Sylvia Colombo https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br Latinidades Tue, 30 Nov 2021 12:31:53 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Série sobre Maradona revela duas caras da Argentina https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/11/01/serie-sobre-maradona-revela-duas-caras-da-argentina/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/11/01/serie-sobre-maradona-revela-duas-caras-da-argentina/#respond Mon, 01 Nov 2021 14:57:55 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/MC63ASICCZAAPPRIOEMLN7K3ZA-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3950 O escritor britânico Martin Amis, que viveu vários anos no Rio da Prata, dizia que o caráter nacional argentino era definido pelo fato de o primeiro gol de Maradona contra os ingleses, na Copa do Mundo de 1986, ser preferido em relação ao segundo.

O primeiro, para quem não lembra ou não viu, é o famoso gol de mão, que o próprio ídolo admitiu ter sido roubado, mas justificou afirmando que se tratava da “mão de Deus”. O segundo, minutos depois, é uma jogada cinematográfica, em que Maradona recebe um passe na área argentina, dribla meio time adversário e arremata, enganando o goleiro Shilton.

Para Amis, entre a trapaça do primeiro gol e a genialidade do segundo, a maioria dos argentinos fica mais encantado com a trapaça. E isso explicaria não apenas o carisma do jogador, mas também uma relação de fascínio dos argentinos com a corrupção e com aqueles que têm talento para enganar os demais. Maradona seria o exemplo máximo da “viveza criolla”, algo que no Brasil seria o equivalente da malandragem.

“Maradona – Sueño Bendito”, série da Amazon Prime lançada na semana em que o ídolo completaria 61 anos e pouco antes do primeiro aniversário de sua morte, joga com essa dualidade argentina. Os momentos de genialidade são relembrados e repassados com preciosas imagens de época, emocionantes de rever. Mas o foco e  o investimento na sedução do espectador estão nos detalhes de sua vida de excessos: bebida, drogas e mulheres. E, mais uma vez, Maradona é desculpado. Pelo talento futebolístico, sim. Pela história de superação do menino nascido na pobreza, também. Mas, principalmente, pela malícia, pelo comportamento machista e criminoso do jogador, que abusou de mulheres e se meteu com a máfia italiana, entre outras coisas.

Entre as passagens que mostram sua genialidade futebolística, se destacam as de seu início, no clube Cebollitas, depois no Boca e no Barcelona. Também está bem recriada sua infância em Villa Fiorito, favela de Buenos Aires que, apesar do filho famoso, continua tão pobre como antes _vale lembrar que a pobreza na Argentina é de 40% da população. Entre as cenas que fazem o elogio de suas barbaridades estão seu comportamento agressivo com os cartolas, suas mentiras para enganar as mulheres, os filhos ilegítimos, seus gastos disparatados de dinheiro em festas e carros, sua relação com a cocaína.

As mulheres ocupam papéis de entrega e sofrimento para que o ídolo brilhe. Doña Tota (em atuações fantásticas de Mercedes Morán e Rita Cortese), a mãe de Maradona, que é tratada como santa na Argentina, exerce sua função de parir, criar, proteger e desculpar o filho. Não sabemos de mais nada de sua vida. Claudia (a mulher), surge como a que sempre aceitou e sofreu escondida as infidelidades do marido, e as amantes como mulheres  “que sabiam com quem estavam se metendo e por isso não têm do que reclamar”. Clássica narrativa “machirula”, como se diz aqui.

O Brasil surge, como é de costume, com exageros no estereótipo, e como notou a imprensa local, distorcendo fatos. Na cena do encontro de Maradona com Pelé, que ocorreu em 1979, o ídolo brasileiro aparece rodeado de mulheres de topless, e ambos se jogam num coquetel à beira da piscina. Na realidade, o encontrou foi presenciado por assessores homens dos dois lados e do pai de Maradona, Don Diego.

Há mérito notável da série na qualidade do roteiro, no conjunto das atuações de um casting de primeira linha e na pesquisa de imagens de época. Os três atores que fazem o Maradona adulto também se sobressaem, com especial destaque para Nazareno Casero, que faz o jogador em sua época no Barcelona. O ator imita seus trejeitos e seu modo de andar à perfeição.

O show decepciona pelo ângulo ao tratar o personagem, hiperbolizando a vida de anedotas já exageradas do personagem, como na cena inventada em que um Maradona adolescente se livra de um grupo de militares durante a ditadura fazendo embaixadinhas. Uma série cheia de exageros que poderiam ser dispensáveis, como era a personalidade do próprio jogador.

 

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Filme argentino sugere violência política entre sussurros https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/10/16/filme-argentino-sugere-violencia-politica-entre-sussurros/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/10/16/filme-argentino-sugere-violencia-politica-entre-sussurros/#respond Sat, 16 Oct 2021 20:34:13 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/azor-3-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3933 Nada de sangue, fuzilamentos ou tortura. “Azor” expõe a ditadura militar argentina (1976-1983) desde um outro ângulo, o daqueles que estiveram por trás dos abusos de direitos humanos, mas que não mancharam suas mãos com o trabalho sujo, mantiveram um cruel silêncio diante dos embates políticos e lucraram muito no período. Na cidade em que vivem, pouco se vê de protestos e prisões. Sua bolha parece consistir em jardins bonitos com piscina, propriedades equestres e salões de clubes sociais.

Produção suíço-argentina que estreará nas próximas semanas no Brasil, “Azor” se passa na Buenos Aires de 1980, com a chegada ao país do banqueiro Yvan de Wiel (Fabrizio Rongione) e sua mulher, Ines (Stéphanie Cléau). Embora saibam, por alto, o que está ocorrendo no país, o casal suíço mantém o foco noutra coisa: como manter as contas dos ricos clientes do banco europeu depois que seu sócio e representante no país, René Keys, desapareceu misteriosamente?

Num filme de silêncios e murmúrios, a presença do desaparecido ressalta. Todos sabem algo dele, mas o quebra-cabeças sobre o que lhe aconteceu parece não terminar de fechar. Seu apartamento, tal qual um labirinto borgeano, foi abandonado com portas abertas e cigarros por fumar. Aos poucos, vamos sabendo que ele andava realizando negócios paralelos, mas, seria ao lado dos subversivos ou da cabeça do regime? A referência a “O Terceiro Homem”, de Graham Greene é clara.

Falado em francês e em espanhol, “Azor” é um thriller político, um suspense narrado em um clima de tensão furiosa, embora quase nada vocalizada. A ação praticamente inexiste e os diálogos, parcos e sutis, acompanham a tomada lenta de consciência de De Wiel. No começo, ele parece se horrorizar com o que ouve, tem medo de dar um passo em falso e se assusta com o que imagina que pode estar acontecendo. Aos poucos, vai entrando no jogo de sedução e traição de seus interlocutores: empresários, líderes da Igreja, militares, damas da alta sociedade.

Azor, neste contexto, é uma gíria entre os banqueiros, que revela a precaução que se deve tomar no labirinto em que o filme vai se metendo. Outra referência clara é “Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, com De Wiel em busca de seu próprio Sr. Kurtz, e “o horror” desenhado na história dos anos de chumbo argentinos.

 

Dirigido pelo argentino Andreas Fontana, que cresceu na Suíça, o filme conta com excelentes atuações, como a do protagonista e a de Pablo Torre Nilsson, que encarna o monsenhor Tatoski, apoiador da ditadura e que aposta em cavalos e na Bolsa. O clima sufocante da trama leva a pensar também nos universos criados por outra argentina, Lucrecia Martel. Diferentemente dela, porém, “Azor” tem a ação numa cidade grande, agitada e sofisticada.

Num país que já produziu dezenas de bom títulos sobre suas ditaduras militares, “Azor” ressalta pela originalidade do olhar e a sofisticação do enredo. Depois de desfilar pela Berlinale e por festivais estrangeiros, aterrissa no Brasil em novembro.

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Apertem os cintos, o presidente sumiu https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/09/18/apertem-os-cintos-o-presidente-sumiu/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/09/18/apertem-os-cintos-o-presidente-sumiu/#respond Sat, 18 Sep 2021 15:37:02 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/alberto-320x213.png https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3914 “Ainda tenho dois anos pela frente”, dizia Alberto Fernández, há poucos dias, sobre as perspectivas de reativação econômica da Argentina no que falta de seu mandato.

Mal sabia ele que talvez a história não seja bem assim. Após a derrota do peronismo nas eleições primárias do último domingo (12), sua madrinha política e idealizadora de sua candidatura em 2019, a vice-presidente Cristina Kirchner, saiu das sombras para lembrá-lo de que foi ela quem o colocou ali, e que, se quiser, ela mesma pode tirá-lo a qualquer momento.

A crise escalou rapidamente, e depois das renúncias dos ministros fiéis à atual vice-presidente, veio a evidência de um divórcio entre ambos que já vinha se desenhando nos últimos tempos, com intensa troca de farpas. Cristina exigiu, de modo incendiário, mudanças na condução do país e uma troca geral do gabinete de ministros, que tinha sido escolhido por Fernández depois de eleito.

Cristina apresentou os nomes, e o presidente aceitou todos. Com muita dificuldade, o mandatário conseguiu manter seus aliados mais fieis, ainda que esvaziando seu poder. Santiago Cafiero, sua mão-direita e até então chefe de gabinete, passa a ser um decorativo chanceler, enquanto Vilma Ibarra, sua ex-mulher e grande amiga, manteve-se no cargo de secretária legal e técnica. Mas apenas isso.

O resto dos ministros são todos cristinistas, ou seja, da facção mais radical do kirchnerismo. A começar por Wado de Pedro (Interior), que acendeu a chama da rebelião da vice na noite de quarta-feira (15). De Pedro manteve seu posto, e voltam ao time ex-ministros de Cristina, como Julián Dominguez (Agricultura), Aníbal Fernández (Segurança) e Daniel Filmus (Ciência). Na posto-chave de chefe de gabinete, um guardião do cristinismo, Juan Manzur, conhecido por seu modo clientelista de fazer política e pelos enfrentamentos com feministas, por se posicionar contra a lei do aborto.

Entre os poucos sobreviventes está o ministro mais técnico, Martín Guzmán, da economia. Teve sempre a simpatia de Cristina até que a crise econômica começou a se fazer mais grave. A vice pedia que ele se dedicasse menos à negociação da dívida externa, e mais à elaboração de planos sociais. Fernández considerava essencial que o país deixasse de dever aos credores. Cristina nunca acreditou nessa prioridade. E já se nota quem ganhou. O acertado, por ora, é que Guzmán ficará pelo menos até dar um desenlace de algum modo, à novela com o FMI, a quem a Argentina deve US$ 44 bilhões. Depois, seu futuro é incerto.

Cristina mostrou, assim, que, ao contrário do que muitos pensavam, está longe de se sentir aposentada. A reaparição dela levantou a euforia os militantes kirchneristas, e o horror dos grandes meios de comunicação do país, críticos da gestão e que a apontam, de modo histriônico, como culpada pela crise que a Argentina atravessa.

Por oito anos (2007-2015), os argentinos tinham se acostumado a ver Cristina falando praticamente todos os dias. Se não era por meio dos veículos de comunicação governistas, era via longas cadeias nacionais de TV e rádio, em que exibia seu talento com a retórica popular.

Alguns meses antes da eleição de 2019, Cristina deu um passo atrás de uma possível candidatura, sabendo que, ainda que gerasse uma paixão incondicional em cerca de 30% da população, sua taxa de rejeição gira em torno de 70%.

A jogada descolocou o então presidente Mauricio Macri, que contava com uma reeleição fácil acreditando que o voto contra a ex-presidente lhe favoreceria. O eleito, Alberto Fernández, era então um peronista veterano sem brilho próprio. Em dois anos, o mandatário não conseguiu fazer nada para mudar esse status.

Para quem olhasse rápido, a ex-mandatária, agora em silêncio, parecia apenas estar buscando escapar dos sete processos a que responde na Justiça e de olho numa aposentadoria confortável. Mas a verdade é que sua onipresença na gestão Fernández é imensa. A fonte de seu poder está na militância organizada no La Cámpora. Organização criada por seu marido, o ex-presidente Néstor Kirchner, o camporismo ocupa lugares-chave na administração pública e do Estado. Cristina também controla, ainda, uma maioria peronista no Congresso. Ao dar-se conta de que pode perder a maioria com uma derrota em 14 de novembro, Cristina reagiu visceralmente.

A jogada da vice-presidente, baseada na pressão e no autoritarismo de seus modos, tem um efeito positivo entre parte da sociedade, que considera Fernández fraco e que gosta de um estilo mais personalista de governo. O presidente vinha se desgastando pela má gestão da economia e da pandemia, além de escândalos pessoais como o caso da festa de sua mulher em meio à pandemia e ao fura-fila das vacinas por parte de seus amigos políticos. Em outra parte da população, o gesto populista de Cristina gera alta rejeição, que será testada nas urnas em novembro.

O que está em jogo, agora, é como Fernández poderá governar os dois anos (dois anos?) que lhe faltam depois de esse episódio, em que sua autoridade foi esvaziada e sua figura pessoal, humilhada. Também, se Cristina irá se sentir satisfeita com as mudanças realizadas ou se seguirá avançando em direção ao “sillón de Rivadavia”, a cadeira presidencial.

Sem propriamente dar um golpe de Estado, Cristina mostrou que, assim como no primeiro dia da gestão, quem manda na Argentina ainda é ela. Desmoralizado, Alberto terá de reagir de alguma maneira e o cenário é incerto.

As brigas entre peronistas e entre os peronismos são uma constante na história argentina. Começaram, justamente, com o próprio Perón, que conquistou parte dos militares, parte da Igreja, dividindo essas instituições. Cenas como o massacre de Ezeiza, em sua volta do exílio, nos anos 1970, em que se enfrentaram numa batalha campal os peronistas sindicalistas e os peronistas montoneros, mostram como a força pode ser destrutiva contra si mesma.

Mas, como dizia o mesmo general Perón, “os peronistas são como gatos, quando pensam que estamos brigando, é porque estamos nos reproduzindo”. Não se pode arriscar, agora, se a força voltará a estar unida como em 2019, ou se irá se fragmentar novamente.

A única coisa que se sabe é que os argentinos tem pressa, com uma inflação galopante de 50% ao ano e o desemprego na casa de dois dígitos, vacinação lenta e a variante delta começando a se disseminar de modo mais geral no país. A discussão palaciana, antes os verdadeiros problemas do país, parece pequena e desnecessária.

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Teatro argentino luta para sobreviver na pandemia https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/06/25/teatro-argentino-luta-para-sobreviver-na-pandemia/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/06/25/teatro-argentino-luta-para-sobreviver-na-pandemia/#respond Fri, 25 Jun 2021 19:10:11 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/el-acompanamiento-1087696-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3815 Portas metálicas de lojas que faliram estão fechadas, cartazes de filmes que estavam em cartaz antes de a pandemia começar, rasgados, mas ainda colados nas vitrines dos cinemas. Livrarias e sebos atendem do lado de fora por conta das restrições de entrada nos comércios, pouca gente caminhando, mendigos nas esquinas pedindo trocados.

Assim está a avenida Corrientes, epicentro da boemia portenha, que em outros tempos reunia centenas de pessoas todas as noites. Elas a frequentavam em busca de diversão nos cinemas e nos teatros de rua, ou porque queriam comprar livros de madrugada, ou, ainda, encontrar um último bar ou restaurante aberto no amanhecer de um novo dia.

Os efeitos da pandemia do coronavírus, as restrições de uma longa quarentena e as atuais, ainda que mais flexíveis, calaram esse símbolo da cidade de Buenos Aires. Nas últimas semanas, o governo local, de oposição ao governo nacional, tenta reabrir os negócios ali, sob pressão dos sindicatos da gastronomia e do mundo do espetáculo. Já o governo nacional, temendo a disseminação de novas variantes do coronavírus nos grandes centros urbanos, resiste em permitir a retomada total das atividades no centro portenho. Detrás da queda-de-braço política, que tem como pano de fundo as eleições legislativas que ocorrem em novembro, há atores, produtores e diretores que insistem que “o show deve continuar”.

Um deles é o polêmico e renomado Luis Brandoni. O humorista, conhecido no Brasil por alguns dos filmes de que participa, como “A Odisseia dos Tontos” (2019) e “Minha Obra Prima” (2018), é um deles. Crítico do peronismo e da atual gestão de Alberto Fernández, ex-deputado opositor e militante da União Cívica Radical, Brandoni considera que a política de restrições e de confinamento é ineficaz e vem levando toda uma categoria à ruína, a de atores, diretores e funcionários dos teatros. “Se cumprirmos todos os protocolos, estou seguro de que ninguém vai se contagiar no teatro. E temos um montão de protocolos. O teatro alegra as pessoas, as faz pensar, é necessário para o espírito. A humanidade precisa do teatro há séculos, temos de continuar”, diz Brandoni à Folha, caminhando pela Corrientes, buscando onde comer algo já depois da função, entre os poucos lugares ainda abertos.

Na última quinta-feira (24), em sessão da obra “El Acompañamiento”, Brandoni, um dos principais atores do país, agradeceu o público ao final do espetáculo dizendo: “Não tenham medo, voltem aos teatros, chamem os amigos. O teatro está na alma de Buenos Aires e precisamos fazer com que Buenos Aires continue viva”. Foi aplaudido de pé. O público era majoritariamente maior de 50 anos, com muitos em idade mais avançada.

Atualmente, os teatros da cidade de Buenos Aires estão com permissão de funcionar com apenas 30% da capacidade das salas. Na entrada, toma-se a temperatura e se distribui álcool em gel. A sala não é arejada. Antes do início da sessão, um funcionário explica as regras aos espectadores, que se sentam com duas cadeiras de distanciamento uns dos outros: “Não retirem a máscara em nenhum momento. Quando a peça terminar, sairemos fila por fila, peço paciência a todos”.

A iniciativa de reabrir os teatros é vista com maus olhos por médicos e sanitaristas, num momento em que a Argentina já perdeu mais de 90 mil pessoas para o coronavírus. “Estamos operando no limite das unidades de terapia intensiva, não é possível fazer mais reaberturas”, diz Claudio Belocopitt, dono da Swiss Medical, um dos principais planos de saúde da Argentina. “Se algo já sabemos desta pandemia é que ficar em lugares fechados, com pouca circulação de ar e com outras pessoas é arriscado, ainda mais agora com as novas variantes”, diz o infectologista Carlos J. Regazzoni.

Brandoni não concorda, e defende que mais gente possa frequentar as peças. “Com 30%, mal cobrimos os custos da operação do teatro. Estamos vendo que, com o passar do tempo, mais gente vai perdendo o medo e vendo que, com protocolos, se pode continuar”, afirma. Já vacinado e recusando-se a ser chamado de negacionista do vírus, como dizem seus críticos, crê que “outras alternativas devem ser pensadas para a pandemia, não a de tirar a liberdade das pessoas”.

A peça com a qual está em cartaz, aliás, é sobre o tema da liberdade. “El Acompañamiento” foi escrita em 1981 pelo dramaturgo Carlos Gorostiza, quando a Argentina vivia um regime militar (1976-1983). A peça estreou no movimento Teatro Aberto, que reuniu vários autores, diretores e atores de teatro para mostrar seu desacordo contra a liberdade de expressão. Muitos terminaram presos. Embora não trate diretamente da ditadura, a representa na forma de como dois velhos amigos encaram a vida dentro de suas limitações. O personagem de Brandoni, Tuco, é um frustrado cantor de tango que passou a vida trabalhando em uma metalúrgica, mas ainda sonha em cantar para um grande público com uma orquestra. Sebastián (David Di Napoli), dono de um quiosque, tenta trazê-lo à realidade.

“A peça é um diálogo sobre a capacidade de sonhar e de almejar a liberdade. Não dá para comparar a ditadura com a pandemia, obviamente, mas creio que estamos também num momento em que precisamos valorizar a liberdade, fazer-nos pensar sobre o que está ocorrendo. Vou continuar lutando para que o teatro resista, porque é a alma de Buenos Aires”, afirma.

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Com livro ingênuo, Macri tenta voltar à política em ano eleitoral https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/04/11/com-livro-ingenuo-macri-tentar-voltar-a-politica-em-ano-eleitoral/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/04/11/com-livro-ingenuo-macri-tentar-voltar-a-politica-em-ano-eleitoral/#respond Sun, 11 Apr 2021 14:30:01 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/f800x450-215321_266767_5050-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3776 A grande maioria de livros de ex-presidentes costuma ser elogiosa com relação à sua gestão. Se o de Mauricio Macri, à frente da Argentina entre 2015 e 2019, tem uma diferença positiva é a de fazer diversas autocríticas sobre o período em que um setor da sociedade alimentou a esperança de que houvesse uma enorme transformação na política e na economia, promessa que acabou sendo frustrada.

Em “Primer Tiempo” (ed. Planeta), Macri admite que a rapidez da retirada do cerco ao dólar, ocorrida nos primeiros dias da gestão, foi precipitada, e que deveria ter sido acompanhada por outras medidas. Diz que o discurso que usou, o de não culpar a gestão anterior do estado das finanças e sim fazer propostas para o futuro, não serviu. A polarização está tão viva no país que uma narrativa conciliatória não permitiu, segundo ele, que a população soubesse o quão quebrado estava o país e o quão dura era sua tarefa. Também afirma que gastou demasiado tempo em questões relacionadas à produtividade e à política externa, e que delegou a outros membros do governo a articulação política interna, e que por isso esta teria falido.

Por fim, admite ter falhado a estratégia de cooptar os peronistas moderados em torno de sua proposta. No livro, diz que alguns aceitaram num primeiro momento, mas logo o abandonaram porque deixar o peronismo significaria que perderiam diversos benefícios. “O kirchnerismo sequestrou o peronismo”, diz, ainda tentando atrair os peronistas não alinhados à ex-presidente Cristina Kirchner, também atual vice.

Nas últimas semanas, as desculpas pedidas por Macri à sociedade por meio desse mea culpa vêm sendo analisadas, debatidas, criticadas. Têm servido, também, para que o ex-presidente retome o diálogo com seu eleitorado, que vê honestidade em suas explicações.

“O senhor se sente frustrado por ter falhado e, com isso, permitido o retorno do peronismo?”, perguntou uma jornalista num programa de entrevista.

“O que te parece? Claro que sim, não trabalhei quatro anos para entregar o poder de volta para eles.”

Macri tem essa característica, em respostas rápidas, comete alguns “sincericídios”.

No livro, ele conta como foi a passagem do bastão e da faixa presidencial a Alberto Fernández. Na Argentina, é bastante incomum existirem transmissões de poder entre partidos opositores que ocorram em paz. Ao contrário, Macri quebrou uma tradição mais parecida a uma maldição, a de ser o primeiro não-peronista a terminar um mandato de forma democrática.

Foi onde apostou sua última ficha, como conta no livro. Aceitou a derrota como um democrata e decidiu comparecer à posse, abraçar o sucessor e desejar-lhe sorte, cumprindo com seu dever institucional, mesmo com a cara feia de Cristina Kirchner, e o canto da marcha peronista em alto volume como hostil trilha sonora.

Toda a simpatia que tentou mostrar nesse dia se desmonta, porém, com essa resposta. Na verdade, Macri estava enfurecido naquele dia. E começaria aí, também, a montar sua vingança, embora sempre repita que os peronistas é que são os vingativos da história argentina.

O título do livro, “Primer Tiempo”, mostra bem a que vem. Não só apela para sua identificação com o futebol (é fanático pelo esporte e foi presidente do Boca Juniors), como anuncia que vem aí um segundo tempo, talvez até com uma nova candidatura Macri.

O livro é fraco e infantil. Na falta de grandes feitos em seu mandato, Macri narra episódios desimportantes como se fossem uma saga digna de um filme. Como por exemplo quando conseguiu driblar o trânsito em Roma para chegar à tempo da cerimônia de investidura do papa Francisco.

Em outros momentos de “sincericídio”, fala de como sofre não ter podido mudar o país, e que isso só não é pior porque tem suas estâncias de fim de semana e suas possibilidades de passar o tempo que for sem trabalhar e jogando futebol com os amigos –a família de Macri é uma das mais ricas do país.

Mas, se a narrativa é ingênua, Macri não o é, e tampouco seu entorno. O livro chega às livrarias, e ele volta a estar no palco das atenções, justamente quando o país passa por um grave momento. Neste fim de semana, noticia-se que hospitais em Buenos Aires estão com as UTIs saturadas pela primeira vez. A pandemia se mostra mais agressiva nesta segunda onda do que no ano passado, e a quantidade de mortos por coronavírus se aproxima dos 60 mil. O governo, por não ter mais caixa, deixou de dar ajudas à população, o desemprego aumenta e a atividade comercial vai se estancando.

A popularidade de Alberto Fernández vem despencando. Faltam vacinas, enquanto políticos governistas são imunizados ilegalmente. Por fim, os argentinos começam a sentir que não há comando e que o ano de 2021 será dificílimo.

Haverá eleições legislativas no segundo semestre, e o grupo político de Macri, a aliança Juntos por el Cambio, liderada por ele e seu partido, o PRO (proposta republicana), pretende aproveitar esse mau momento do peronismo para retomar espaços no parlamento, voltar a crescer como força política e, em 2023, talvez voltar ao comando da nação.

“Primer Tiempo” apresenta vários problemas da gestão de Macri, mas tenta passar a sensação de que todos eles não são piores do que o que vem ocorrendo agora na Argentina. E que, num segundo tempo, ele saberia que erros não cometer e como voltar a apresentar sua proposta. “Às vezes é preciso dar dois passos atrás para dar um passo à frente”, repete o ex-presidente.

O segundo tempo do jogo político argentino recente, marcado pela polarização entre Macri e Cristina, pode estar mesmo por começar. Porém, além de dois times combalidos e desgastados, é preciso reforçar que o campo está todo esburacado, a bola está murcha, e a torcida, desanimada.

 

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Ditadura argentina em dez filmes https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/03/24/ditadura-argentina-em-dez-filmes/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/03/24/ditadura-argentina-em-dez-filmes/#respond Wed, 24 Mar 2021 23:27:15 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/images-3.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3763 A Argentina relembra neste 24 de março o golpe militar mais duro que viveu no século 20 _sim, houve vários golpes. No regime, que foi de 1976 a 1983, estima-se que mais de 20 mil pessoas tenham desaparecido, enquanto 500 bebês foram roubados. Há no país toda uma literatura e uma cinematografia dedicada a tratar desse período.

Aqui, vão dicas de dez filmes sobre esse tempo que não deveria voltar nunca mais. E o cinema nos ajuda a entender as razões.

Hector Alterio e Norma Aleandro em cena de “A História Oficial” (Divulgação)

“A História Oficial”

(Luis Puenzo, 1985)

Vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro, conta a história da professora de história Alicia Manet de Ibáñez, vivida por Norma Aleandro (uma espécie de Fernanda Montenegro da Argentina). Apesar de dar aulas sobre o passado do país, Alicia ignora o presente e só depois de questionada por estudantes começa a refletir sobre o que está acontecendo e a desconfiar de que sua filha adotiva possa ter sido roubada de guerrilheiros mortos pela repressão. O filme tem o grande mérito de refletir sobre o período no calor dos acontecimentos, com a nova democracia ainda engatinhando e a incerteza sobre uma possível volta dos militares no ambiente.

“Tangos, o Exílio de Gardel”

(Fernando Solanas, 1985)

Também filmado pouco depois da retomada democrática, o filme conta a história de um grupo de argentinos exilados em Paris (como ocorreu com o próprio diretor), que tenta armar um espetáculo dedicado ao cantor Carlos Gardel. Solanas dirigiu outros bons filmes sobre a política argentina, como “La Hora de los Hornos”. Solanas foi também senador e morreu de Covid-19 neste ano, na mesma Paris em que filmou sua obra mais conhecida.

“Infância Clandestina”

(Benjamín Avila, 2012)

Nesta co-produção com o Brasil, conta-se a história a partir da trajetória de um garoto cujos pais são montoneros que retornam ao país, em 1979, numa tentativa fracassada de tomar o poder dos militares. Juan (Teo Gutiérrez Romero) tem de mudar de nome, de escola e esconder sua verdadeira história, enquanto os pais treinam e organizam a ação que, de modo trágico, arruinará a família. A história é baseada em fatos reais relacionados à vida do próprio diretor, Benjamín Ávila. Na Argentina daquela época, várias crianças cresceram na clandestinidade e pouco se lembram da luta de seus pais.

“Kóblic”

(Sebastián Borensztein, 2016)

Arrependido de ter de pilotar “voos da morte”, em que opositores do regime eram atirados das alturas no mar, o capitão Kóblic (Ricardo Darín) busca esconder-se num vilarejo da Província de Buenos Aires, com uma nova identidade. Sua tentativa de passar despercebido, porém, vai sendo desmascarada por um velho policial da região (Óscar Martínez). Atormentado pelo seu passado, Kóblic tenta inventar uma nova vida e se apaixona. Porém, o regime militar o ameaça psicologicamente e de modo concreto.

“Buenos Aires Viceversa”

(Alejandro Agresti, 1996)

Uma espécie de “Short Cuts” portenho, mistura diferentes linhas narrativas para contar a história de filhos de desaparecidos depois de adultos. A protagonista, uma órfã que não sabe nada sobre seus pais, é contratada por um casal de idosos para filmar Buenos Aires para eles. Os dois se negam a sair de casa, à espera da filha que foi para a universidade e nunca voltou. No caminho da moça, passarão diversos personagens com vínculos íntimos, porém dissimulados, com a ditadura.

“Garage Olimpo”

(Marco Bechis, 1999)

Uma jovem de 18 anos, Maria Fabiani, é levada pelo exército argentino e torturada na prisão clandestina conhecida como Garage Olimpo. Seu torturador, curiosamente, é um jovem que vivia de aluguel na casa da mãe de Maria e tinha por ela uma paixão não-resolvida. Enquanto Maria passa pelas sessões de tortura e vive um inusitado flerte com o torturador, sua mãe sai em busca dela por Buenos Aires.

“El Mismo Amor, la Misma Lluvia”

(Juan José Campanella, 1999)

Do mesmo diretor do premiado “O Segredo de Seus Olhos” (e com o mesmo casal protagonista, Ricardo Darín e Soledad Villamil), o filme conta uma história de amor com muitos encontros e desencontros, que começa nos anos 80 e vai até o final da década de 90. O pano de fundo é a história argentina durante o final da ditadura, a Guerra das Malvinas e o começo dos anos Menem.

“Kamchatka”

(Marcelo Piñeyro, 2002)

A ditadura vista pelos olhos de uma criança de dez anos. Seus pais, fugindo dos militares, vividos por Cecila Roth e Ricardo Darín, levam o garoto para uma casa fora de Buenos Aires. No lugar, uma das poucas alternativas de passar o tempo era jogar uma variante do nosso War, em que Kamchatka, uma província russa, parecia um lugar de refúgio e esperança. Quando por fim o casal desaparece, é a lembrança desse lugar que o garoto guardará dos pais.

“Iluminados por el Fuego”

(Tristan Bauer, 2005)

A tentativa de suicídio de um ex-soldado que lutou na Guerra das Malvinas (1982), nos dias de hoje, faz com que um de seus companheiros relembre o período em que participaram do delírio dos comandantes militares de então, que fizeram suas tropas formadas por garotos acreditarem que seria possível vencer a Inglaterra numa batalha pelas ilhas Malvinas/Falklands. As comoventes cenas finais foram gravadas nas próprias ilhas pela primeira fez no cinema argentino.

“Crónica de una Fuga”

(Adrián Caetano, 2006)

Baseado numa história verídica, conta uma tentativa de fuga de um grupo de prisioneiros da temida Mansion Seré, um centro de detenção e tortura. Entre eles, estava Claudio Tamburrini, goleiro de um time de futebol que virou símbolo da luta contra a repressão depois do episódio. Realizado num momento de alta do cinema argentino no cenário internacional, o filme teve ampla repercussão internacional.

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Imagens do horror que revelaram a verdade sobre a repressão https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/11/13/imagens-do-horror-que-revelaram-a-verdade-sobre-a-repressao/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/11/13/imagens-do-horror-que-revelaram-a-verdade-sobre-a-repressao/#respond Fri, 13 Nov 2020 22:46:18 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/untitled-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3690 Morto no último sábado, de um câncer, aos 76, o argentino Víctor Basterra viveu nas sombras da ESMA (o principal centro clandestino de tortura da ditadura argentina nos anos 1970) como prisioneiro por mais de quatro anos. Ali, teve a possibilidade de fotografar e guardar um sem fim de imagens que expunham tanto os rostros de prisioneiros que foram sequestrados como dos repressores. Os documentos que conseguiu, pacientemente, tirar intactos dali ao longo dos anos e depois, quando foi libertado, ajudaram a muitas famílias a recompor a história de parentes desaparecidos, além de figurar em processos que até hoje estão em curso na Justiça argentina para determinar a culpa de repressores.

Quando foi sequestrado com a mulher e sua filha, Basterra, que era peronista, passou dias terríveis nos porões da ESMA (Escola Mecânica da Marinha). Submetido a choques elétricos, sofreu dois infartos e quase morreu. Como isso não ocorreu, acharam um melhor uso para ele _era comum que prisioneiros fizessem algo parecido ao trabalho escravo nos centros clandestinos da repressão. Basterra virou empregado do setor de documentação da ESMA. Tinha 35 anos. Sua mulher e sua filha foram libertadas.

Neste posto, era o responsável, por exemplo, por fazer fotos dos repressores para os documentos falsos que usariam em operativos de repressão ou para sairem do país. Passaram diante de suas lentes agentes importantes do aparato, como Alfredo Astiz, um dos mais cruéis comandantes de operações que terminavam em sequestros ou no envio de pessoas para os voos da morte. Basterra, porém, sempre tirava uma cópia a mais dessas imagens e dos documentos falsos. E as guardava. Fazia o mesmo quando lhe pediam que registrasse a imagem de alguns presos, para o arquivo local. Sem saber, acabaria sendo a última imagem com vida de muitos deles. A maioria morreria nos voos da morte ou não aguentaria as sessões de tortura. Não se sabe como e se a Marinha guardou esses arquivos, mas cópias de várias desses registros foram indo parar na casa da corajosa família Basterra.

Victor Basterra, em montagem de exposição de sua obra, na ESMA, em Buenos Aires (Foto Divulgação)

Afinal, depois de um tempo, quando recebeu o benefício de poder fazer algumas visitas à sua família, levava algumas dessas imagens para casa. Algumas delas iam juntas a seu próprio corpo ou escondidas dentro de sua roupa íntima. A família foi armando em casa esse poderoso arquivo, que veio à luz nos anos 80.

Quando foi liberado, semanas antes da eleição de Raúl Alfonsín (1983) que marcaria o fim da ditadura, Basterra enfim foi para a casa. Não descansou. Organizou seu arquivo e levou seu “Informe Basterra” diretamente à Comissão Nacional sobre a Desaparição de Pessoas (Conadep), que realizou a primeira grande lista dos que haviam desaparecido pela ação do Estado. As imagens e os depoimentos sobre as conversas que manteve com os fotografados colaboraram para esclarecer a verdade sobre o destino de muitos presos, assim como a levar a julgamento vários repressores.

 

 

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Piazzolla https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/11/02/piazzolla/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/11/02/piazzolla/#respond Mon, 02 Nov 2020 09:33:02 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/astor-piazzolla-1495214125-list-handheld-0-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3679 Uma das cenas memoráveis do documentário “Piazzolla, Los Años del Tiburón” (HBO) é a gravação de uma conversa entre o compositor argentino e um radialista/crítico de música que atacava suas obras por “não serem tango de verdade”. Para quem tinha a ideia de que Piazzolla nunca ligou para esse tipo de simplificação, é engraçado e triste ao mesmo tempo ver o quão furioso fica o artista com o comunicador. “Vou até aí te pegar”, diz, furioso, Piazzolla. “Vou com os oito integrantes da banda”, ameaça. O outro simplesmente desliga na sua cara. Mais adiante, Piazzolla responde que sua música é, sim, tango, justamente por conta das experimentações que fez com o gênero e porque “não mexeu com sua essência”. Além disso, dizia, “o que faço é música de Buenos Aires. Mais de Buenos Aires não pode ser”, defendia-se.

O documentário de 2018 que agora estreia no “streaming” traz várias passagens inéditas da história de um dos maiores ícones da cultura argentina. O diretor Daniel Rosenfeld optou por um documentário menos tradicional, ou seja, sem as vozes de terceiros falando sobre Astor Piazzolla (1921-1992). Para isso, buscou e encontrou arquivos desorganizados e inéditos em que Piazzolla conversa por horas e horas com a filha, Diana. O papo, que foi a matéria-prima da biografia do pai escrita por ela, é também uma busca da filha pelo pai e vice-versa. Eles haviam estado anos sem se ver por conta da militância política desta, que saiu da Argentina, mudou de nome e passou mais de dez anos no México. Astor, em tour por esse país, decide passar uns dias com a filha e rememorar sua vida, misturando a história familiar com a musical.

O filme está armado em torno das histórias que Astor conta aí e das reações de seu filho, Daniel, o único sobrevivente da família, ao escutá-las. Tanto o pais como Diana estão mortos. Ela suicidou-se aos 65. Daniel ouve a voz dos dois comovido, e comenta as passagens visivelmente emocionado.

Está ali, contado na voz do próprio Piazzolla e com perguntas e comentários de seus dois filhos, sua trajetória de encontro com a música e de como ela foi transformando sua vida. Primeiro, foi uma obrigação, porque o pai queria que ele se transformasse em tocador de bandoneón, mesmo que Astor desconhecesse o instrumento. “Quando ele me deu aquilo, era como se estivesse me entregando um ventilador, eu não sabia para que era”, confessa. Com o tempo e as aulas, pagas com esforço numa difícil vida da família em Nova York, Piazzolla foi melhorando, até chegar ao ponto de decorar de memória os arranjos de músicos como Aníbal Troilo. Conhece, ainda, Carlos Gardel, para quem toca e que o elogia, quando ainda era um menino.

Depois, relata a vida entre Buenos Aires e Nova York, na qual a família sempre o acompanhou, passou por mil dificuldades, e conta com amargura que sua obra sempre havia sido mais reconhecida na Europa e nos EUA do que na Argentina. Aqui, era criticado por “distorcer” o tango e porque o tango que ele fazia “não se podia dançar”. Fora do país, era convidado a compor e tocar com os grandes de seu tempo. “Meu principal inimigo na Argentina foram os pés das pessoas, elas não queriam escutar, só dançar. E minha música é para escutar”, dizia.

Na vida pessoal, Piazzolla mostrou-se um tanto egoísta, como ele mesmo reconheceu. Não buscou o conforto da família e a levou consigo para todo lado sem ter dinheiro no bolso. Fez com que passassem necessidades reais. Até que abandonou a mulher quando começou a fazer sucesso. De Diana, se afastou quando ela começou a militância política nos anos 1970, e a Daniel, o puniu por uma frase em que ele criticou suas escolhas musicais.

O filme mostra cada fase de sua evolução musical e como impactou em sua vida pessoal, até o reconhecimento mais ao final da vida, quando por fim tocou no teatro Colón (o principal da Argentina) como artista reconhecido e disputado. “Foi uma vingança”, ri Piazzolla. Uma pena que isso ocorreu a pouco tempo de ele começar a ter problemas de coração, ficar fraco, e já não poder fazer as duas coisas que mais amava na vida. Uma, tocar o bandoneón, a outra, pescar tubarões. As duas atividades pressupõem uma força física que Piazzolla já não tinha, ainda por cima atrapalhado por uma falha na perna que trazia de nascença.

O documentário é um mergulho sentimental e artístico na obra de um gigante, mas que deixa uma certa angústia no final. Mais ou menos como acontece depois de escutarmos um belo tango.

 

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Dez anos sem o olhar astuto e devorador de Rodolfo Fogwill https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/08/28/dez-anos-sem-o-olhar-astuto-e-devorador-de-rodolfo-fogwill/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/08/28/dez-anos-sem-o-olhar-astuto-e-devorador-de-rodolfo-fogwill/#respond Sat, 29 Aug 2020 00:05:59 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/images.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3635 Poucos eventos, típicos desta época pandêmica, e virtuais, lembraram os 10 anos da partida do escritor argentino Rodolfo Fogwill (1941-2010), morto devido a complicações respiratórias vinculadas a seu resistente vício aos cigarros. A lembrança, porém, foi intensa, em termos de homenagens postadas nas redes, artigos de críticos e de colegas escritores nos meios de comunicação argentinos.

A editora Alfaguara, em sua filial local, que lançou a maioria de seus livros, realizou uma semana de leituras, palestras e sessões de exibição, tudo online, tendo a obra de Fogwill como tema. Dela participaram escritores como Martín Kohan, Leila Guerriero, Pola Oloixarac, Alan Pauls, Patricio Pron e Patricio Zunini, entre outros.

Além disso, a Biblioteca Nacional também divulgou vários vídeos em que Fogwill aparece lendo seus próprios textos, algo que emociona, passados tantos anos.

Há uma novidade, porém. Em março do ano que vem, a Alfaguara argentina lançará uma edição especial de seus três primeiros livros de contos: “Mis Muertos Punk” (1980), “Pájaros En La Cabeza” (1985) e “Música Japonesa” (1982).

Os volumes se somam aos livros póstumos também lançados pela Alfaguara, “La Gran Ventana de Los Sueños” (2013), sobre o qual escrevi, na época, para a Ilustrada, e “La Introducción” (2016), seu último romance.

Rodolfo Fogwill faz parte da geração que renovou a literatura argentina pós-Borges e Cortázar. Ao lado de Cesar Aira, Ricardo Piglia (1941-2017) e Juan José Saer (1937-2005), marcou uma nova fase nas letras argentinas. Foram autores que discutiram o realismo e lançaram um olhar crítico à própria classe média argentina.

O principal exemplo disso é o livro mais conhecido de Fogwill, “Os Pichiciegos”, sobre os garotos que resolvem escapar do Exército durante a Guerra das Malvinas. O romance foi escrito em seis dias e pouco depois do conflito, que terminou com uma terrível derrota da Argentina.

Fumante inveterado, foi vítima de vários efeitos do cigarro, desde uma deformação no rosto até o enfisema que terminou matando-o de forma relativamente precoce.

Em 2007, na Bienal do Livro do Rio, entrevistei Fogwill, em meio a uma cortina de fumaça, pois ele apagava um cigarro acendendo outro. Mesmo com o cigarro aceso na ponta dos dedos, dizia que andava obcecado em melhorar seu modo de vida, estava indo a uma academia e nadando. Seu corpo magro, alto e enrugado transmitia uma estranheza excêntrica que tinha como emblema máximo seu olho mais aberto que o outro, atento ao interlocutor, e sua fina ironia. 

Em homenagem aos dez anos de sua morte, republico aqui os principais trechos da entrevista realizada por mim, com Fogwill, em 2007, no Rio de Janeiro.


Folha –
“Os Pichiciegos” foi escrito no calor dos acontecimentos, em 1982. Ou seja, não havia ainda relatos pessoais sobre o que estava sucedendo (na Guerra das Malvinas). Em que baseou seus personagens?

Rodolfo Enrique Fogwill – Quando escrevi essa história, não havia informações sobre o cenário de conflito. Tudo é invenção. Acertada, mas invenção. Diria que foi uma invenção dedutiva. A visão dessa guerra falsa e subterrânea era produto do meu conhecimento sobre as guerras, sobre aquela geração de rapazes, sobre o comportamento dos impérios e sobre o clima inóspito do sul argentino.

Folha – Por que o sr. preferiu o ponto de vista dos que desertaram, e não o dos que seguiram lutando?

Fogwill – Naquela época, assim como hoje, eu odiava as Forças Armadas argentinas, o Exército britânico e o imperialismo. Se me tivessem recrutado compulsivamente, como aconteceu com os rapazes do livro, eu teria optado pela deserção. A propaganda oficial dos dois lados recrutava consciências. Isso era um desafio para um escritor de ensaio ou de narrativa. 

Requeria operações de ficção e trabalhos com a narrativa. Não podia fazer outra coisa senão esse tipo de relato. Meus desertores imaginários eram o melhor objeto de investigação para minha ideia, a de que um desertor é quem constrói uma economia de guerra pelas costas dos outros. Parecia-me mais verdadeiro falar deles do que investigar o destino dos infelizes que se condenaram a protagonizar o conflito. Penso que o verdadeiro, no ser humano, só aparece no exercício da liberdade dentro de situações-limite.

Folha – Por que a divisão da obra em duas partes, a primeira, composta apenas pelos diálogos dos garotos, e a segunda, mais ensaística?

Fogwill – A primeira parte é o que eu achava que estava acontecendo no cenário do conflito. A segunda corresponde ao que imaginei que sucederia depois. Era uma aposta alta e o rumo dos acontecimentos posteriores mostrou que eu tinha razão.

Folha – Estamos no aniversário de 25 anos do conflito das Malvinas. Que lugar acha que o episódio teve dentro do processo de redemocratização da Argentina?

Fogwill – A aventura das Malvinas se produziu quando a ditadura já havia derrotado a guerrilha e sua frente interna estava minada pelos que preparavam a transição democrática com o apoio do consenso internacional. Sem as Malvinas, a transição teria sido mais lenta, mas teria se cumprido da mesma forma.

Folha – O debate sobre os suicídios de ex-combatentes, cujo número continua aumentando [estima-se que mais de 260 oficiais tenham se matado desde então], está muito presente na sociedade argentina. Você também pensou nessa conseqüência enquanto escrevia o livro?

Fogwill – Enquanto a tropa resistia sem contato com o país e com o mundo, eu imaginei duas manifestações trágicas posteriores. O fato de que os ex-soldados seriam tratados cada vez mais como doentes mentais e o esquecimento, que resultou nas pensões vergonhosas que recebem até hoje. A sociedade argentina usou todos os meios para neutralizá-los. Esperava pelos suicídios, mas não numa taxa tão alta.

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Um diálogo entre Vargas Llosa e Borges https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/08/14/um-dialogo-entre-vargas-llosa-e-borges/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2020/08/14/um-dialogo-entre-vargas-llosa-e-borges/#respond Sat, 15 Aug 2020 01:16:37 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/5f2f4e55e3aa9-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3631 Acaba de sair em espanhol, pela Alfaguara (importado), “Medio Siglo Con Borges” (meio século com Borges), uma coletânea de textos _entrevistas, ensaios, conferências e críticas_ do Nobel peruano de literatura, Mario Vargas Llosa, 84, sobre e com o argentino Jorge Luis Borges (1899-1986). Trata-se de um volume curto (106 págs.), sem previsão de lançamento no Brasil, mas de um valor inestimável para quem curte literatura contemporânea _e não apenas latino-americana.

É claro que, por se tratar de um livro de Vargas Llosa, que nunca deixou de cultivar sua vaidade assim como sua excelente literatura, a obra se trata do argentino, mas em muitos momentos o que sobressai mais é a personalidade forte do peruano. Dado o devido desconto, vale, e muito, percorrer suas páginas.

Sem dúvida, os textos mais interessantes são as duas entrevistas incluídas no volume. A primeira, realizada em 1963, em Paris, por um novato Vargas Llosa, para a Rádio e Televisão Francesa, a um escritor já internacionalmente conhecido. A segunda, feita pelo peruano em Buenos Aires, na casa de Borges, que, na ocasião, já havia perdido quase por completo a visão, e deixou-se observar minuciosamente pelo interlocutor.

Na primeira, Borges se mostra surpreso pela popularidade, na França, de seus livros “História Universal da Infâmia” e “História da Eternidade”: “Queria agradecer pessoalmente a cada um dos leitores, ou apresentar-lhes minhas desculpas”, afirma. Quando Vargas Llosa o provoca sobre suas leituras em francês, Borges cita Montaigne e Flaubert, mas o peruano depois se mostra decepcionado pelo fato de o argentino, naquela ocasião, não se mostrar tão obcecado por Jean-Paul Sartre (1905-1980), a quem Vargas Llosa venerava.

Na segunda, Vargas Llosa oferece um detalhado relato sobre o apartamento em que Borges morava, em Buenos Aires, naquela época: “Vive num apartamento de dois quartos e uma sala de jantar, com um gato que se chama Beppo (assim como o gato de Lord Byron) e uma empregada de Salta, que cozinha e lhe serve também de guia (por conta da cegueira). Há poucos móveis, puídos, enquanto a umidade imprimiu olheiras escuras nas paredes. O quarto de sua mãe, com quem viveu toda a vida, está intacto, inclusive com o vestido lilás esticado sobre a cama, pronto para vestir. Porém, essa senhora morreu há vários anos”, conta o peruano.

Vargas Llosa se espanta pelo fato de não haver livros de Borges em sua biblioteca, nem livros sobre Borges. E recebe uma excelente resposta: “Quem sou eu para me colocar na estante ao lado de Schopenhauer?”. Mais longa, essa conversa se aprofunda mais em questões literárias e políticas, se fala de modernismo, das características sociais da Argentina, de peronismo e anti-peronismo e diferem sobre o formato do romance. Vargas Llosa o defende, enquanto Borges valoriza a artesania do conto e da poesia.

Em outros textos, Vargas Llosa revela sua admiração e o quanto redescobre a cada nova leitura de Borges, embora assumindo que seu trabalho está nas antípodas do argentino. Enquanto este criou um universo fabuloso, labiríntico, imaginativo, Vargas Llosa se prende à realidade, em linhas muito gerais.

“Creio que Borges inventou uma língua, e eu não”, resume o peruano.

 

 

 

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