vivia, havia apenas cinco casas, estavam rodeados pela floresta e pelas águas. Ali perto, uma tribo da etnia warao. Balza criança achava que os animais e as plantas eram como os seres humanos, e apenas aprendeu quais eram as distinções, já queria escrever sobre elas e sobre o mundo que o rodeava. Assim começou sua carreira, sempre marcada por esse tom contemplativo.

“Fui criado com frangos, porcos e outros tipos de animais. Achava que era irmão deles, que éramos uma família. Aos cinco ou seis anos, aprendi que éramos diferentes, e que eu era diferente também das árvores. Comecei a escrever para poder me diferenciar das árvores”, escreveu certa vez.

 

Mais tarde, foi viver em Caracas, para estudar na Universidade Central da Venezuela, a principal do país. Desde então, publicou cerca de 50 livros. Seu romance mais conhecido é “Percusión” (1982). Nos ensaios, analisa de tudo, a literatura de ontem e hoje, os críticos de literatura, ópera e artes plásticas. É autor também de reflexões sobre a arte cinética, tão presente na Venezuela.

 

 

Em suas entrevistas recentes, é difícil que a política e a crise do país seja o principal assunto. Suas preocupações estão de fato relacionadas à arte. Mas ele não se cala. Em entrevista recente ao “El País”, afirmou: “Não entendo por que demônios esta gente, desde Chávez até hoje, se empenhou tanto em destruir o país. Não podemos pensar que se trata de uma disputa ideológica. Não se trata de comunismo contra capitalismo, o que há na Venezuela hoje é apenas perversão humana, é a ideia de causar dano aos demais, e os mais destruídos são os pobres.”

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Ida Vitale recebe o Cervantes e lança memórias https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/04/21/ida-vitale-recebe-o-cervantes-e-lanca-memorias/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/04/21/ida-vitale-recebe-o-cervantes-e-lanca-memorias/#respond Sun, 21 Apr 2019 13:54:13 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2019/04/vitale-ida-©-daniel-mordzinski-e1497856578367-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3324
A poeta e ensaísta uruguaia Ida Vitale, que nesta semana recebe o prêmio Cervantes (Foto Divulgação)

A poeta e ensaísta uruguaia Ida Vitale, 95, receberá na próxima terça-feira (23), o prêmio Cervantes, o principal da língua espanhola, em Madri, em uma cerimônia presidida pelo rei da Espanha, Felipe 6o. Depois, terá uma semana cheia de homenagens e leituras de sua obra realizadas na cidade, entre elas uma que ocorrerá na mítica Residencia de Estudiantes, onde conviveram nada menos que Salvador Dalí (1904-1989), Luis Buñuel (1900-1983) e Federico García Lorca (1898-1936).

Vitale é a quinta mulher premiada pelo Cervantes, que pela primeira vez, no lugar de alternar um autor espanhol com um latino-americano, premia duas vezes seguidas autores latino-americanos. O do ano passado foi o nicaraguense Sergio Ramírez.

A escritora se insere na tradição das vanguardas da região, e sua obra está caracterizada por poemas curtos que estudam o sentido das palavras. Sua trajetória já havia sido celebrada com os prêmios Octavio Paz, Alfonso Reyes, Reina Sofia e o Max Jacob.

Começou a escrever muito cedo. Nascida em Montevidéu em 1923, em uma família de imigrantes italianos, consumia o que, naquele tempo, era muito comum, diversas revistas e suplementos culturais editados ali e em Buenos Aires. Escreveu em publicações uruguaias famosas, como o semanário “Marcha”e a revista “Maldoror”.

Passou grande parte de sua vida fora do país, primeiro no México, depois na Europa e, por fim, nos EUA. Foi casada com o crítico literário Ángel Rama (1926-1983), autor de uma longa bibliografia sobre literatura latino-americana, como a obra clássica “La Ciudad Letrada”, de 1984.

Uma parte da história de Vitale também surge nas livrarias uruguaias agora, trata-se do volume “Shakespeare Palace – Mosaicos de Mi Vida en México” (ed. Lumen, importado), em que conta seus primeiros passos fora do Uruguai e a descoberta do mundo das letras e da megalópolis que é a Cidade do México.

Seu encanto com essa cidade do norte começou cedo, nos anos 1940, quando, como conta no livro, caminhava pelas ruas de Montevidéu com uma amiga tentando encontrar uma maneira de sair dali para um lugar onde poderiam cursar uma carreira de humanidades, especificamente de letras, em uma grande universidade. O México era um sonho distante, mas elas buscaram, por meio de autores e de visitas à embaixada, uma forma de conseguir uma bolsa de estudos e recursos para ir para lá. Naquele momento, foi em vão.

Com o tempo, porém, veio a oportunidade, ainda que forçada. A ditadura uruguaia (1973-1985), a obrigou a deixar o país com toda a família. Os filhos já haviam buscado refúgio na Venezuela, que é sua primeira parada descrita no livro. Aí vemos uma Caracas muito diferente da que sangra hoje nos noticiários. É a dos anos 1970, de braços abertos para receber intelectuais e demais exilados políticos do Cone Sul, e que tinha uma vida cultural fervilhante.

No México, encontra-se com o Nobel Octavio Paz (1914-1998), que a introduz na famosa revista “Vuelta”e no prestigioso “Colegio de Mexico”. Apesar de contar ao longo do volume a nostalgia que sentia pelo Uruguai, a efervescência do cenário cultural mexicano a tomou por completo. Ela faz um relato minucioso e muito atento com relação às várias figuras do mundo intelectual que conhece pessoalmente aí.

Vitale regressou em vários momentos ao Uruguai após a ditadura, mas nunca para ficar. Apenas no ano passado, tomou a decisão de passar sua última etapa da vida em sua cidade-natal, Montevidéu, onde segue sendo celebrada.

 

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Aberta a temporada de feiras do livro na América Latina https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/03/18/aberta-a-temporada-de-feiras-do-livro-na-america-latina/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/03/18/aberta-a-temporada-de-feiras-do-livro-na-america-latina/#comments Mon, 18 Mar 2019 20:12:21 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2019/03/imagen-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3308
Feira Internacional do Livro de Buenos Aires (Foto Divulgação)

O mercado editorial hispano-americano começa a aquecer os motores para tentar dar uma injeção nas vendas de livros, em queda na maioria dos países deste idioma nos últimos anos. Os dois primeiros grandes compromissos de 2019 são as Feiras do Livro de Buenos Aires (25 de abril a 13 de maio) e de Bogotá (25 de abril a 6 de maio).

Na capital argentina, a cidade homenageada será Barcelona. Com uma média de visitantes em torno de 1 milhão por ano, é a segunda maior após a Feria del Libro de Guadalajara, no México, no mercado em espanhol, e mistura o grande comércio nos estandes da Rural, prédio histórico de Buenos Aires, com uma intensa programação de palestras e mesas-redondas com autores convidados.

Nesta edição, quem abrirá a programação é Rita Segato, uma antropóloga argentina e referente da luta feminista, movimento que neste país vem crescendo e tornando-se vanguarda no continente. Entre os convidados estão: John Katzenbach (EUA), Arturo Pérez-Reverte (Espanha), Rosa Montero (Espanha), Santiago Posteguillo (Espanha), Carlos Zanón (Espanha), Bryce Echenique (Peru), Gioconda Belli (Nicarágua) e Laurence Debray, filha do filósofo francês Regis Debray e autora de uma biografia sobre seu pai, entre outros.

Já em Bogotá, a Filbo vem crescendo ano a ano, e, na última edição, reuniu 550 mil pessoas. Além de ocupar também um pavilhão importante da cidade, o Corferias, também tem programação em livrarias, bibliotecas e outros espaços da cidade. O tema deste ano serão os 200 anos da independência colombiana, e predominarão autores locais, mas a seleção estrangeira também será vitaminada, com Leila Guerriero (Argentina), Edward Rutherford (Reino Unido), Antonio Ortuño (México), Emiliano Monge (México) e outros.

 

 

 

 

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A maldição de Gabo nas telas https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/03/11/a-maldicao-de-gabo-nas-telas/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/03/11/a-maldicao-de-gabo-nas-telas/#comments Mon, 11 Mar 2019 03:46:39 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2019/03/images.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3302
Gabriel García Márquez (Foto Divulgação)

O mundo cultural entrou em polvorosa na semana passada, com a notícia de que a Netflix comprou, por uma cifra desconhecida, os direitos de levar o clássico do colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), “Cem Anos de Solidão” às telas em forma de uma minissérie. A empresa busca um novo êxito em espanhol, como a série “Narcos” ou o filme “Roma”, vencedor do Oscar de filme estrangeiro, entre outros prêmios.

O desafio a que a Netflix se propôs agora, porém, é muito mais difícil. Lembro-me de uma mesa sobre a obra de Gabo e o cinema, que mantivemos justamente durante o festival da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano, criada pelo Nobel, em 2016. Estávamos eu, o escritor Hector Feliciano e o crítico de cinema do “New York Times”, A. O. Scott. Em dado momento, perguntei a Scott o que ele achava das obras de Gabo já transpostas ao cinema.

Educadamente, ele não especificou as experiências até aqui frustradas, mas considerou que a obra literária do colombiano era tão cheia de imagens e de poesia, tão estimulante para a imaginação de cada leitor, que transporta-la à tela do cinema ou da televisão era muito arriscado. E propôs, por exemplo, que quem voltasse a tentar, que o fizesse com sua obra não literária, como o livro-reportagem “Noticia de Un Secuestro”, sobre os anos da guerra contra o narcotráfico (vídeo da conferência abaixo).

Obviamente isso não é uma condenação ao fracasso. Mas há indícios negativos que não podem ser ignorados. “Crônica de Uma Morte Anunciada”, de Francesco Rossi, apesar de gravado em Cartagena, não conseguiu captar a “colombianidade” da história, e “Amor nos Tempos do Cólera”, de Mike Newell, ficou parecendo uma novela de má qualidade. Pior, teve de chamar um ator espanhol, Javier Bardem, para que o filme tivesse algum alcance fora do mercado hispano-americano. O que chegou mais perto de ter algum êxito, ao menos de crítica, foi “El Coronel no Tiene Quien le Escriba”, dirigida por Arturo Ripstein.

O próprio Gabo, em vida, apesar de amar o cinema, havia dito mais de uma vez que “Cem Anos” não serviria para ser filmado. Qual seria o rosto do general Aureliano Buendía?, perguntava-se, ou o tamanho dos peixinhos que a família fabricava? Como filmar a cena do massacre dos trabalhadores da industria bananeira norte-americana, episódio sobre o qual nem os historiadores têm certeza do que aconteceu até hoje?

O fato é que “Cem Anos” é, justamente, um convite à imaginação para que cada um crie sua Macondo com as caras e trejeitos que cada um queira dar a seus personagens. A beleza de Remédios, a Bela, por exemplo, seria igual para um colombiano, um norte-americano e um europeu? Também é necessário ter em conta que o autor negou pelo menos duas propostas milionárias para adaptar “Cem Anos” ao cinema justamente porque não queria restringir a imaginação dos leitores.

Mas os tempos mudaram. E uma das justificativas da família para autorizar a gravação da minissérie sobre o livro, cujo lançamento está previsto para 2020, é que o formato, que permite que a história se alargue por muitos capítulos, daria tempo para que os inúmeros personagens da novela fossem bem desenvolvidos. Também foram impostas condições: a série será gravada na Colômbia, em espanhol e com atores que sejam do primeiro escalão do cinema e da TV latino-americanos.

Para os que gostam de Gabo e de sua obra, é torcer muito para que dê certo. Porque ambos não merecem menos do que uma produção que, no mínimo, esteja a altura do livro, uma vez que superar o livro é absolutamente impossível.

 

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Uma Noite de 12 Anos e a literatura de Rosencof https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/01/01/uma-noite-de-12-anos-e-a-literatura-de-rosencof/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/01/01/uma-noite-de-12-anos-e-a-literatura-de-rosencof/#respond Tue, 01 Jan 2019 17:42:31 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2019/01/Uma-Noite-de-12-Anos-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3260
Cena de “Uma Noite de 12 Anos” (Foto Divulgação)

Agora que o filme uruguaio “Uma Noite de 12 Anos” (trailer abaixo), que retrata os anos de cativeiro de José “Pepe” Mujica, Eleuterio Fernández Huidobro (1942-2016) e Mauricio Rosencof, três integrantes da guerrilha tupamaros, durante os anos da ditadura uruguaia na década de 1970 e 1980, está disponível no Netflix, vale a pena chamar a atenção a outros aspectos da história.

No Brasil, onde os dois outros personagens são pouco conhecidos e o atrativo mais comum do filme é a história do ex-presidente Mujica, valeria a pena, numa segunda mirada, observar e prestar um pouco mais de atenção na trajetória de cada um dos outros dois que foram feitos prisioneiros com ele. Até porque, mostra que a tentativa de seus torturadores, que diziam que “já que não pudemos matá-los, vamos enlouquecê-los” não funcionou.

Foi todo o contrário. Fernández Huidobro, chamado de El Ñato (o que faz o gol imaginário no pátio do cativeiro) foi depois ministro da Defesa, de 2011 até sua morte, em 2016, e ajudou a organizar os tupamaros como partido político em tempos democráticos.

Mas queria chamar a atenção aqui para a obra de Mauricio Rosencof, 85, chamado de “El Ruso”, mas vivido no filme pelo filho de Ricardo Darín, o chamado “el Chino Darín”. Seria auspicioso se alguma editora brasileira se interessasse por alguns de seus 22 livros, que lhe deram reputação internacional.

É certo que a Record lançou por aqui o lindo “As Cartas que Não Chegaram”, que comento mais adiante. Mas seria muito oportuno que fosse lançada agora a nova edição, por exemplo, de “Memorias del Calabozo”, de 1989, reeditada no Uruguai (veja abaixo) e que foi a base para a construção do roteiro para o filme de Álvaro Brechner.

A nova edição de “Memorias del Calabozo” (Foto Divulgação)

A história do nascimento do livro é insólita e angustiante como tudo o que os três passaram nos calabouços em que ficaram praticamente enterrados vivos. Como ali, a maneira que encontraram de se comunicar era uma reinvenção do código Morse. Em uma de suas conversas, El Ñato e Rosencof dizem um ao outro que, se um dos dois saísse vivo, contaria a história do que lhes passou. Pois ambos saíram vivos, e o escreveram juntos, com aportes de Pepe Mujica.

O livro é mais cerebral e intimista que o filme, Rosencof explora muito a luta para afastar a loucura, com a qual, em entrevistas recentes, com muito bom humor, diz que não sabe ainda se de todo conseguiu vencer. Mas o fato é que a literatura o salvou, assim como a política a seus dois companheiros. O livro conta os bastidores da prisão, mas o foco é o processo mental de como atravessaram esse longo e desumano cativeiro.

O que no filme são “flashbacks” de fatos reais ou lembranças e delírios, no livro são melhor explicados. Tanto que Rosencof sempre disse que temia que Mujica fosse aquele, entre os três, que teria chegado mais perto de enlouquecer. Rosencof viu o filme mais de uma vez, e por ser também ele roteirista, deu dicas no roteiro. Já Mujica viu apenas uma. E depois disse que não veria mais. Quando Rosencof perguntou por que, Mujica respondeu apenas que o filme o “fazia ver e lembrar de sua mãe novamente”, a mãe com quem manteve diálogos reais e outros imaginários durante os longos anos que passou isolado.

A obra de Rosencof está toda atravessada por sua história pessoal. Filho mais jovem de um casal de poloneses que escaparam do nazismo migrando para o Uruguai, teve uma infância de classe média baixa, e já na juventude se integrou aos tupamaros, chegando a ser seu dirigente. Foi preso em 1972 _a guerrilha iniciou suas atividades ainda durante o período democrático, e por isso até hoje ainda é também questionada_ só foi liberado no final da ditadura (1973-1985). Conta, em entrevistas, que logo que foi solto, partiu para a ação, mas já com outras armas. Uma, a escrita. Outra, o envolvimento na tarefa de transformar o que havia sido uma guerrilha urbana num partido político. Com isso, esteve no nascimento do que é hoje a Frente Ampla, coalizão de centro-esquerda que governa o país desde 2005.

Mas Rosencof, depois disso, se voltou apenas a escrever, e seus livros são verdadeiras jóias. “As Cartas que Não Chegaram”, apresentado a mim por minha amiga e grande leitora Francesca Angiolillo, é por um lado um resumo de sua vida, mas também uma busca interior por meio da literatura narrada de modo magistral.

Acompanhamos o pequeno Moishe, nome de infância do garoto Mauricio Rosencof, crescendo nessa família que foi a última de seu povoado polonês a partir antes de os nazistas varreram os judeus do local. Se salvaram por pouco. As “cartas” do título são aquelas que os pais esperavam a cada dia, observando a passagem do carteiro, com a esperança de que trouxessem notícias do que havia ocorrido com os parentes na Polônia, a maioria deles enviada a campos de concentração.

Em várias fases, o livro mostra primeiro Moishe escrevendo a seu pai cartas desde o cárcere que tampouco sabia se chegariam a ele, perguntando sobre sua juventude, sobre seu lugar de nascimento, sobre os parentes que ele conhecia apenas pelas fotos amareladas que a mãe guardava em caixas de papelão. Numa fase posterior, Moishe/Mauricio vai até a Polônia buscar parentes. Perambula pelas ruas de seu povoado, visita campos de concentração, numa angústia transformada em literatura. Com ele, viajam os fantasmas da infância, evocados sempre pela mãe por meio dos retratos e da memória de seu irmão mais velho, León, que veio com os pais da Polônia, mas morreu de meningite aos 16 anos, deixando-o infinitamente só. “Era ele quem me explicava as coisas do mundo”, conta.

Que o filme, agora disponível a mais gente e por uma nova plataforma, dispare o interesse pelo resgate literário do que aquela época provocou. A obra de Mauricio Rosencof é um exemplo de uma coleção que já podia estar entre nós.

 

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