Apertem os cintos, o presidente sumiu
“Ainda tenho dois anos pela frente”, dizia Alberto Fernández, há poucos dias, sobre as perspectivas de reativação econômica da Argentina no que falta de seu mandato.
Mal sabia ele que talvez a história não seja bem assim. Após a derrota do peronismo nas eleições primárias do último domingo (12), sua madrinha política e idealizadora de sua candidatura em 2019, a vice-presidente Cristina Kirchner, saiu das sombras para lembrá-lo de que foi ela quem o colocou ali, e que, se quiser, ela mesma pode tirá-lo a qualquer momento.
A crise escalou rapidamente, e depois das renúncias dos ministros fiéis à atual vice-presidente, veio a evidência de um divórcio entre ambos que já vinha se desenhando nos últimos tempos, com intensa troca de farpas. Cristina exigiu, de modo incendiário, mudanças na condução do país e uma troca geral do gabinete de ministros, que tinha sido escolhido por Fernández depois de eleito.
Cristina apresentou os nomes, e o presidente aceitou todos. Com muita dificuldade, o mandatário conseguiu manter seus aliados mais fieis, ainda que esvaziando seu poder. Santiago Cafiero, sua mão-direita e até então chefe de gabinete, passa a ser um decorativo chanceler, enquanto Vilma Ibarra, sua ex-mulher e grande amiga, manteve-se no cargo de secretária legal e técnica. Mas apenas isso.
O resto dos ministros são todos cristinistas, ou seja, da facção mais radical do kirchnerismo. A começar por Wado de Pedro (Interior), que acendeu a chama da rebelião da vice na noite de quarta-feira (15). De Pedro manteve seu posto, e voltam ao time ex-ministros de Cristina, como Julián Dominguez (Agricultura), Aníbal Fernández (Segurança) e Daniel Filmus (Ciência). Na posto-chave de chefe de gabinete, um guardião do cristinismo, Juan Manzur, conhecido por seu modo clientelista de fazer política e pelos enfrentamentos com feministas, por se posicionar contra a lei do aborto.
Entre os poucos sobreviventes está o ministro mais técnico, Martín Guzmán, da economia. Teve sempre a simpatia de Cristina até que a crise econômica começou a se fazer mais grave. A vice pedia que ele se dedicasse menos à negociação da dívida externa, e mais à elaboração de planos sociais. Fernández considerava essencial que o país deixasse de dever aos credores. Cristina nunca acreditou nessa prioridade. E já se nota quem ganhou. O acertado, por ora, é que Guzmán ficará pelo menos até dar um desenlace de algum modo, à novela com o FMI, a quem a Argentina deve US$ 44 bilhões. Depois, seu futuro é incerto.
Cristina mostrou, assim, que, ao contrário do que muitos pensavam, está longe de se sentir aposentada. A reaparição dela levantou a euforia os militantes kirchneristas, e o horror dos grandes meios de comunicação do país, críticos da gestão e que a apontam, de modo histriônico, como culpada pela crise que a Argentina atravessa.
Por oito anos (2007-2015), os argentinos tinham se acostumado a ver Cristina falando praticamente todos os dias. Se não era por meio dos veículos de comunicação governistas, era via longas cadeias nacionais de TV e rádio, em que exibia seu talento com a retórica popular.
Alguns meses antes da eleição de 2019, Cristina deu um passo atrás de uma possível candidatura, sabendo que, ainda que gerasse uma paixão incondicional em cerca de 30% da população, sua taxa de rejeição gira em torno de 70%.
A jogada descolocou o então presidente Mauricio Macri, que contava com uma reeleição fácil acreditando que o voto contra a ex-presidente lhe favoreceria. O eleito, Alberto Fernández, era então um peronista veterano sem brilho próprio. Em dois anos, o mandatário não conseguiu fazer nada para mudar esse status.
Para quem olhasse rápido, a ex-mandatária, agora em silêncio, parecia apenas estar buscando escapar dos sete processos a que responde na Justiça e de olho numa aposentadoria confortável. Mas a verdade é que sua onipresença na gestão Fernández é imensa. A fonte de seu poder está na militância organizada no La Cámpora. Organização criada por seu marido, o ex-presidente Néstor Kirchner, o camporismo ocupa lugares-chave na administração pública e do Estado. Cristina também controla, ainda, uma maioria peronista no Congresso. Ao dar-se conta de que pode perder a maioria com uma derrota em 14 de novembro, Cristina reagiu visceralmente.
A jogada da vice-presidente, baseada na pressão e no autoritarismo de seus modos, tem um efeito positivo entre parte da sociedade, que considera Fernández fraco e que gosta de um estilo mais personalista de governo. O presidente vinha se desgastando pela má gestão da economia e da pandemia, além de escândalos pessoais como o caso da festa de sua mulher em meio à pandemia e ao fura-fila das vacinas por parte de seus amigos políticos. Em outra parte da população, o gesto populista de Cristina gera alta rejeição, que será testada nas urnas em novembro.
O que está em jogo, agora, é como Fernández poderá governar os dois anos (dois anos?) que lhe faltam depois de esse episódio, em que sua autoridade foi esvaziada e sua figura pessoal, humilhada. Também, se Cristina irá se sentir satisfeita com as mudanças realizadas ou se seguirá avançando em direção ao “sillón de Rivadavia”, a cadeira presidencial.
Sem propriamente dar um golpe de Estado, Cristina mostrou que, assim como no primeiro dia da gestão, quem manda na Argentina ainda é ela. Desmoralizado, Alberto terá de reagir de alguma maneira e o cenário é incerto.
As brigas entre peronistas e entre os peronismos são uma constante na história argentina. Começaram, justamente, com o próprio Perón, que conquistou parte dos militares, parte da Igreja, dividindo essas instituições. Cenas como o massacre de Ezeiza, em sua volta do exílio, nos anos 1970, em que se enfrentaram numa batalha campal os peronistas sindicalistas e os peronistas montoneros, mostram como a força pode ser destrutiva contra si mesma.
Mas, como dizia o mesmo general Perón, “os peronistas são como gatos, quando pensam que estamos brigando, é porque estamos nos reproduzindo”. Não se pode arriscar, agora, se a força voltará a estar unida como em 2019, ou se irá se fragmentar novamente.
A única coisa que se sabe é que os argentinos tem pressa, com uma inflação galopante de 50% ao ano e o desemprego na casa de dois dígitos, vacinação lenta e a variante delta começando a se disseminar de modo mais geral no país. A discussão palaciana, antes os verdadeiros problemas do país, parece pequena e desnecessária.