Já é tarde demais para a democracia na Nicarágua

Nas últimas semanas, tem sido comum ler comentários de analistas internacionais e mesmo de figuras políticas de peso  afirmando que o dia 7 de novembro poderia ser uma espécie de data-limite para salvar a democracia na Nicarágua, e que depois disso ela estaria totalmente perdida.

A má notícia é que o jogo já está terminado. Praticamente não há possibilidade de que a ditadura de Daniel Ortega não saia vencedora. Os derrotados serão os 6,6 milhões de nicaraguenses –milhares deles já migrando desesperadamente neste momento. É certo que o calendário diz que, nessa data, haverá uma eleição presidencial. Mas a verdade é que o que veremos –sob filtros de censura ou devido ao trabalho valente de alguns jornalistas estrangeiros que conseguiram entrar no país– não será nada mais do que um teatro. Uma eleição de brincadeirinha, uma encenação de mau gosto a essa altura, quando tantas arbitrariedades já aconteceram, quando já morreram mais de 300 pessoas nos protestos contra o governo e há mais de 155 presos políticos sem nenhum julgamento. Continuam sequestrados e detrás das grades empresários, políticos e ativistas. Os meios de comunicação independentes, fechados ou afogados economicamente. Os que sobram operam com redações improvisadas no exílio, desde a Costa Rica ou os EUA. Entre os que perderam a liberdade, estão nada menos que os sete candidatos de oposição que se arriscaram a apresentar-se para disputar o poder com Daniel Ortega.

Em vez de prenunciar o que de terrível poderia vir a acontecer em menos de duas semanas, a comunidade internacional e seus organismos deveriam estar mais ativos em pressionar pelo fim imediato dos abusos de direitos humanos e pelo reestabelecimento da democracia. Nesse sentido, o dia 7 será “apenas” mais um dia como tantos outros na infame ditadura orteguista.

Foi justamente na Costa Rica onde se gravou um spot, lançado no último domingo (24) à noite nas redes e que logo viralizou. Ele é o triste retrato de uma batalha por ora já perdida.

Nele, vemos a reprodução de um bairro popular de Manágua, em que pessoas de diferentes idades dançam na rua ao som de uma música que diz “fiquemos em casa”, estimulando os eleitores a não saírem a votar. Chama a atenção que os principais atores do vídeo estejam mascarados. Não é apenas para esconder a identidade dos que participaram do clipe, mas também porque representam alguns manifestantes que foram vítimas da repressão, como o estudante Álvaro Conrado, morto aos 15 anos com um tiro na garganta nas marchas de 2018. Ainda, mostram que estão todos com máscaras, em desafio a uma ditadura negacionista do vírus que ordenou seus médicos a não usarem proteção nos hospitais para que os pacientes não pensassem que a Covid-19 era uma ameaça grave. A Nicarágua foi dos países da América Central com pior desempenho na pandemia, com cifras adulteradas, enterros feitos na madrugada e às escondidas e o colapso do sistema sanitário nas grandes cidades.

Nem uma campanha televisiva como essas nem as sanções econômicas impostas pelo governo dos EUA parecem comover o casal presidencial. Daniel Ortega e sua mulher e vice, Rosario Murillo, não se mostram impactados com o que o mundo diz deles. Sua cruzada para permanecer no poder, ao contrário, parece ter a ver principalmente com eliminar inimigos pessoais, num revanchismo que se poderia dizer infantil caso não fosse tão cruel.

Afinal, os sete pré-candidatos presos estão numa lista de ex-aliados e ex-amigos contra quem ambos se viraram de modo violento.  O caso mais chamativo é o do ex-guerrilheiro sandinista Hugo Torres. Em 1974, portanto antes da revolução sandinista, Torres arriscou a vida para livrar Daniel Ortega da prisão. Com um grupo de guerrilheiros, ainda durante a ditadura de Anastasio Somoza, Torres invadiu uma festa em que havia embaixadores e políticos e fez reféns. O objetivo do grupo? Trocar a liberação destes pela de Ortega, o que de fato aconteceu. Hoje Ortega está no poder, mais ou menos como o ditador Somoza, e o homem que o libertou naquele distante 1974 é quem está na prisão, acusado de traição à pátria.

Outro exemplo das diferenças pessoais que determinaram a prisão desses opositores é Cristiana Chamorro. Filha da ex-presidente Violeta Chamorro, que derrotou Ortega nas urnas em 1990, e membro de uma ativa família de opositores do orteguismo, Cristiana era a favorita nas pesquisas para ganhar esta eleição. Mas a antipatia pessoal que o casal Ortega tem por ela e pela família Chamorro, de quem eram aliados nos anos 1970, falou mais forte. Ortega não se conforma com a derrota que sofreu por parte de Violeta, e para não ver o repeteco desse filme, mandou prender Cristiana, também acusada de traição à pátria. Só para confirmar a cisma com a família, seu irmão, Pedro Joaquín, também foi parar atrás das grades.

Desde maio, além dos sete candidatos, pelo menos outros 30 políticos da oposição foram presos.

Não é apenas a aniquilação da oposição o que deve garantir a vitória de Ortega. As leis eleitorais foram habilmente mudadas pelo ditador para facilitar sua vitória. Por exemplo, não há segundo turno, e bastam 35% dos votos para que um candidato vença. A última pesquisa do instituto Gallup mostra claramente porque o ditador se viu levado a avançar contra os opositores e as leis. Na sondagem, 69% dos nicaraguenses afirmaram que votariam em algum candidato de oposição, se pudessem.

Aos 76, Ortega evoca apenas uma pálida lembrança do revolucionário que, junto a um grupo aguerrido e a uma sociedade civil engajada, ajudou a derrubar a ditadura da dinastia Somoza nos anos 1970. Como são seus ex-companheiros de luta os que veem mais de perto sua transformação, Ortega os persegue e os manda prender. Além das forças de segurança do Estado, conta também com a Juventude Sandinista, um grupo de jovens militantes comandados por Murillo, que vêm funcionando como força paramilitar armada que auxilia na repressão.

Adiante de uma economia frágil, impactada pela crise do coronavírus, Ortega lida com o vazio deixado pela retirada do petróleo e dos aportes de US$ 500 milhões que vinham regularmente da Venezuela –até pouco tempo utilizados para a distribuição de planos sociais. A simpatia que a revolução sandinista despertou numa geração de progressistas pelo mundo vai esvaindo-se, mas ainda serve a alguns países, como a Argentina e o México, e alguns líderes políticos de esquerda, que resistem a condenar os abusos cometidos pelo regime.

Há uma escalada autoritária em curso na América Central. Além da Nicarágua, vemos o presidente salvadorenho, Nayib Bukele, avançar impune sobre as instituições de seu país. Em Honduras, onde haverá eleições também em novembro, o presidente Juan Orlando Hernández, acusado de narcotráfico pela Justiça dos EUA, procura manter seu partido no poder. Enquanto isso, na Guatemala, Alejandro Giammattei terminou por destruir todos os esforços de promotores e da sociedade que investigaram escândalos de corrupção e que haviam possibilitado até mesmo o impeachment de Otto Pérez Molina em 2015.

Se há preocupação com as fileiras de centro-americanos tentando desesperadamente chegar a países mais estáveis, a tendência é que elas aumentem. São refugiados de sistemas opressores e injustos antes de “imigrantes ilegais”. Recomenda-se empatia.