Sylvia Colombo https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br Latinidades Tue, 30 Nov 2021 12:31:53 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Filme argentino sugere violência política entre sussurros https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/10/16/filme-argentino-sugere-violencia-politica-entre-sussurros/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/10/16/filme-argentino-sugere-violencia-politica-entre-sussurros/#respond Sat, 16 Oct 2021 20:34:13 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/azor-3-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3933 Nada de sangue, fuzilamentos ou tortura. “Azor” expõe a ditadura militar argentina (1976-1983) desde um outro ângulo, o daqueles que estiveram por trás dos abusos de direitos humanos, mas que não mancharam suas mãos com o trabalho sujo, mantiveram um cruel silêncio diante dos embates políticos e lucraram muito no período. Na cidade em que vivem, pouco se vê de protestos e prisões. Sua bolha parece consistir em jardins bonitos com piscina, propriedades equestres e salões de clubes sociais.

Produção suíço-argentina que estreará nas próximas semanas no Brasil, “Azor” se passa na Buenos Aires de 1980, com a chegada ao país do banqueiro Yvan de Wiel (Fabrizio Rongione) e sua mulher, Ines (Stéphanie Cléau). Embora saibam, por alto, o que está ocorrendo no país, o casal suíço mantém o foco noutra coisa: como manter as contas dos ricos clientes do banco europeu depois que seu sócio e representante no país, René Keys, desapareceu misteriosamente?

Num filme de silêncios e murmúrios, a presença do desaparecido ressalta. Todos sabem algo dele, mas o quebra-cabeças sobre o que lhe aconteceu parece não terminar de fechar. Seu apartamento, tal qual um labirinto borgeano, foi abandonado com portas abertas e cigarros por fumar. Aos poucos, vamos sabendo que ele andava realizando negócios paralelos, mas, seria ao lado dos subversivos ou da cabeça do regime? A referência a “O Terceiro Homem”, de Graham Greene é clara.

Falado em francês e em espanhol, “Azor” é um thriller político, um suspense narrado em um clima de tensão furiosa, embora quase nada vocalizada. A ação praticamente inexiste e os diálogos, parcos e sutis, acompanham a tomada lenta de consciência de De Wiel. No começo, ele parece se horrorizar com o que ouve, tem medo de dar um passo em falso e se assusta com o que imagina que pode estar acontecendo. Aos poucos, vai entrando no jogo de sedução e traição de seus interlocutores: empresários, líderes da Igreja, militares, damas da alta sociedade.

Azor, neste contexto, é uma gíria entre os banqueiros, que revela a precaução que se deve tomar no labirinto em que o filme vai se metendo. Outra referência clara é “Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, com De Wiel em busca de seu próprio Sr. Kurtz, e “o horror” desenhado na história dos anos de chumbo argentinos.

 

Dirigido pelo argentino Andreas Fontana, que cresceu na Suíça, o filme conta com excelentes atuações, como a do protagonista e a de Pablo Torre Nilsson, que encarna o monsenhor Tatoski, apoiador da ditadura e que aposta em cavalos e na Bolsa. O clima sufocante da trama leva a pensar também nos universos criados por outra argentina, Lucrecia Martel. Diferentemente dela, porém, “Azor” tem a ação numa cidade grande, agitada e sofisticada.

Num país que já produziu dezenas de bom títulos sobre suas ditaduras militares, “Azor” ressalta pela originalidade do olhar e a sofisticação do enredo. Depois de desfilar pela Berlinale e por festivais estrangeiros, aterrissa no Brasil em novembro.

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Imagens do horror que revelaram a verdade sobre a repressão https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/11/13/imagens-do-horror-que-revelaram-a-verdade-sobre-a-repressao/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/11/13/imagens-do-horror-que-revelaram-a-verdade-sobre-a-repressao/#respond Fri, 13 Nov 2020 22:46:18 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/untitled-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3690 Morto no último sábado, de um câncer, aos 76, o argentino Víctor Basterra viveu nas sombras da ESMA (o principal centro clandestino de tortura da ditadura argentina nos anos 1970) como prisioneiro por mais de quatro anos. Ali, teve a possibilidade de fotografar e guardar um sem fim de imagens que expunham tanto os rostros de prisioneiros que foram sequestrados como dos repressores. Os documentos que conseguiu, pacientemente, tirar intactos dali ao longo dos anos e depois, quando foi libertado, ajudaram a muitas famílias a recompor a história de parentes desaparecidos, além de figurar em processos que até hoje estão em curso na Justiça argentina para determinar a culpa de repressores.

Quando foi sequestrado com a mulher e sua filha, Basterra, que era peronista, passou dias terríveis nos porões da ESMA (Escola Mecânica da Marinha). Submetido a choques elétricos, sofreu dois infartos e quase morreu. Como isso não ocorreu, acharam um melhor uso para ele _era comum que prisioneiros fizessem algo parecido ao trabalho escravo nos centros clandestinos da repressão. Basterra virou empregado do setor de documentação da ESMA. Tinha 35 anos. Sua mulher e sua filha foram libertadas.

Neste posto, era o responsável, por exemplo, por fazer fotos dos repressores para os documentos falsos que usariam em operativos de repressão ou para sairem do país. Passaram diante de suas lentes agentes importantes do aparato, como Alfredo Astiz, um dos mais cruéis comandantes de operações que terminavam em sequestros ou no envio de pessoas para os voos da morte. Basterra, porém, sempre tirava uma cópia a mais dessas imagens e dos documentos falsos. E as guardava. Fazia o mesmo quando lhe pediam que registrasse a imagem de alguns presos, para o arquivo local. Sem saber, acabaria sendo a última imagem com vida de muitos deles. A maioria morreria nos voos da morte ou não aguentaria as sessões de tortura. Não se sabe como e se a Marinha guardou esses arquivos, mas cópias de várias desses registros foram indo parar na casa da corajosa família Basterra.

Victor Basterra, em montagem de exposição de sua obra, na ESMA, em Buenos Aires (Foto Divulgação)

Afinal, depois de um tempo, quando recebeu o benefício de poder fazer algumas visitas à sua família, levava algumas dessas imagens para casa. Algumas delas iam juntas a seu próprio corpo ou escondidas dentro de sua roupa íntima. A família foi armando em casa esse poderoso arquivo, que veio à luz nos anos 80.

Quando foi liberado, semanas antes da eleição de Raúl Alfonsín (1983) que marcaria o fim da ditadura, Basterra enfim foi para a casa. Não descansou. Organizou seu arquivo e levou seu “Informe Basterra” diretamente à Comissão Nacional sobre a Desaparição de Pessoas (Conadep), que realizou a primeira grande lista dos que haviam desaparecido pela ação do Estado. As imagens e os depoimentos sobre as conversas que manteve com os fotografados colaboraram para esclarecer a verdade sobre o destino de muitos presos, assim como a levar a julgamento vários repressores.

 

 

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Morre o escritor Leopoldo Brizuela https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/05/14/morre-o-escritor-leopoldo-brizuela/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/05/14/morre-o-escritor-leopoldo-brizuela/#respond Tue, 14 May 2019 14:30:41 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3334
Leopoldo Brizuela, morto nesta terça-feira (Foto Divulgação)

O escritor Leopoldo Brizuela, 55, morreu nesta terça-feira (14), em Buenos Aires, causando surpresa e tristeza no meio literário argentino. A causa ainda não havia sido revelada até o fechamento deste texto. Brizuela havia ganho o prêmio Alfaguara de 2012 por “Uma Mesma Noite”, lançado no Brasil pela Alfaguara.

Considerado um dos principais autores de sua geração, Brizuela vivia em La Plata, e perdeu sua biblioteca em 2013, quando houve uma grande inundação na cidade.

Antes, havia estudado em Cambridge e cursado direito e letras na Universidade Nacional de La Plata, uma das mais importantes do país.

Seu primeiro romance, “Tejiendo Agua”, saiu em 1985, e ganhou o prêmio da Fundação Amalia Lacroze de Fortabat. Também era conhecido por seu trabalho como tradutor, tendo vertido ao espanhol obras de Henry James e Flannery O’Connor, entre outros.

Outro de seus livros que tiveram projeção internacional foi “Inglaterra – Una Fábula” (1999), vencedor do prêmio Clarín de Romance.

Em 2012, entrevistei Brizuela por conta do prêmio que havia ganho, em Buenos Aires. “Uma Mesma Noite” é uma reflexão sobre a ditadura na Argentina.

Brizuela aborda o tema por meio de uma ótica pessoal, pois é ambientado em La Plata, baseado em histórias que ouviu de pessoas conhecidas. O livro se passa em dois momentos, durante a ditadura e em 2010, quando, ao testemunhar um assalto, o protagonista, que é um escritor, como Brizuela, lembra-se da noite em que era um garoto e tocava piano enquanto seus pais eram interpelados por um “grupo de tarefas”, os repressores do regime militar, na sala de jantar da mesma casa.

“O que salva o personagem é a literatura, não porque por meio dela encontre respostas, mas porque o mantém confuso e com capacidade de seguir questionando”, contou Brizuela na época.

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Thriller familiar une história da Espanha e da Argentina https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2017/11/19/thriller-familiar-une-historia-da-espanha-e-da-argentina/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2017/11/19/thriller-familiar-une-historia-da-espanha-e-da-argentina/#comments Sun, 19 Nov 2017 19:14:48 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3021

Em cartaz na Argentina, “Te Esperaré”, de Alberto Lecchi, é uma mistura de novela familiar com thriller político que atravessa décadas da história da Espanha e da Argentina. Começa em Tarragona, em meio à Guerra Civil Espanhola (1936-1939), quando um então jovem Miguel Creu se despede de sua namorada. Este herói imaginário, cujo fantasma une todos os personagens desta trama, atravessa esse conflito, depois vai lutar ao lado dos revolucionários cubanos e termina seus dias na Argentina, ajudando os montoneros na resistência à ditadura militar (1976-1983).

Muitos anos depois, na Buenos Aires de nossos dias, seu filho, um ex-comunista descrente de tudo, Ariel Creu (Darío Grandinetti), se vê obrigado a enfrentar o legado do pai herói por três motivos. Primeiro, porque finalmente encontram numa fossa comum os ossos de Miguel Creu. Em segundo, porque seu filho (interpretado por seu filho também na vida real, Juan Grandinetti), ao contrário dele, não quer esquecer o avô, e sim descobrir tudo o que se passou com ele. E, por último, porque surge, vindo da Espanha, um autor de sucesso que vem escrevendo as aventuras de Miguel Creu como se fossem uma novela de ficção.

O encontro entre os três ao redor da ferida aberta deixada por Miguel Creu é explosivo, e revelações do passado de Creu e de coisas não muito nobres que seu filho Ariel teve de fazer para que sua família ficasse protegida dos repressores vão vindo à tona, num roteiro cheio de reviravoltas e uma ou outra forçação de barra. Independente delas, porém, trata-se de um filme cativante e com boas atuações. Além dos embates entre pai e filho, destaca-se a excelente participação do veterano Hugo Arana, que faz um repressor julgado pela morte de Creu.

Darío Grandinetti, Inés Estevez e Juan Grandinetti, em cena de “Te Esperaré” (Foto Divulgação)
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Série revive os anos 1970 na Argentina por meio da história de uma família https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2017/08/28/serie-revive-os-anos-1970-na-argentina-por-meio-da-historia-de-uma-familia/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2017/08/28/serie-revive-os-anos-1970-na-argentina-por-meio-da-historia-de-uma-familia/#comments Mon, 28 Aug 2017 10:40:59 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=2950
A família Martínez, que protagoniza a minissérie “Cuéntame Cómo Pasó” (Foto Divulgação)

Estreou na última semana, pela TV Pública argentina, a minissérie “Cuéntame Cómo Pasó”, versão local da novela espanhola homônima. Assim como a original, a trama também tem como centro uma família de classe média baixa que atravessa um período da história recente. Desta vez, ela se desenrola num bairro suburbano de Buenos Aires. Começa em julho de 1974, com a morte do general Juan Domingo Perón, que havia sido eleito para seu terceiro mandato apenas um ano antes, e vai até 1983, quando o país voltou a ser uma democracia. O ponto de partida é um território ainda nebuloso e pouco contado nos livros de história.

Isso porque, entre 1974 e 1976, a Argentina, apesar de viver uma democracia, atravessou um período de intensa violência. De um lado, estava a repressão do Estado, que agia por meio da cruel Triple A, um esquadrão da morte paralelo às forças de segurança institucionais. De outro, as guerrilhas urbanas Montoneros e ERP (Ejército Revolucionário del Pueblo). A morte de Perón tornou ainda mais agudo esse enfrentamento, causando mortes e um ambiente de muita insegurança nas ruas e de incerteza entre a sociedade. No lugar do general, havia assumido sua vice e viúva, Isabelita. Esta, porém, vinha sofrendo imensa influência do bruxo José Lopez Rega (1916-1989), uma figura enigmática e esotérica que havia conquistado a confiança do casal Perón quando este vivia no exílio. Morto Perón, Lopez Rega se transforma no homem mais poderoso do país. Enquanto isso, nos bastidores, os generais preparavam-se para tomar o poder à força, o que de fato aconteceria em março de 1976, quando ocorreu o golpe militar.

“Cuéntame Cómo Pasó” começa retratando esse momento anterior ao regime, mas do ponto de vista da família Martínez. Temos Antonio (Nicolás Cabré), que faz o pai e provedor do lar. Trabalha numa gráfica cujo dono é um anti-peronista que pede logo a intervenção dos generais “para organizar as coisas”. Antonio não está de acordo com ele, mas cala-se para manter o emprego enquanto tenta conter colegas que se rebelam contra o patrão e estão organizados em sindicatos _uma das principais bases de apoio de Perón.

Sua mulher, Mercedes (Malena Solda), é a dona-de-casa típica da época, empenhada em manter a família unida, ao mesmo tempo em que ajuda a completar o orçamento familiar costurando roupas para a vizinhança _estão entrando na moda as calças longas para mulheres, e ela se anima em aproveitar esse novo filão. Ao mesmo tempo, exerce profunda pressão sobre a filha Ines (Candela Vetrano), que hesita em casar-se e não se conforma de ter tido seu acesso à universidade barrado em detrimento do irmão mais velho. Trabalhando num salão de beleza, não quer seguir o compromisso com o noivo e sonha viajar e estudar. A mãe não aceita e quer ve-la logo no altar. Já o filho mais velho, o calado Toni (Franco Masini), acaba de entrar na faculdade de direito, e lá se apaixona por uma jovem ativista, Marta (Malena Sánchez). Esta começa a envolve-lo em política, primeiro levando-o a reuniões. Apaixonado, Toni vai sendo empurrado logo a coisas mais ousadas, como pintar muros e realizar ações na luta armada. A princípio, ele tem receio, dizendo que crê que é melhor que se dediquem a estudar. Ao que Marta responde: “Temos que optar, ou estudamos a história, ou fazemos a história”. Toni se resigna a acompanha-la, opção pela qual pagará um alto custo. Já o filho mais novo, o menino Carlitos (Luca Ciatti) é quem conta a história, a partir de seu olhar lúdico que mistura as histórias de kung fu, pelas quais é apaixonado, com as conversas dos adultos e o noticiário, que entende apenas parcialmente. 

O núcleo extra-familiar gira em torno de um bar onde se encontram os homens para falar de política e das intrigas e traições amorosas do bairro, a gráfica onde trabalha Antonio, a universidade onde estudam e militam Toni e Marta, e a Igreja que acaba de receber um padre jovem e que atua com as bases religiosas peronistas de então _um representante dos “curas peronistas” que se multiplicavam na época, causando suspeita entre muitos, e fascinação em alguns. De fato, o primeiro incidente violento da série é um ataque da Triple A, a bordo de um Ford Falcon verde (veículo usado durante toda a repressão), contra a Igreja local durante a primeira comunhão de Carlitos.

A produção não economizou nos detalhes. As locações, as roupas, a trilha sonora e até as propagandas evocam os anos 1970. Usando o farto arquivo histórico da TV Pública argentina, fundada em 1951, a série mistura a ficção com imagens de época: discursos marcantes, como o de Isabelita dando a notícia da morte de Perón, e passagens como o funeral do general debaixo de intensa chuva, a atuação da Argentina na Copa de 1974, o surgimento das bandas de rock locais e outras. Vai ao ar de segunda a quinta, sendo que a sexta-feira é reservada para uma mesa redonda com historiadores e outros intelectuais que comentam a época e os fatos que surgiram nos capítulos durante a semana.

É um bom sinal que a TV Pública argentina, depois de passar os anos do kirchnerismo servindo quase que unicamente para fazer propaganda política agora se dedique a produzir uma ficção educativa com qualidade dramatúrgica e esmero na produção. Os números de audiência na primeira semana foram positivos, a ver se continuam assim até o fim da saga.

 

 

 

 

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Anita, a montonera, uma história difícil de contar https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2017/08/10/anita-a-montonera-uma-historia-dificil-de-contar/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2017/08/10/anita-a-montonera-uma-historia-dificil-de-contar/#comments Thu, 10 Aug 2017 18:56:45 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=2938
A montonera Ana María González, que matou o chefe da Polícia Militar durante a ditadura (Foto Divulgação)

O historiador argentino Federico Lorenz acaba de lançar “Cenizas que te Rodearon Al Caer – Vidas y Muertes de Ana María González, la Montonera que Mató al Jefe de la Policía Federal” (Sudamericana). Apesar de se tratar de um episódio importante para entender os anos 1970 na Argentina, essa história até hoje não tinha sido bem contada. A razão é complexa. Para peronistas e a intelectualidade de esquerda, era complicado demais justificar a atitude da jovem guerrilheira Anita, que aos 20 anos de idade colocou uma bomba debaixo da cama de um dos principais comandantes da repressão, matando-o de pijama, enquanto dormia.

Por outro lado, como conta Lorenz, lhe parecia injusto que a história de Anita tenha sido sempre relatada apenas por seus inimigos, de modo parcial e sem a preocupação de contextualizar e entender as motivações da garota, naquele momento violento da história argentina.

O resultado é uma narrativa intensa, comovente, de suspense e horror, que humaniza Anita, mas não a justifica. Mais do que isso, mostra as razões de ter sido criado, na Argentina, um ambiente de agressividade tão grande que envolveu tanto os civis que se levantaram contra a ditadura militar (1976-1983) como despertou a máquina de repressão brutal e genocida que o Estado pôs em vigor.

Entrevistando colegas de escola e de militância, mas sem ter podido falar com os familiares, que se recusam a comentar publicamente a história de Anita, Lorenz trata de sua formação política e de sua entrada na guerrilha urbana montoneros. O foco da pesquisa está entre os anos de 1973 e 1976. É um período crucial da história argentina e pouco estudado, uma espécie de tabu nacional porque, mesmo em tempos de democracia, naqueles anos o país já vivia o enfrentamento entre forças da repressão estatais e militantes civis armados.

Quando a ditadura começou, Anita, uma menina de classe média, ia a um colégio numa região nobre da cidade, o bairro de San Isidro, onde estudava para o magistério. Notou que estava na mesma classe que Chela, filha de Cesáreo Cardozo, nada menos do que o chefe da Polícia Federal e homem de confiança do então ditador Jorge Rafael Videla (1925-2013). A garota, então, informou seus superiores dentro da organização guerrilheira, e estes lhe pediram que se aproximasse de Chela, virando sua amiga e ganhando a confiança da família, que passou a frequentar. O plano que veio na sequência foi armado meticulosamente pelo grupo. A execução, porém, foi levada adiante apenas pela corajosa Anita.

Armaram uma bomba caseira, associada a um relógio, que Anita levou na bolsa para a escola naquele dia 17 de junho. Na saída, a menina saiu acompanhada de Chela e escoltada pelos guardas que protegiam a família Cardozo. A ideia era que ambas fizessem a lição de casa juntas. Num determinado momento, Anita disse que tinha brigado com o namorado e que por isso queria fazer uma ligação privada, de preferência do aparelho que estava no quarto dos pais de Chela, que permitiu sem desconfiar de nada.

Uma vez ali, Anita posicionou a bomba debaixo da cama matrimonial. Depois, hesitou, achando que a tinha deixado num local próximo de onde o oficial teria os pés, e podia, por conta disso, não ser fatal. Voltou, então, ao quarto e reposicionou a bomba, desta vez num local que corresponderia ao ponto em que ele descansaria a cabeça. Voltando a sala, disse que não estava passando bem e que iria embora. Horas depois, à 1.30 da madrugada do dia 18, a bomba explodiu matando Cardozo e destroçando seu cadáver. A esposa do oficial, para sua sorte, não se encontrava no quarto, pois fazia companhia à mãe, que visitava a família. Chela não teve dúvidas de que se tratava de coisa de Anita, porque conhecia suas opiniões políticas e algo de sua militância. Testemunhas contaram a Lorenz que ela gritava, já do lado de fora do apartamento, que a amiga a havia traído.

O episódio foi uma espécie de divisor de águas na história da ditadura, e acabou virando um tiro nos pés para os montoneros. Para o regime militar, que já vinha realizando prisões arbitrárias, torturando e desaparecendo gente, a atitude da jovem montonera ajudou a justificar a brutalidade do aparato repressivo. Levou, também, a sociedade argentina a aceitar e corroborar o regime, que estaria “colocando ordem” na situação do país.

Anita foi caçada por meses, até ser atingida num tiroteio com oficiais do Exército, no ano seguinte. Ferida gravemente, foi levada a um dos centros de reunião dos montoneros, que duvidavam entre leva-la a um hospital ou não. Suas últimas horas foram reconstruídas a partir do relato do namorado, que morreria depois no centro de detenção clandestino da ESMA (Escola Superior da Marinha), mas não sem antes relatar a sobreviventes os detalhes daquela noite. Segundo o que Lorenz ouviu dessas pessoas, Anita teria se recusado a ir para um hospital porque, se ali morresse, seu corpo “viraria um troféu” para os militares. Os colegas concordaram, e depois que ela agonizou, queimaram a casa com o corpo da montonera dentro.

A história dá para um filme, apesar de infelizmente se tratar de um episódio da pura realidade de um pesadelo coletivo. Leva a uma profunda reflexão sobre esse período terrível que a Argentina atravessou. O título do livro, tirado de um poema de Juan Gelman (1930-2014), se refere justamente às palpáveis sequelas que ainda hoje existem na sociedade e que são resultado de comportamentos como os de Anita e das ações brutais do Estado a quem ela combatia e que reagiu de forma ainda mais sangrenta.

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No começo, eram as Loucas da Praça de Maio https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2017/04/30/no-comeco-eram-as-loucas-da-praca-de-maio/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2017/04/30/no-comeco-eram-as-loucas-da-praca-de-maio/#respond Sun, 30 Apr 2017 08:04:47 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=2845
Uma das primeiras marchas das Mães da Praça de Maio (Foto AFP)

“En Argentina, las locas de Plaza de Mayo serán un ejemplo de salud mental porque ellas se negaron a olvidar en los tiempos de la amnesia obligatoria” (Eduardo Galeano)

Há 40 anos, as primeiras Mães da Praça de Maio _como só ficariam conhecidas depois_ saíram a reclamar a reaparição, com vida, de seus filhos sequestrados. Naquele já distante 30 de abril de 1977, elas compunham um grupo de apenas 14.

Depois de perguntar inutilmente pelos jovens em delegacias, repartições do Estado, igrejas, hospitais e de pedir ajuda, inutilmente, aos grandes jornais e meios televisivos, elas decidiram que marchariam todas as quintas-feiras, às 3.30pm, com panos brancos envolvendo a cabeça, diante da Casa Rosada _sede do governo argentino.

O fato de serem logo identificadas como “as Loucas da Praça de Maio” diz muito não apenas sobre o machismo da sociedade argentina daquele tempo, mas também sobre o alto teor de cumplicidade, medo ou covardia de grande parte dos argentinos diante de um problema que ia-se fazendo cada vez mais presente: dia após dia corriam boca-a-boca novas histórias de pessoas que iam sendo sequestradas pelos agentes da repressão da ditadura militar (1976-1983).

Neste aniversário de 40 anos da luta das Mães, vale lembrar esse detalhe que parece uma piada de mau gosto: o fato de terem sido chamadas de “loucas” por um bom tempo. Essa lúgubre anedota é sinal de que essas mulheres não sofreram apenas a perda dos filhos, mas também o preconceito e o menosprezo por parte de muitos. Nos dias de hoje, em que voltaram a surgir vozes que questionam o número de mortos e que tentam minimizar os horrores do regime, parece que esse adjetivo pejorativo de 40 anos atrás volta a ganhar vida.

Muita coisa ocorreu desde aquele 30 de abril até hoje. As Mães tornaram visível uma terrível atrocidade cometida por parte do Estado e colaboraram para que, até agora, já tenham sido emitidas mais de 900 condenações a repressores na Argentina.

O general que comandou o país no começo daqueles anos de chumbo, Jorge Rafael Videla (1925-2013), morreu de fato detrás das grades, enquanto outros comandos também receberam altas penas. A Argentina avançou no esclarecimento dos crimes cometidos pelo Estado como nenhum dos países do Cone Sul logrou fazer. Dos generais brasileiros, nenhum foi condenado. O chileno Augusto Pinochet (1915-2006) até passou uns maus momentos de prisão domiciliar em Londres, mas jamais foi para a cadeia.

Porém, o passado das Mães também ficou manchado por erros e atitudes de algumas delas. O grupo não se manteve coeso o tempo todo. Sob a liderança da combativa e revanchista Hebe De Bonafini, uma seção deixou-se transformar em braço político do kirchnerismo. Controversa, Bonafini, que perdeu dois filhos na ditadura, chegou a defender o ataque às Torres Gêmeas e aceitou administrar um projeto de construção de moradias financiado pelo governo Cristina Kirchner, depois acusado de desvio de verbas.

Outro grupo, porém, chamado de Línea Fundadora das Mães da Praça de Maio segue mantendo a ideia de que a luta para esclarecer as desaparições é algo que se refere ao Estado e à sociedade como um todo e não deve ser usado como peça de propaganda de nenhum governo.

As Mães estão desaparecendo, por uma questão natural: a maioria das que restaram já passou dos 80, algumas já não têm mais condições físicas ou forças para marchar. Por isso é importante lembrar esse aniversário e celebra-las. Sim, houve erros e exageros, mas sua luta é praticamente única na história da região.

Vale homenagear, especialmente, aquelas pioneiras que, além de enfrentarem o medo e o preconceito, foram também elas mesmas caçadas e exterminadas _três delas foram atiradas às profundezas do Rio da Prata nos temidos “voos da morte”.

Parabéns, Mães da Praça de Maio. Loucura hoje é achar que sua luta não teve sentido.

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Assassinato de Letelier completa 40 anos, e ainda deixa dúvidas https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2016/09/21/assassinato-de-letelier-completa-40-anos-e-ainda-deixa-duvidas/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2016/09/21/assassinato-de-letelier-completa-40-anos-e-ainda-deixa-duvidas/#comments Wed, 21 Sep 2016 16:40:19 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=2537 O ex-diplomata chileno Orlando Letelier, morto há 40 anos (Foto Arquivo)
O ex-diplomata chileno Orlando Letelier, morto há 40 anos (Foto Arquivo)

Foi num dia 21 de setembro como hoje, há 40 anos, que um dos piores crimes cometidos durante os tempos das ditaduras no Cone Sul ocorreu. O mais chocante é que este não se deu num centro de detenção clandestino ou nas ruas de Buenos Aires, Santiago, Montevidéu, São Paulo ou Assunção _que já eram atrocidades monstruosas em si. Naquela manhã de outono em Washington, capital dos EUA, o carro em que viajavam o ex-diplomata e ativista chileno Orlando Letelier, 44, e sua assistente norte-americana, Ronni Moffit, 25, explodiu, matando a ambos e deixando ferido o marido da jovem.

Letelier havia sido funcionário durante o governo de Salvador Allende, derrubado em 11 de setembro de 1973, no golpe de Estado no palácio de La Moneda, em Santiago, comandado pelo general Augusto Pinochet. Com a ditadura instalada, Letelier foi preso e enviado para uma gélida ilha no Estreito de Magalhães, onde passou alguns meses. Quando conseguiu sair dali, passando pela Venezuela, rumou para os EUA, onde já havia sido embaixador, e se transformou numa dor-de-cabeça constante para Pinochet.

Com muitos contatos na capital norte-americana, Letelier começou a denunciar os abusos de direitos humanos cometidos pelos militares chilenos em palestras, reuniões e em instituições do Estado. Porém, sua vida, como conta o historiador John Dinges em “Assassination on Embassy Row”, não foi fácil ali desde o começo. Sem dinheiro, com quatro filhos, problemas conjugais (havia tido um “affair” na Venezuela e tentava reatar com a esposa) e sofrendo ameaças de morte, ainda assim seguiu lutando para que sua voz continuasse a ser ouvida.

Apesar de todas as suspeitas de que a autoria do crime havia partido de uma ordem de Santiago, a primeira evidência real de que Pinochet estava por trás do ataque veio à luz apenas no ano passado, com o general já morto.

Foi quando o secretário de Estado norte-americano John Kerry entregou à presidente chilena Michelle Bachelet um pacote de documentos até então classificados. Neles, entre outras coisas, havia uma correspondência dos anos 1980 entre o ex-Secretário de Estado, George Shultz, e o então presidente Ronald Reagan, dizendo que a CIA, por fim, havia reunido “provas convincentes” de que Pinochet havia ordenado pessoalmente seu chefe de inteligência, Manuel Contreras, a realizar o ataque, usando agentes da DINA, a polícia secreta chilena.

Carro em que viajava Letelier e sua assistente, após a explosão (Foto Arquivo)
Carro em que viajava Letelier e sua assistente, após a explosão (Foto Arquivo)

A família de Letelier crê que os EUA tenham mais evidências para apresentar, e pede que o governo desclassifique mais documentos. De fato, o país do norte ainda tem muito a revelar sobre o que ocorreu naqueles anos e qual sua participação em algumas operações. Um bom sinal da boa vontade da atual administração foi que o presidente Obama tenha entregue um pacote similar de documentos ao governo argentino, que apontam para uma maior conexão entre Henry Kissinger e os generais da ditadura militar local (1976-1983), auxiliando a esclarecer parte do que ocorreu naqueles anos.

Dinges, historiador especializado em ações da Operação Condor, porém, afirma repetidamente que muitas das verdades sobre os abusos cometidos durante as ditaduras latino-americanas precisam surgir dos próprios arquivos militares destes países, ou de testemunhos daqueles que protagonizaram a repressão. “Antes que seja tarde demais”, afirmou, em entrevista à Folha, no ano passado.

Hoje, a presidente Bachelet e a família de Letelier participam de uma homenagem ao ex-diplomata, em Washington. Seria importante que o episódio fosse totalmente esclarecido antes de ser esquecido. Quatro décadas já é tempo demais.

 

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A difícil reconciliação da Argentina com seus militares https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2016/07/16/a-dificil-reconciliacao-da-argentina-com-seus-militares/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2016/07/16/a-dificil-reconciliacao-da-argentina-com-seus-militares/#comments Sun, 17 Jul 2016 02:01:21 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=2382 O ex-militar Aldo Rico, que combateu nas Malvinas e participou de tentativa de golpe contra Raúl Alfonsín (Foto Clarín)
O ex-militar Aldo Rico, que combateu nas Malvinas e participou de tentativa de golpe contra Raúl Alfonsín (Foto Reprodução)

Todos os governos argentinos pós-ditadura (1976-1983) tiveram de lidar com o problema. Cada um à sua maneira, porém, nenhum o resolveu de fato. A questão é: qual deve ser o papel das Forças Armadas na Argentina, país na qual estas protagonizaram um regime que levou à desaparição de pelo menos 20 mil pessoas?

O primeiro presidente eleito de forma democrática, Raúl Alfonsín, foi quem mais sentiu a ameaça de um retorno dos tanques às ruas, com as sublevações de 1987 e 1988. Depois de impulsar o julgamento dos envolvidos nos crimes da repressão, teve de capitular às pressões, e promulgou as leis de Obediência Devida e Ponto Final, isentando de culpa os que agiram obedecendo a ordens superiores. Do início ao fim de seu governo, porém, conviveu com a possibilidade de que os fardados o depusessem como já haviam feito noutros momentos do século 20.

Seus dois sucessores, Carlos Menem e Fernando De la Rúa, mantiveram relações discretas com as Forças Armadas. Já os Kirchner, tanto Néstor como Cristina, assumiram posições mais ofensivas. Primeiro derrubando indultos e anistias e impulsando novamente julgamentos dos casos de repressão dos anos 70, depois evitando comparecer a comemorações pátrias junto a comandantes. Em vez de desfiles militares, ambos preferiam celebrações mais populares nos feriados nacionais. Mais do que isso, limitaram o orçamento das Forças Armadas, que desde então vêm reclamando não terem dinheiro suficiente para renovar armamento e promover o devido treinamento das novas gerações de soldados.

Desde que assumiu o governo em dezembro do ano passado, Mauricio Macri tem mantido o discurso conciliador com o qual venceu a eleição. A prática, porém, impõe dificuldades, e encontrar o novo papel do Exército argentino no Estado é uma de suas árduas tarefas. A nova geração de militares, de modo geral, não quer identificar-se com os abusos de poder do passado, mas vive ainda sob essa sombra, enquanto alguns personagens daquele passado terrível ainda seguem na ativa.

O governo vem fazendo gestos de aproximação e rediscutindo orçamentos e prioridades _como reforçar o controle das fronteiras, engaja-los na luta contra o narcotráfico e em outras ações. A ideia, diz o governo, é tentar deixar para trás o legado negativo daquele período e deixar que a Justiça faça seu trabalho, julgando os que cometeram abuso.

Foi com esse intuito que a administração macrista convidou mais de 6 mil oficiais para uma grande comemoração do Bicentenário da Independência, no último dia 9 de julho. Foram convocados a participar da festa atuais integrantes das Forças Armadas, ex-militares e ex-combatentes da Guerra das Malvinas (1982).

Mas parece que Macri adivinhou que o encontro seria, no mínimo, uma saia-justa. Pela manhã, escreveu um tuíte dizendo-se “extenuado” pela recente viagem à Europa e, com isso, justificando que não iria à comemoração, embora recomendasse que a população, sim, comparecesse. O comentário foi tão criticado nas redes sociais que seus assessores o instaram a mudar de ideia.

Só que as forças não são hoje um bloco único. Principalmente entre os ex-combatentes das Malvinas há muitas divisões. Existem grupos que estão processando até hoje seus superiores pelos maus-tratos recebidos durante o conflito e por supostos casos de tortura de recrutas. Outros ainda condenam os ex-generais por terem-nos mandado a essa guerra que desde o princípio soava perdida. Há, também, um terceiro grupo que veste a camisa e se orgulha da tentativa patriótica de ocupar as ilhas. Desde 1982 esses grupos se opõem entre si. Ou seja, não havia muita boa vontade para que todos caminhassem juntos, e de fato muitos se ausentaram.

Ainda assim, a multidão presente aplaudiu os veteranos presentes e o tom seguiu festivo até que, em meio ao desfile, surge todo fardado a figura algo esquecida da memória de muitos de Aldo Rico _justamente um dos comandantes das sublevações contra o governo democrático de Raúl Alfonsín. Aos 73, se disse orgulhoso de estar ali mesmo sem ter sido chamado, porque ao longo de sua carreira militar havia “cumprido seu dever”.

A imagem do ex-golpista fardado saudando a multidão chocou os presentes, viralizou nas redes e virou assunto dos meios durante toda a semana. O atual ministro da Defensa, Julio Martínez, que é justamente do partido de Alfonsín, a União Cívica Radical (parte da base de apoio de Macri), apressou-se a dizer que Rico não havia sido convidado e a lamentar que sua presença tenha ofuscado o esforço de conciliação que gostaria que marcasse o desfile.

“Ninguém está festejando que Aldo Rico esteja aqui”, disse Martínez. “O governo não o convidou, ele veio como ex-combatente nas Malvinas. Lamento que tudo o que vínhamos fazendo desapareça e a notícia do dia seja a presença de Aldo Rico”, declarou aos jornais locais.

Numa semana difícil para o governo, em que houve protestos em Buenos Aires pelos aumentos de mais de 700% nas tarifas de gás, Macri ainda teve de lidar com esse desconforto com os fardados. Desconforto que apenas será solucionado se o presidente desenhar uma política mais clara para a relação do Estado com as Forças Armadas. Se um conflito armado com outros países da região parece algo distante da realidade, de que estas devem ocupar-se efetivamente nos dias de hoje?

Por outro lado, a nova geração de oficiais deveria mostrar de modo mais claro que nada tem a ver com quem cometeu abusos na ditadura. Andar ao lado de Aldo Rico, um general que comandou rebelião contra um governo democrático e apoiou a iniciativa dos ditadores de ocupar as Malvinas, definitivamente não é o melhor dos sinais a mandar à sociedade.

 

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