Série sobre Maradona revela duas caras da Argentina

O escritor britânico Martin Amis, que viveu vários anos no Rio da Prata, dizia que o caráter nacional argentino era definido pelo fato de o primeiro gol de Maradona contra os ingleses, na Copa do Mundo de 1986, ser preferido em relação ao segundo.

O primeiro, para quem não lembra ou não viu, é o famoso gol de mão, que o próprio ídolo admitiu ter sido roubado, mas justificou afirmando que se tratava da “mão de Deus”. O segundo, minutos depois, é uma jogada cinematográfica, em que Maradona recebe um passe na área argentina, dribla meio time adversário e arremata, enganando o goleiro Shilton.

Para Amis, entre a trapaça do primeiro gol e a genialidade do segundo, a maioria dos argentinos fica mais encantado com a trapaça. E isso explicaria não apenas o carisma do jogador, mas também uma relação de fascínio dos argentinos com a corrupção e com aqueles que têm talento para enganar os demais. Maradona seria o exemplo máximo da “viveza criolla”, algo que no Brasil seria o equivalente da malandragem.

“Maradona – Sueño Bendito”, série da Amazon Prime lançada na semana em que o ídolo completaria 61 anos e pouco antes do primeiro aniversário de sua morte, joga com essa dualidade argentina. Os momentos de genialidade são relembrados e repassados com preciosas imagens de época, emocionantes de rever. Mas o foco e  o investimento na sedução do espectador estão nos detalhes de sua vida de excessos: bebida, drogas e mulheres. E, mais uma vez, Maradona é desculpado. Pelo talento futebolístico, sim. Pela história de superação do menino nascido na pobreza, também. Mas, principalmente, pela malícia, pelo comportamento machista e criminoso do jogador, que abusou de mulheres e se meteu com a máfia italiana, entre outras coisas.

Entre as passagens que mostram sua genialidade futebolística, se destacam as de seu início, no clube Cebollitas, depois no Boca e no Barcelona. Também está bem recriada sua infância em Villa Fiorito, favela de Buenos Aires que, apesar do filho famoso, continua tão pobre como antes _vale lembrar que a pobreza na Argentina é de 40% da população. Entre as cenas que fazem o elogio de suas barbaridades estão seu comportamento agressivo com os cartolas, suas mentiras para enganar as mulheres, os filhos ilegítimos, seus gastos disparatados de dinheiro em festas e carros, sua relação com a cocaína.

As mulheres ocupam papéis de entrega e sofrimento para que o ídolo brilhe. Doña Tota (em atuações fantásticas de Mercedes Morán e Rita Cortese), a mãe de Maradona, que é tratada como santa na Argentina, exerce sua função de parir, criar, proteger e desculpar o filho. Não sabemos de mais nada de sua vida. Claudia (a mulher), surge como a que sempre aceitou e sofreu escondida as infidelidades do marido, e as amantes como mulheres  “que sabiam com quem estavam se metendo e por isso não têm do que reclamar”. Clássica narrativa “machirula”, como se diz aqui.

O Brasil surge, como é de costume, com exageros no estereótipo, e como notou a imprensa local, distorcendo fatos. Na cena do encontro de Maradona com Pelé, que ocorreu em 1979, o ídolo brasileiro aparece rodeado de mulheres de topless, e ambos se jogam num coquetel à beira da piscina. Na realidade, o encontrou foi presenciado por assessores homens dos dois lados e do pai de Maradona, Don Diego.

Há mérito notável da série na qualidade do roteiro, no conjunto das atuações de um casting de primeira linha e na pesquisa de imagens de época. Os três atores que fazem o Maradona adulto também se sobressaem, com especial destaque para Nazareno Casero, que faz o jogador em sua época no Barcelona. O ator imita seus trejeitos e seu modo de andar à perfeição.

O show decepciona pelo ângulo ao tratar o personagem, hiperbolizando a vida de anedotas já exageradas do personagem, como na cena inventada em que um Maradona adolescente se livra de um grupo de militares durante a ditadura fazendo embaixadinhas. Uma série cheia de exageros que poderiam ser dispensáveis, como era a personalidade do próprio jogador.