Sylvia Colombo https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br Latinidades Tue, 30 Nov 2021 12:31:53 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Cinco filmes para entender o conflito na Colômbia https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/11/30/cinco-filmes-para-entender-o-conflito-na-colombia/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/11/30/cinco-filmes-para-entender-o-conflito-na-colombia/#respond Tue, 30 Nov 2021 12:31:53 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/download-2.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3963 Há exatos cinco anos, em 30 de novembro de 2016, o Congresso da Colômbia aprovou, por unanimidade, o acordo de paz entre o Estado e a guerrilha das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), numa sessão marcada pela tensão e a emoção. Trinta e seis deputados de oposição se ausentaram, e os 130 presentes disseram “sim” a um documento que havia sido reescrito e retocado depois de ter sido rejeitado no plebiscito de 2 de outubro de 2016.

A aprovação marcou o fim de um conflito que deixou mais de 220 mil mortos e provocou 8 milhões de deslocamentos internos. O acordo determinou o desarmamento da guerrilha, a criação de um tribunal especial da paz e a reintegração de ex-combatentes à sociedade, além de uma reforma agrária e reparação às vítimas. Embora ainda em fase de implementação, truncada por um governo hostil à sua aplicação, o tratado significou a queda dos homicídios no país e o fim dos atentados terroristas que tanto sofrimento trouxeram ao país.

La Negociación (2018)

O documentário de Margarita Martínez é um importante registro de como se atuou para reverter o resultado do plebiscito de 2 de outubro de 2016, quando o “não” ao acordo de paz saiu vitorioso. As duas partes sentaram-se para negociar emendas e reescrever artigos às pressas para que o documento fosse aprovado pelo Congresso. O filme registra a tensão e o estado de suspense que viveu o país naqueles dias. O ex-presidente Álvaro Uribe, que havia comandado a campanha contra o documento, recusou-se a dar entrevistas para o filme e acabou ameaçando censurá-lo.

El Testigo (2018)

O documentário acompanha o fotógrafo mais conhecido da Colômbia, Jesús Abad Colorado, a percorrer lugares devastados pela guerra. Ele mesmo é uma vítima do conflito, seu avô e seu tio foram assassinados _o segundo, degolado_, e o resto de sua família teve de mudar-se do campo para a cidade. Primos e amigos estão desaparecidos até hoje. No meio de tanta dor, porém, Abad consegue encontrar doçura, como a da menina que olha o mundo através do buraco que uma bala fez na janela de sua casa, ou a de um casal de noivos que se casa numa igreja em ruínas de um povoado completamente arrasado. Seu trabalho de 25 anos fotografando o conflito recebeu o Reconhecimento à Excelência do Prêmio Gabo, em 2019.

El Silencio de los Fusiles (2017)

O documentário de Natalia Orozco é barulhento. Para expor a dificuldade que foram as negociações pelo fim do conflito, coloca ênfase na dor de viver num país em que ataques terroristas, explosões e tiroteios eram parte do cotidiano. Curioso ver, com os olhos de hoje, ex-guerrilheiros como Iván Márquez, que participou do acordo e depois voltou a optar pela via da violência, dizer “que a guerra não deveria ter acontecido”. Por outro lado, avanços do tratado podem ser sentidos quando se escuta outro ex-líder, Pedro Catatumbo, dizendo: “Cada vez que nos levantamos da mesa de conversações, dizíamos que nos veríamos de novo depois de cinco mil mortos”. Catatumbo deixou as armas pela política e hoje é senador.

Ciro y Yo (2018)

Abordagem poética e dolorosa do conflito, “Ciro y Yo” conta a história de Ciro Galindo, nascido em 1952 em La Macarena, de onde teve de mudar-se com sua mulher e três filhos _um deles seria sequestrado. Sua vida e a de sua família foi marcada pela violência provocada por todos os personagens do conflito: guerrilheiros, paramilitares, Exército. Galindo era um vigia florestal da região de Caño Cristales, onde corre um famoso rio de distintas cores que já fez com que a região fosse um local turístico, antes de ser tomada pela guerra. Dirigida por Miguel Salazar.

To End a War

O foco do cineasta britânico Marc Silver é o fim da guerra. Didático ao apresentar o assunto a um público estrangeiro, o documentário traz valiosos bastidores da 10a. Conferência das Farc, realizada em 2016 nos Llanos del Yarí. O evento marcou a aceitação, por parte dos guerrilheiros comuns, ao processo de paz. Foram dias de festa e de convívio entre os combatentes de diferentes frentes. Silver também coloca a atenção no movimento de resistência ao acordo, representado pela campanha realizada pelo ex-presidente Álvaro Uribe pela vitória do “não” no plebiscito.

]]> 0 Morte de Fidel Castro completa cinco anos numa Cuba alterada https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/11/25/morte-de-fidel-castro-completa-cinco-anos-numa-cuba-alterada/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/11/25/morte-de-fidel-castro-completa-cinco-anos-numa-cuba-alterada/#respond Thu, 25 Nov 2021 03:49:53 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/fidel-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3959 Era curioso caminhar pelas ruas do centro de Havana naqueles dias que se seguiram à morte do ditador Fidel Castro, que completa cinco anos nesta quinta-feira (25).

Na noite em que líderes internacionais se reuniram na Plaza de la Revolución para as últimas homenagens ao líder da Revolução Cubana (1959), havia uma diferença fundamental na reação das diferentes gerações de cubanos. Estavam os que apareceram abraçados a fotos do líder revolucionário ou carregando bandeiras e cartazes, alguns chorando, outros com ar de lamento. Estes eram geral pessoas mais velhas. Algumas crianças acompanhavam os pais, ou os avós, para erguer os pequenos altares com sua imagem que permaneceram por dias nas ruas de Havana.

Não houve, porém, a comoção nem a explosão social que boa parte da mídia internacional estava imaginando, como se o evento pudesse significar um divisor de águas ou o fim do regime.

De um lado, estavam as solenidades oficiais e os apoiadores dos Castro, consternados. De outro, via-se uma juventude que reagia olhando para tudo aquilo com desinteresse e desalento. Outros pareciam, ainda, mais preocupados em buscar os pontos de wifi, os únicos lugares da ilha em que é possível conectar-se à internet, e que ficam em algumas praças, certas esquinas ou ruas turísticas. Lembro de ter perguntado a alguns dos jovens por ali sobre o que estavam sentindo. O descaso surgia na forma de frases assim: “eu nem sabia que Fidel ainda estava vivo”, ou “sua morte não muda nada, antes de ficar doente, ele já armou tudo para que não mudasse nada nunca por aqui”.

Quanta coisa ocorreu de lá para cá!

Seu irmão já estava à frente do país desde 2008. Com Fidel ainda vivo, Raúl havia iniciado algumas reformas que levantaram o ânimo nacional, sinalizando não apenas uma abertura econômica como uma aproximação com os EUA que poderia, quem sabe, um dia, significar o fim do embargo.

A eleição de Donald Trump colocou esses avanços em banho-maria. Ficou distante a possibilidade de eliminar as barreiras que impedem a chegada a Cuba de alimentos, remédios e tantos outros itens que tornam o desabastecimento um problema crônico no país.

Raúl, por sua vez, foi substituído por Miguel Díaz-Canel, em 2018, que também sinalizou com mudanças na gestão da ilha.

Promulgou-se uma nova Constituição, em 2019, cheia de lindas palavras sobre a liberdade de expressão e de associação, e até um item que permitia as manifestações pacíficas nas ruas. Porém, a ideia de concretizar um “estado socialista de direito” não foi adiante. Um cerco às atividades de artistas e intelectuais criou uma forte reação desse setor. Espalhados em diversos grupos pela ilha, coletivos passaram a se juntar para ler poemas, realizar performances e greve de fome contra a censura. A ira desatada contra os artistas pelo regime foi desde o princípio desmedida. A partir de então, qualquer jovem com um celular na mão é considerado uma ameaça ao sistema, e os cárceres foram se enchendo de presos políticos.

O caldo foi entornando até que, nos últimos dias 11 e 12 de julho, a ilha viveu um momento inédito. De modo voluntário, milhares de pessoas saíram às ruas para protestar de modo pacífico contra o governo, o desabastecimento, as condições econômicas deterioradas pelos efeitos da pandemia. A repressão foi brutal nesse dia _houve uma morte e centenas de prisões.

Uma segunda manifestação, que estava marcada para o último 15 de novembro, foi abafada em seus mínimos detalhes. Opositores tiveram casas cercadas, alguns tendo sido depois levados a sair do país com a roupa do corpo. Outros tantos foram presos apenas por terem saído de branco nas ruas. Até mesmo um garoto de 15 anos, Reniel Rodríguez (@LunaticoDebates), passou alguns dias atrás das grades, de modo ilegal, só por ter saído de casa com uma camiseta branca, a filmar e mostrar por meio de suas redes sociais o que via nas ruas.

Embora o regime tenha celebrado o “fracasso rotundo” dos protestos, que afirmou terem sido articulados pelos EUA, está claro que o jogo já é outro no país. Sabendo que não vai poder manter a repressão contínua, Díaz-Canel tomou algumas medidas para tentar acalmar a população. Entre elas, a legalização de um conjunto pequeno de empresas privadas, para aliviar a pressão desse setor. Outras, mais contorcidas, passam por acertar com a Nicarágua de Daniel Ortega que cubanos possam viajar para lá sem visto. Com isso, espera-se que um grupo considerável de cubanos tome essa alternativa, na esperança de chegar aos EUA desde a Nicarágua e incrementar a partir daí o valor das remessas de dólares para a ilha. Neste quesito, o regime vem fazendo vista grossa, deixando que entre dinheiro, mesmo que de modo ilegal, ao país, porque isso ajuda a manter viva uma economia em estado de coma.

Se essas medidas forem suficientes para conter os ânimos e o poder repressivo se mantiver no mesmo grau, o regime pode ter uma sobrevida. Por outro lado, as vozes que pedem democracia na ilha não parecem querer se calar. A cada líder neutralizado ou que parte para o exílio, outros surgem. A atomização é uma força da resistência.

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Cuba perde poeta dissidente a dias de manifestação histórica https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/11/08/cuba-perde-poeta-dissidente-a-dias-de-manifestacao-historica/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/11/08/cuba-perde-poeta-dissidente-a-dias-de-manifestacao-historica/#respond Tue, 09 Nov 2021 00:08:20 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/7CE25AA6-8753-4F16-9D50-9CAE406ABF7D_cx0_cy10_cw0_w1597_n_r1_st-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3954 Era com apreensão e esperança que o poeta e jornalista Raúl Rivero vinha acompanhando os acontecimentos em Cuba, que está às vésperas de uma nova manifestação anti-regime, convocada para o próximo dia 15. Apesar de viver exilado em Miami, o escritor estava em contato com os militantes na ilha e colocava expectativas na renovação do time dos opositores da ditadura.

Um ataque cardíaco o impediu de ver o desenrolar dessa história. No último sábado (6), Rivero morreu, aos 75, sem ver o fim de um regime pelo qual, no começo, lutou e defendeu, tornando-se depois um opositor por ele perseguido. Assim como o o escritor Cabrera Infante, a cantora Celia Cruz e centenas de outros, Rivero terminou seus dias no exílio.

Poeta e jornalista, Rivero era parte de um grupo conhecido como “os 75”, grupo de dissidentes que a repressão prendeu em uma operação que durou três dias em março de 2003 e ficou conhecida “Primavera Negra”. Condenados, as penas para esse grupo variaram de 8 a 30 anos, e houve fortes rumores na época que se aplicaria também a pena de morte, o que acabou não se concretizando.

Sobre Rivero, caiu uma sentença de 20 anos de prisão. Mas, no ano seguinte, depois de uma forte campanha internacional, com o apoio de intelectuais de outros países, como o peruano Vargas Llosa e o chileno Jorge Edwards, o poeta foi solto, com a condição de que saísse do país. Primeiro, foi à Espanha, que lhe ofereceu a nacionalidade. Nos últimos anos, vivia e trabalhava em Miami.

Antes de se frustrar com a Revolução, Rivero chegou a fazer parte de um grupo armado que combatia os anticastristas. Depois, atuou em veículos alinhados ao regime, como o Prensa Latina, do qual foi correspondente em Moscou entre 1973 e 1976 e enviado a vários países da então Europa do leste e a Coreia do Norte. Também foi um dos fundadores da revista El Caimán Barbudo, uma das pioneiras na narrativa de não-ficção da América Latina, da qual também participou Leonardo Padura.

Em 1991, incomodado com a censura e a existência de presos políticos, Rivero assinou a famosa “Carta de los Diez”, que reunia nomes famosos que pediam a redemocratização da ilha. Passou a fazer um jornalismo de oposição, a partir da agência que ele mesmo criou, a Cuba Press.

No exílio, aproximou-se mais da poesia. É autor de mais de 15 livros, entre eles “Estudios de La Naturaleza”, “Sin Pan y Sin Palabras”, “Herejías” e “Provas de Contato”, lançado no Brasil (Barcarola). Ganhou diversos prêmios literários, como o Ortega y Gasset.

Nos últimos dias, ele e a mulher, Blanca Reyes, uma das líderes de outro grupo dissidente, as Damas de Blanco, tinham a atenção colocada no que pode ocorrer na ilha na próxima semana.

Sua morte marca uma mudança de geração dos que pedem liberdades e democracia na ilha.                                                 

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Já é tarde demais para a democracia na Nicarágua https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/10/27/ja-e-tarde-demais-para-a-democracia-na-nicaragua/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/10/27/ja-e-tarde-demais-para-a-democracia-na-nicaragua/#respond Wed, 27 Oct 2021 12:54:09 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/protestas-en-nicaragua-2018-oswaldo-rivas-reuters-2-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3946 Nas últimas semanas, tem sido comum ler comentários de analistas internacionais e mesmo de figuras políticas de peso  afirmando que o dia 7 de novembro poderia ser uma espécie de data-limite para salvar a democracia na Nicarágua, e que depois disso ela estaria totalmente perdida.

A má notícia é que o jogo já está terminado. Praticamente não há possibilidade de que a ditadura de Daniel Ortega não saia vencedora. Os derrotados serão os 6,6 milhões de nicaraguenses –milhares deles já migrando desesperadamente neste momento. É certo que o calendário diz que, nessa data, haverá uma eleição presidencial. Mas a verdade é que o que veremos –sob filtros de censura ou devido ao trabalho valente de alguns jornalistas estrangeiros que conseguiram entrar no país– não será nada mais do que um teatro. Uma eleição de brincadeirinha, uma encenação de mau gosto a essa altura, quando tantas arbitrariedades já aconteceram, quando já morreram mais de 300 pessoas nos protestos contra o governo e há mais de 155 presos políticos sem nenhum julgamento. Continuam sequestrados e detrás das grades empresários, políticos e ativistas. Os meios de comunicação independentes, fechados ou afogados economicamente. Os que sobram operam com redações improvisadas no exílio, desde a Costa Rica ou os EUA. Entre os que perderam a liberdade, estão nada menos que os sete candidatos de oposição que se arriscaram a apresentar-se para disputar o poder com Daniel Ortega.

Em vez de prenunciar o que de terrível poderia vir a acontecer em menos de duas semanas, a comunidade internacional e seus organismos deveriam estar mais ativos em pressionar pelo fim imediato dos abusos de direitos humanos e pelo reestabelecimento da democracia. Nesse sentido, o dia 7 será “apenas” mais um dia como tantos outros na infame ditadura orteguista.

Foi justamente na Costa Rica onde se gravou um spot, lançado no último domingo (24) à noite nas redes e que logo viralizou. Ele é o triste retrato de uma batalha por ora já perdida.

Nele, vemos a reprodução de um bairro popular de Manágua, em que pessoas de diferentes idades dançam na rua ao som de uma música que diz “fiquemos em casa”, estimulando os eleitores a não saírem a votar. Chama a atenção que os principais atores do vídeo estejam mascarados. Não é apenas para esconder a identidade dos que participaram do clipe, mas também porque representam alguns manifestantes que foram vítimas da repressão, como o estudante Álvaro Conrado, morto aos 15 anos com um tiro na garganta nas marchas de 2018. Ainda, mostram que estão todos com máscaras, em desafio a uma ditadura negacionista do vírus que ordenou seus médicos a não usarem proteção nos hospitais para que os pacientes não pensassem que a Covid-19 era uma ameaça grave. A Nicarágua foi dos países da América Central com pior desempenho na pandemia, com cifras adulteradas, enterros feitos na madrugada e às escondidas e o colapso do sistema sanitário nas grandes cidades.

Nem uma campanha televisiva como essas nem as sanções econômicas impostas pelo governo dos EUA parecem comover o casal presidencial. Daniel Ortega e sua mulher e vice, Rosario Murillo, não se mostram impactados com o que o mundo diz deles. Sua cruzada para permanecer no poder, ao contrário, parece ter a ver principalmente com eliminar inimigos pessoais, num revanchismo que se poderia dizer infantil caso não fosse tão cruel.

Afinal, os sete pré-candidatos presos estão numa lista de ex-aliados e ex-amigos contra quem ambos se viraram de modo violento.  O caso mais chamativo é o do ex-guerrilheiro sandinista Hugo Torres. Em 1974, portanto antes da revolução sandinista, Torres arriscou a vida para livrar Daniel Ortega da prisão. Com um grupo de guerrilheiros, ainda durante a ditadura de Anastasio Somoza, Torres invadiu uma festa em que havia embaixadores e políticos e fez reféns. O objetivo do grupo? Trocar a liberação destes pela de Ortega, o que de fato aconteceu. Hoje Ortega está no poder, mais ou menos como o ditador Somoza, e o homem que o libertou naquele distante 1974 é quem está na prisão, acusado de traição à pátria.

Outro exemplo das diferenças pessoais que determinaram a prisão desses opositores é Cristiana Chamorro. Filha da ex-presidente Violeta Chamorro, que derrotou Ortega nas urnas em 1990, e membro de uma ativa família de opositores do orteguismo, Cristiana era a favorita nas pesquisas para ganhar esta eleição. Mas a antipatia pessoal que o casal Ortega tem por ela e pela família Chamorro, de quem eram aliados nos anos 1970, falou mais forte. Ortega não se conforma com a derrota que sofreu por parte de Violeta, e para não ver o repeteco desse filme, mandou prender Cristiana, também acusada de traição à pátria. Só para confirmar a cisma com a família, seu irmão, Pedro Joaquín, também foi parar atrás das grades.

Desde maio, além dos sete candidatos, pelo menos outros 30 políticos da oposição foram presos.

Não é apenas a aniquilação da oposição o que deve garantir a vitória de Ortega. As leis eleitorais foram habilmente mudadas pelo ditador para facilitar sua vitória. Por exemplo, não há segundo turno, e bastam 35% dos votos para que um candidato vença. A última pesquisa do instituto Gallup mostra claramente porque o ditador se viu levado a avançar contra os opositores e as leis. Na sondagem, 69% dos nicaraguenses afirmaram que votariam em algum candidato de oposição, se pudessem.

Aos 76, Ortega evoca apenas uma pálida lembrança do revolucionário que, junto a um grupo aguerrido e a uma sociedade civil engajada, ajudou a derrubar a ditadura da dinastia Somoza nos anos 1970. Como são seus ex-companheiros de luta os que veem mais de perto sua transformação, Ortega os persegue e os manda prender. Além das forças de segurança do Estado, conta também com a Juventude Sandinista, um grupo de jovens militantes comandados por Murillo, que vêm funcionando como força paramilitar armada que auxilia na repressão.

Adiante de uma economia frágil, impactada pela crise do coronavírus, Ortega lida com o vazio deixado pela retirada do petróleo e dos aportes de US$ 500 milhões que vinham regularmente da Venezuela –até pouco tempo utilizados para a distribuição de planos sociais. A simpatia que a revolução sandinista despertou numa geração de progressistas pelo mundo vai esvaindo-se, mas ainda serve a alguns países, como a Argentina e o México, e alguns líderes políticos de esquerda, que resistem a condenar os abusos cometidos pelo regime.

Há uma escalada autoritária em curso na América Central. Além da Nicarágua, vemos o presidente salvadorenho, Nayib Bukele, avançar impune sobre as instituições de seu país. Em Honduras, onde haverá eleições também em novembro, o presidente Juan Orlando Hernández, acusado de narcotráfico pela Justiça dos EUA, procura manter seu partido no poder. Enquanto isso, na Guatemala, Alejandro Giammattei terminou por destruir todos os esforços de promotores e da sociedade que investigaram escândalos de corrupção e que haviam possibilitado até mesmo o impeachment de Otto Pérez Molina em 2015.

Se há preocupação com as fileiras de centro-americanos tentando desesperadamente chegar a países mais estáveis, a tendência é que elas aumentem. São refugiados de sistemas opressores e injustos antes de “imigrantes ilegais”. Recomenda-se empatia.

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Na Colômbia, jornalista agredida espera 20 anos por Justiça https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/10/21/na-colombia-jornalista-agredida-espera-20-anos-por-justica/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/10/21/na-colombia-jornalista-agredida-espera-20-anos-por-justica/#respond Thu, 21 Oct 2021 16:47:37 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/Jineth-Bedoya-Lima-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3937 Abusos contra jornalistas há aos montes na América Latina. Vítimas de pressão política, assédio, ataques físicos contra si e contra familiares que podem arruinar investigações, com um período da vida ou mesmo terminar em morte. Alguns, porém, ressaltam pelo calvário que causam a seus protagonistas, e também, como neste caso, se revelam como um retrato não só da violência, como da cultura e da sociedade de cada país.

Por fim, nos últimos dias, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado colombiano pelos abusos sofridos pela jornalista Jineth Bedoya, 47. Sequestrada, estuprada e torturada por grupos paramilitares em 2000, enquanto tentava entrar na prisão La Modelo de Bogotá, para realizar um trabalho, Bedoya teve o processo esquecido e minimizado por mais de 20 anos. O tribunal, por fim, reconheceu que o Estado colombiano é “responsável internacionalmente pela violação dos direitos à integridade pessoal, liberdade, honra, dignidade e liberdade de expressão de Bedoya”. 

O presidente Iván Duque afirmou que a sentença, que determina várias medidas de reparação, entre elas a de continuar investigando os demais responsáveis pelo delito e fechar a prisão Modelo, será cumprida. A decisão acaba sendo uma derrota política para Duque, uma vez que ele pertence ao partido Centro Democrático, liderado pelo ex-presidente Álvaro Uribe, que durante sua gestão ofereceu apoio logístico e político aos paramilitares, além de interferir na Justiça quando o assunto era a defesa dos paramilitares.

A história de Bedoya vale ser recontada, para que provoque uma reflexão sobre a relação entre crime organizado e poder na América Latina.

 

Naquela época, início dos anos 00, a prisão Modelo estava dividida entre facções do crime e do paramilitarismo _grupos civis armados por poderosos para lutar contra as guerrilhas_ e enfrentamentos eram constantes. Havia todo o tipo de armas, contrabandeadas para dentro com a cumplicidade do Exército e dos que custodiavam o presídio.

Jineth Bedoya, jovem jornalista do El Espectador, iniciou uma série de reportagens sobre como era a vida lá dentro. Não demorou para incomodar os líderes das gangues e seus aliados no exterior. Começou a receber ameaças dentro e fora de casa. Um dia, quando fazia os trâmites na porta do presídio para entrar e realizar uma entrevista pré-combinada, um grupo de paramilitares a sequestrou, levando-a ao interior do país, em Villavicencio. Por 16 horas, foi torturada e abusada. Depois, foi abandonada na estrada e recolhida por um taxista.

Saindo dali, fez as denúncias e buscou Justiça, sem que o caso sequer fosse investigado. Um mesmo promotor esteve com o expediente parado em sua mesa entre 2000 e 2011. Segundo a jornalista, as únicas indagações que se faziam eram sobre sua própria vida e seus vínculos com os que estavam presos. Houve uma mudança de promotor, desta vez uma mulher, em 2012, e finalmente foram identificados três de seus abusadores.

A luta de Bedoya passou a ser por fazer público seu caso. Procurou a Fundação para a Liberdade de Expressão (FLIP), a Oxfam britânica, os fóruns internacionais. A promotoria colombiana, por fim, elevou a categoria do caso para “crime de lesa humanidade”. Em 2018, a CIDH se pronunciou pela primeira vez, afirmando que o Estado colombiano deveria investigar o caso e assumir a responsabilidade pelo que ocorreu com a jornalista e pela demora em atender seu caso. Desde então, a Colômbia vinha respondendo às acusações, alegando não ter envolvimento no ocorrido nem por ter-se omitido. Em outras palavras, o Estado responsabilizou o próprio comportamento de Bedoya como causador da tragédia em que se viu envolvida.

Por fim, no último dia 18, a CIDH emitiu a sentença contra o Estado colombiano e a favor de Bedoya. Foram 21 anos de exposição e de ter de justificar ao mundo o que tinha acontecido com ela mesma. Esta é uma vitória do jornalismo contra a impunidade, mas também das mulheres contra os estigmas que as acompanham. Quantas não teriam desistido antes.

 

 

 

 

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Filme argentino sugere violência política entre sussurros https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/10/16/filme-argentino-sugere-violencia-politica-entre-sussurros/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/10/16/filme-argentino-sugere-violencia-politica-entre-sussurros/#respond Sat, 16 Oct 2021 20:34:13 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/azor-3-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3933 Nada de sangue, fuzilamentos ou tortura. “Azor” expõe a ditadura militar argentina (1976-1983) desde um outro ângulo, o daqueles que estiveram por trás dos abusos de direitos humanos, mas que não mancharam suas mãos com o trabalho sujo, mantiveram um cruel silêncio diante dos embates políticos e lucraram muito no período. Na cidade em que vivem, pouco se vê de protestos e prisões. Sua bolha parece consistir em jardins bonitos com piscina, propriedades equestres e salões de clubes sociais.

Produção suíço-argentina que estreará nas próximas semanas no Brasil, “Azor” se passa na Buenos Aires de 1980, com a chegada ao país do banqueiro Yvan de Wiel (Fabrizio Rongione) e sua mulher, Ines (Stéphanie Cléau). Embora saibam, por alto, o que está ocorrendo no país, o casal suíço mantém o foco noutra coisa: como manter as contas dos ricos clientes do banco europeu depois que seu sócio e representante no país, René Keys, desapareceu misteriosamente?

Num filme de silêncios e murmúrios, a presença do desaparecido ressalta. Todos sabem algo dele, mas o quebra-cabeças sobre o que lhe aconteceu parece não terminar de fechar. Seu apartamento, tal qual um labirinto borgeano, foi abandonado com portas abertas e cigarros por fumar. Aos poucos, vamos sabendo que ele andava realizando negócios paralelos, mas, seria ao lado dos subversivos ou da cabeça do regime? A referência a “O Terceiro Homem”, de Graham Greene é clara.

Falado em francês e em espanhol, “Azor” é um thriller político, um suspense narrado em um clima de tensão furiosa, embora quase nada vocalizada. A ação praticamente inexiste e os diálogos, parcos e sutis, acompanham a tomada lenta de consciência de De Wiel. No começo, ele parece se horrorizar com o que ouve, tem medo de dar um passo em falso e se assusta com o que imagina que pode estar acontecendo. Aos poucos, vai entrando no jogo de sedução e traição de seus interlocutores: empresários, líderes da Igreja, militares, damas da alta sociedade.

Azor, neste contexto, é uma gíria entre os banqueiros, que revela a precaução que se deve tomar no labirinto em que o filme vai se metendo. Outra referência clara é “Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, com De Wiel em busca de seu próprio Sr. Kurtz, e “o horror” desenhado na história dos anos de chumbo argentinos.

 

Dirigido pelo argentino Andreas Fontana, que cresceu na Suíça, o filme conta com excelentes atuações, como a do protagonista e a de Pablo Torre Nilsson, que encarna o monsenhor Tatoski, apoiador da ditadura e que aposta em cavalos e na Bolsa. O clima sufocante da trama leva a pensar também nos universos criados por outra argentina, Lucrecia Martel. Diferentemente dela, porém, “Azor” tem a ação numa cidade grande, agitada e sofisticada.

Num país que já produziu dezenas de bom títulos sobre suas ditaduras militares, “Azor” ressalta pela originalidade do olhar e a sofisticação do enredo. Depois de desfilar pela Berlinale e por festivais estrangeiros, aterrissa no Brasil em novembro.

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Drama revive pesadelo da violência na Colômbia https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/10/09/drama-revive-pesadelo-da-violencia-na-colombia/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/10/09/drama-revive-pesadelo-da-violencia-na-colombia/#respond Sat, 09 Oct 2021 13:51:59 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/el-olvido-que-seremos-fotogramas-1613391055-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3929 Um dos melhores livros da produção latino-americana contemporânea, “A Ausência Que Seremos” (ed. Companhia das Letras, 2005) chega às telas sem ficar devendo muito à obra original –as memórias de Hector Abad Faciolince sobre sua infância e juventude na violenta Medellín dos anos 1970/1980. A adaptação, dirigida pelo veterano do cinema espanhol Fernando Trueba (“Belle Époque”), venceu o Goya de 2021 e está disponível na Netflix.

A obra narra a história de uma família católica e de classe média colombiana a partir do olhar de um garoto fascinado pelo pai, que destoa por sua visão progressista do mundo e por ser ateu. Héctor Abad Gómez (Javier Cámara) foi um ativo médico sanitarista e professor universitário dedicado a melhorar as condições de vida da população dos bairros pobres de Medellín, em meio à escalada do crime organizado. Nos anos 1970 e 1980, a Colômbia vivia uma de suas fases mais violentas, devido à disputa territorial entre os cartéis de Cali e Medellín. Em meio a isso, surgiam agrupações paramilitares, financiadas por grupos de interesses econômicos e políticos.

Neste cenário, foram assassinadas centenas de defensores dos direitos humanos, professores universitários e  sindicalistas. Embora tenha passado sua vida lecionando, sem preferências partidárias, Abad Gómez acabou se envolvendo em política para tentar implementar programas de saúde pública. Em 1987, enquanto fazia campanha eleitoral, foi assassinado violentamente, como se fazia na época: por um sicário, no meio da rua.

O drama nos apresenta, ainda, a outros conflitos desse período da história colombiana, como as disputas entre liberais e conservadores, a convivência com a comunidade judaica e a acelerada modernização de Medellín na época, colocando em xeque valores tradicionais de uma sociedade extremamente religiosa.

Narrada em dois planos, um colorido, o da infância, marcado por boas memórias e também por uma tragédia, e outro em preto-e-branco, quando Abad Faciolince já é adulto e luta para entender tanto as batalhas travadas por seu pai como o drama histórico da Colômbia, a obra é também um retrato do excelente momento da produção cinematográfica colombiana, com ótimas atuações dos atores locais, especialmente de Patricia Tamayo (que faz a mulher de Abad Gómez) e Juan Pablo Urrego, no papel do autor. Cámara, que é espanhol, se esforça para imitar o sotaque colombiano da região da Antioquia.

Abad Faciolince teve uma relação complicada com seu passado, algo que sempre conta em suas entrevistas. Depois da morte do pai, passou muito tempo na Itália, sem imaginar ser possível voltar à Colômbia, pelo trauma familiar e pela decepção geral com seu país. Com o passar do tempo e com os livros que lançou depois, foi se reconciliando com tudo isso.

Hoje, vive em Medellín e diz pensar em envelhecer e morrer aí.

 

 

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Colômbia lidera luta pelo direito à eutanásia na região https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/10/06/colombia-lidera-luta-pelo-direito-a-eutanasia-na-regiao/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/10/06/colombia-lidera-luta-pelo-direito-a-eutanasia-na-regiao/#respond Wed, 06 Oct 2021 08:55:31 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/Martaefederico-320x213.png https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3920 No próximo domingo, Martha Sepúlveda, 51, despertará, como sempre, como quem vai à missa. Só que, desta vez, não se dirigirá à Igreja. Essa colombiana de 52 anos, católica, enfrentou os padres de Medellín, sua cidade, e a mãe que, até então, vinham tentando convencê-la a desistir de sua decisão de encerrar a própria vida, uma vez que isso iria contra os “ensinamentos de Deus”.

Às 7h do próximo dia 10, acompanhada por seu filho, Federico, Sepúlveda se submeterá a uma eutanásia. A prática é legalizada na Colômbia desde 2015, mas até então era limitada apenas para pacientes terminais em estado avançado de uma doença. Em julho deste ano, a Corte Suprema do país liberou o acesso a esse direito também a doentes não terminais. Sepúlveda tem esclerose lateral amiotrófica, uma doença degenerativa que leva gradativamente à paralisia de todos os músculos. Embora esteja bem neste momento, rindo e falando, Sepúlveda já se angustia pelas dificuldades para locomover-se e afirma querer saltar a parte mais agônica da doença, que a limitará e a levará à morte.

“Deus é meu pai, portanto não quer que eu sofra. Assim como não quero que meu filho sofra. Para mim, o argumento religioso não faz sentido. Morrerei sendo católica, mas não aceito essa ideia de que Deus nos proíba de querer colocar um fim à nossa própria vida”,  afirmou Sepúlveda em entrevista à rede Caracol.

Desde a regulamentação da lei, em 2015, 157 colombianos pediram acesso à eutanásia e abreviaram seu sofrimento. Antes disso, uma pessoa que ajudasse alguém a morrer no país poderia ir presa por 16 a 54 meses.

Na Colômbia, segundo uma pesquisa do Invamer, 72% das pessoas são a favor da legislação.

O caso colombiano é uma referência sobre como o debate sobre a eutanásia ainda engatinha na América Latina. A Colômbia é o único país da região em que o recurso está garantido por lei, e que, com essa nova determinação da Corte, inclusive se amplia. Mas, nos demais países, principalmente por conta da presença intensa da religião católica, o tema ainda é um tabu.

Há outros dois casos que estão forçando legisladores e a Justiça de outros países a se debruçarem sobre o tema.

No Chile, Cecilia Heyder, 52, que padece de câncer, lupus e septicemia, apresentou um pedido à Corte Suprema para ter acesso a uma eutanásia, embora esta seja ilegal no país. Embora ela ainda espere a autorização para o procedimento, seu caso moveu o Congresso a debater o assunto. Em abril deste ano, foi aprovado um projeto de lei que dá acesso à eutanásia a pacientes em estado terminal ou que sofram de uma doença incurável. Agora, espera-se uma decisão do Senado nos próximos meses.

No Peru, outro país em que a Igreja Católica ainda tem muito poder junto ao Estado, um juiz determinou, de modo inédito, em março último, que a eutanásia fosse permitida no caso de Ana Estrada, 44. A psicóloga tem polimiositis, doença inflamatória sem cura que causa debilidade muscular progressiva. A decisão da Justiça foi a de “respeitar” a vontade da mulher de acabar com sua vida. Estrada afirma que, agora, espera que seu caso abra um precedente para uma legislação que contemple a situação de todos os peruanos que gostariam de abreviar seu sofrimento.

Atualmente, quem ajude uma pessoa a morrer no Peru pode pegar uma pena de até 3 anos. O atual presidente, Pedro Castillo, um esquerdista conservador, já se posicionou fortemente contra a eutanásia, o que pode fazer com que o caso de Estrada seja um acontecimento isolado.

Em vários outros países da região, como o México e a Argentina, aceita-se, de modo geral, a chamada eutanásia passiva, que passa por uma redução ou retirada de tratamento. A eutanásia ativa ainda é proibida em todos os países, como o Brasil. A única exceção da região é a Colômbia.

Sorridente e falante, Martha Sepúlveda se despede do mundo deixando um convite à reflexão. Não seria o momento de enfrentar o tabu da morte e entregar aos indivíduos a decisão de quando e como queiram partir?

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Apertem os cintos, o presidente sumiu https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/09/18/apertem-os-cintos-o-presidente-sumiu/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/09/18/apertem-os-cintos-o-presidente-sumiu/#respond Sat, 18 Sep 2021 15:37:02 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/alberto-320x213.png https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3914 “Ainda tenho dois anos pela frente”, dizia Alberto Fernández, há poucos dias, sobre as perspectivas de reativação econômica da Argentina no que falta de seu mandato.

Mal sabia ele que talvez a história não seja bem assim. Após a derrota do peronismo nas eleições primárias do último domingo (12), sua madrinha política e idealizadora de sua candidatura em 2019, a vice-presidente Cristina Kirchner, saiu das sombras para lembrá-lo de que foi ela quem o colocou ali, e que, se quiser, ela mesma pode tirá-lo a qualquer momento.

A crise escalou rapidamente, e depois das renúncias dos ministros fiéis à atual vice-presidente, veio a evidência de um divórcio entre ambos que já vinha se desenhando nos últimos tempos, com intensa troca de farpas. Cristina exigiu, de modo incendiário, mudanças na condução do país e uma troca geral do gabinete de ministros, que tinha sido escolhido por Fernández depois de eleito.

Cristina apresentou os nomes, e o presidente aceitou todos. Com muita dificuldade, o mandatário conseguiu manter seus aliados mais fieis, ainda que esvaziando seu poder. Santiago Cafiero, sua mão-direita e até então chefe de gabinete, passa a ser um decorativo chanceler, enquanto Vilma Ibarra, sua ex-mulher e grande amiga, manteve-se no cargo de secretária legal e técnica. Mas apenas isso.

O resto dos ministros são todos cristinistas, ou seja, da facção mais radical do kirchnerismo. A começar por Wado de Pedro (Interior), que acendeu a chama da rebelião da vice na noite de quarta-feira (15). De Pedro manteve seu posto, e voltam ao time ex-ministros de Cristina, como Julián Dominguez (Agricultura), Aníbal Fernández (Segurança) e Daniel Filmus (Ciência). Na posto-chave de chefe de gabinete, um guardião do cristinismo, Juan Manzur, conhecido por seu modo clientelista de fazer política e pelos enfrentamentos com feministas, por se posicionar contra a lei do aborto.

Entre os poucos sobreviventes está o ministro mais técnico, Martín Guzmán, da economia. Teve sempre a simpatia de Cristina até que a crise econômica começou a se fazer mais grave. A vice pedia que ele se dedicasse menos à negociação da dívida externa, e mais à elaboração de planos sociais. Fernández considerava essencial que o país deixasse de dever aos credores. Cristina nunca acreditou nessa prioridade. E já se nota quem ganhou. O acertado, por ora, é que Guzmán ficará pelo menos até dar um desenlace de algum modo, à novela com o FMI, a quem a Argentina deve US$ 44 bilhões. Depois, seu futuro é incerto.

Cristina mostrou, assim, que, ao contrário do que muitos pensavam, está longe de se sentir aposentada. A reaparição dela levantou a euforia os militantes kirchneristas, e o horror dos grandes meios de comunicação do país, críticos da gestão e que a apontam, de modo histriônico, como culpada pela crise que a Argentina atravessa.

Por oito anos (2007-2015), os argentinos tinham se acostumado a ver Cristina falando praticamente todos os dias. Se não era por meio dos veículos de comunicação governistas, era via longas cadeias nacionais de TV e rádio, em que exibia seu talento com a retórica popular.

Alguns meses antes da eleição de 2019, Cristina deu um passo atrás de uma possível candidatura, sabendo que, ainda que gerasse uma paixão incondicional em cerca de 30% da população, sua taxa de rejeição gira em torno de 70%.

A jogada descolocou o então presidente Mauricio Macri, que contava com uma reeleição fácil acreditando que o voto contra a ex-presidente lhe favoreceria. O eleito, Alberto Fernández, era então um peronista veterano sem brilho próprio. Em dois anos, o mandatário não conseguiu fazer nada para mudar esse status.

Para quem olhasse rápido, a ex-mandatária, agora em silêncio, parecia apenas estar buscando escapar dos sete processos a que responde na Justiça e de olho numa aposentadoria confortável. Mas a verdade é que sua onipresença na gestão Fernández é imensa. A fonte de seu poder está na militância organizada no La Cámpora. Organização criada por seu marido, o ex-presidente Néstor Kirchner, o camporismo ocupa lugares-chave na administração pública e do Estado. Cristina também controla, ainda, uma maioria peronista no Congresso. Ao dar-se conta de que pode perder a maioria com uma derrota em 14 de novembro, Cristina reagiu visceralmente.

A jogada da vice-presidente, baseada na pressão e no autoritarismo de seus modos, tem um efeito positivo entre parte da sociedade, que considera Fernández fraco e que gosta de um estilo mais personalista de governo. O presidente vinha se desgastando pela má gestão da economia e da pandemia, além de escândalos pessoais como o caso da festa de sua mulher em meio à pandemia e ao fura-fila das vacinas por parte de seus amigos políticos. Em outra parte da população, o gesto populista de Cristina gera alta rejeição, que será testada nas urnas em novembro.

O que está em jogo, agora, é como Fernández poderá governar os dois anos (dois anos?) que lhe faltam depois de esse episódio, em que sua autoridade foi esvaziada e sua figura pessoal, humilhada. Também, se Cristina irá se sentir satisfeita com as mudanças realizadas ou se seguirá avançando em direção ao “sillón de Rivadavia”, a cadeira presidencial.

Sem propriamente dar um golpe de Estado, Cristina mostrou que, assim como no primeiro dia da gestão, quem manda na Argentina ainda é ela. Desmoralizado, Alberto terá de reagir de alguma maneira e o cenário é incerto.

As brigas entre peronistas e entre os peronismos são uma constante na história argentina. Começaram, justamente, com o próprio Perón, que conquistou parte dos militares, parte da Igreja, dividindo essas instituições. Cenas como o massacre de Ezeiza, em sua volta do exílio, nos anos 1970, em que se enfrentaram numa batalha campal os peronistas sindicalistas e os peronistas montoneros, mostram como a força pode ser destrutiva contra si mesma.

Mas, como dizia o mesmo general Perón, “os peronistas são como gatos, quando pensam que estamos brigando, é porque estamos nos reproduzindo”. Não se pode arriscar, agora, se a força voltará a estar unida como em 2019, ou se irá se fragmentar novamente.

A única coisa que se sabe é que os argentinos tem pressa, com uma inflação galopante de 50% ao ano e o desemprego na casa de dois dígitos, vacinação lenta e a variante delta começando a se disseminar de modo mais geral no país. A discussão palaciana, antes os verdadeiros problemas do país, parece pequena e desnecessária.

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A barulhenta morte de Abimael Guzmán https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/09/16/a-barulhenta-morte-de-abimael-guzman/ https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2021/09/16/a-barulhenta-morte-de-abimael-guzman/#respond Thu, 16 Sep 2021 22:39:24 +0000 https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/Cartel-propagandistico-Sendero-Luminoso-Google_CYMIMA20150602_0009_16-320x213.jpg https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/?p=3905 Morto no último sábado, aos 86, Abimael Guzmán foi um monstro. Apesar de ser responsável por lançar uma guerra que matou mais de 70 mil peruanos, há muita gente que não o conhece. Talvez a razão seja o fato de que 80% de suas vítimas terem sido camponeses pobres, indígenas do interior do Peru, que sequer falavam espanhol e tinham no quéchua sua língua nativa. Guzmán não matou famosos e seus atentados não atingiram cartões-postais como o World Trade Center, em Nova York. Por outro lado, arrasaram vilarejos e cidades inteiras no interior do Peru.

Foi tamanho o trauma que causou ao país, que apesar de estar detrás das grades havia trinta anos, nenhum governo peruano tinha pensado no que se deveria fazer com seus restos quando morresse. Demasiada responsabilidade?  Ou manifestar-se seria mostrar  comprometimento com a causa do Sendero Luminoso ou, pior, revelaria medo a um enfrentamento com uma força que ainda mobiliza paixões e poderes locais no coração dos Andes?

A preocupação de não construir uma sepultura, que poderia ser um lugar de peregrinação no futuro, é legítima. A cidade de Medellín, na Colômbia, ainda tem de lutar muito para que se deixem de vender passeios turísticos que passem por lugares em que viveu Pablo Escobar, assim como por seu túmulo. Por outro lado, e o direito da família? Alguém avisou a mulher, também terrorista, e os familiares que um monstro como Guzmán não pode ter um enterro e seria melhor espalhar seus restos no mar como os Osama Bin Laden? E se houver represálias e novos ataques?

No caso de Guzmán, a questão sobre o que fazer com seus restos é ainda mais relevante do que nos casos do narcotraficante colombiano ou do terrorista saudita. Afinal, nenhum dos dois construiu uma organização que tinha no centro o culto à personalidade na mesma intensidade que o Sendero Luminoso. Algo que Guzmán conseguiu fazer ao fanatizar milhares de estudantes e militantes do interior do Peru.

Embora tenha também nascido na carona das paixões que a Revolução Cubana (1959) causaram na América Latina, a guerrilha do Sendero Luminoso não tinha um planejamento de ataque a alvos políticos claros, como as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), nem era um movimento fundamentalmente de jovens de classe média, como os montoneros argentinos ou os tupamaros uruguaios.

Abimael Guzmán, esse ex-professor de filosofia com capacidade de encantar e fascinar seus alunos e seguidores, convenceu-os de que apenas a criação de um caos absoluto, uma matança que não poupasse ninguém, serviria para a estratégia de confundir as autoridades e chegar a um propósito maior: mostrar ao mundo que os oprimidos no Peru eram, de fato, os protagonistas de uma revolução que havia sido traída, em sua visão, pelos soviéticos e pelos comunistas, e que agora ganhava uma nova chance na América Latina, sob seu comando. Em uma de suas demonstrações de força e de provocação, Guzmán mandou pendurar, em postos de iluminação em Lima, cachorros mortos com a seguinte inscrição no peito: “Deng Xiaoping é um traidor”.

Guzmán dizia que, para que o Sendero saísse vitorioso, seria necessário, no mínimo, 1 milhão de mortes. Ou seja, um banho de sangue pelas encostas da Cordilheira dos Andes.

As vítimas de Guzmán morreram a golpes de machado, fuziladas ou  incendiadas. Diferentemente das Farc, por exemplo, os senderistas se misturavam com as comunidades do campo, mas não as assistiam em nada. Não buscavam seu bem-estar nem as protegiam. Na verdade, as usavam como escudo e como carne de canhão. Afinal, o Exército peruano, assustado e cobrado por resultados, preferia arrasar, ele também, povoados inteiros a ter que selecionar quem era terrorista e quem não era. Em massacres conhecidos, como os de Acomarca e Lucanamarca, os soldados apenas dividiram a população entre homens e mulheres para estuprarem as mulheres antes de matar a todos, incluindo crianças. Guzmán jogou habilmente com os preconceitos dos peruanos das cidades com relação aos do campo. De certo modo, estimulou a matança realizada pelo Exército, pois essa correspondia à sua estratégia de criar o caos.

Se sua prisão e o fim do Sendero Luminoso foram usados para a propaganda política de Alberto Fujimori, as ações de Guzmán não deveriam ficar restritas ao contexto peruano. Nos anos 90, a comunidade internacional deveria ter repudiado seus atos de modo ainda mais enfático. Quanto ao resto da região, seria importante uma reflexão sobre o contexto que tornou possível o surgimento do Sendero Luminoso. Porque, afinal, não parece que a vida dos camponeses pobres de origem indígena tenha melhorado nesses anos de crescimento econômico do país. E o atual governo, entre admitir que participou, de alguma forma, do conflito, e sua tentativa de não assustar os mercados, parece titubear diante do horror causado por Guzmán, sem resolver o que causou sua aparição.

 

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