A barulhenta morte de Abimael Guzmán
Morto no último sábado, aos 86, Abimael Guzmán foi um monstro. Apesar de ser responsável por lançar uma guerra que matou mais de 70 mil peruanos, há muita gente que não o conhece. Talvez a razão seja o fato de que 80% de suas vítimas terem sido camponeses pobres, indígenas do interior do Peru, que sequer falavam espanhol e tinham no quéchua sua língua nativa. Guzmán não matou famosos e seus atentados não atingiram cartões-postais como o World Trade Center, em Nova York. Por outro lado, arrasaram vilarejos e cidades inteiras no interior do Peru.
Foi tamanho o trauma que causou ao país, que apesar de estar detrás das grades havia trinta anos, nenhum governo peruano tinha pensado no que se deveria fazer com seus restos quando morresse. Demasiada responsabilidade? Ou manifestar-se seria mostrar comprometimento com a causa do Sendero Luminoso ou, pior, revelaria medo a um enfrentamento com uma força que ainda mobiliza paixões e poderes locais no coração dos Andes?
A preocupação de não construir uma sepultura, que poderia ser um lugar de peregrinação no futuro, é legítima. A cidade de Medellín, na Colômbia, ainda tem de lutar muito para que se deixem de vender passeios turísticos que passem por lugares em que viveu Pablo Escobar, assim como por seu túmulo. Por outro lado, e o direito da família? Alguém avisou a mulher, também terrorista, e os familiares que um monstro como Guzmán não pode ter um enterro e seria melhor espalhar seus restos no mar como os Osama Bin Laden? E se houver represálias e novos ataques?
No caso de Guzmán, a questão sobre o que fazer com seus restos é ainda mais relevante do que nos casos do narcotraficante colombiano ou do terrorista saudita. Afinal, nenhum dos dois construiu uma organização que tinha no centro o culto à personalidade na mesma intensidade que o Sendero Luminoso. Algo que Guzmán conseguiu fazer ao fanatizar milhares de estudantes e militantes do interior do Peru.
Embora tenha também nascido na carona das paixões que a Revolução Cubana (1959) causaram na América Latina, a guerrilha do Sendero Luminoso não tinha um planejamento de ataque a alvos políticos claros, como as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), nem era um movimento fundamentalmente de jovens de classe média, como os montoneros argentinos ou os tupamaros uruguaios.
Abimael Guzmán, esse ex-professor de filosofia com capacidade de encantar e fascinar seus alunos e seguidores, convenceu-os de que apenas a criação de um caos absoluto, uma matança que não poupasse ninguém, serviria para a estratégia de confundir as autoridades e chegar a um propósito maior: mostrar ao mundo que os oprimidos no Peru eram, de fato, os protagonistas de uma revolução que havia sido traída, em sua visão, pelos soviéticos e pelos comunistas, e que agora ganhava uma nova chance na América Latina, sob seu comando. Em uma de suas demonstrações de força e de provocação, Guzmán mandou pendurar, em postos de iluminação em Lima, cachorros mortos com a seguinte inscrição no peito: “Deng Xiaoping é um traidor”.
Guzmán dizia que, para que o Sendero saísse vitorioso, seria necessário, no mínimo, 1 milhão de mortes. Ou seja, um banho de sangue pelas encostas da Cordilheira dos Andes.
As vítimas de Guzmán morreram a golpes de machado, fuziladas ou incendiadas. Diferentemente das Farc, por exemplo, os senderistas se misturavam com as comunidades do campo, mas não as assistiam em nada. Não buscavam seu bem-estar nem as protegiam. Na verdade, as usavam como escudo e como carne de canhão. Afinal, o Exército peruano, assustado e cobrado por resultados, preferia arrasar, ele também, povoados inteiros a ter que selecionar quem era terrorista e quem não era. Em massacres conhecidos, como os de Acomarca e Lucanamarca, os soldados apenas dividiram a população entre homens e mulheres para estuprarem as mulheres antes de matar a todos, incluindo crianças. Guzmán jogou habilmente com os preconceitos dos peruanos das cidades com relação aos do campo. De certo modo, estimulou a matança realizada pelo Exército, pois essa correspondia à sua estratégia de criar o caos.
Se sua prisão e o fim do Sendero Luminoso foram usados para a propaganda política de Alberto Fujimori, as ações de Guzmán não deveriam ficar restritas ao contexto peruano. Nos anos 90, a comunidade internacional deveria ter repudiado seus atos de modo ainda mais enfático. Quanto ao resto da região, seria importante uma reflexão sobre o contexto que tornou possível o surgimento do Sendero Luminoso. Porque, afinal, não parece que a vida dos camponeses pobres de origem indígena tenha melhorado nesses anos de crescimento econômico do país. E o atual governo, entre admitir que participou, de alguma forma, do conflito, e sua tentativa de não assustar os mercados, parece titubear diante do horror causado por Guzmán, sem resolver o que causou sua aparição.