A difícil tentação de não mexer na Constituição
Enquanto o Chile prepara uma nova Constituição que é resultado de um processo democrático, outros países da região têm visto seus mandatários avançarem sobre as leis com propostas menos claras e com toques autoritários e populistas.
Um deles é El Salvador. Já faz tempo que o o direitista Nayib Bukele não se presta mais a piadas de que é um “líder millennial” e cool. O que o jovem mandatário tem feito é digno de um filhote de autocrata. Primeiro, avançou contra o legislativo, depois, sobre juízes do tribunal supremo e, agora, tratando de mudar a Carta do país, em vigor desde 1983.
Já há alguns meses, Bukele entregou a seu vice, Felix Ulloa, a liderança de um comitê que tem como objetivo redigir reformas à Constituição nacional. Pelo que se revelou até agora, elas não são totalmente negativas, uma vez que fazem concessões no que diz respeito a direitos individuais, como casamento igualitário e relaxamento na draconiana proibição total do aborto. Por trás disso, está a ideia de afastar a tão presente Igreja Católica local das decisões políticas. Também se prometem reparações a abusos em direitos humanos na repressão da guerra civil (1979-1992).
As boas notícias, porém, param por aí. Está nos planos estender o mandato do presidente de cinco para seis anos. Além disso, o tribunal eleitoral sairia do controle da Justiça e seria uma entidade independente, com membros nomeados pelo Executivo. Em ambas as medidas, se vê um amplo espaço para que Bukele aumente e centralize seus poderes.
A reforma constitucional também deve prever que a aprovação de leis no Congresso seja mais fácil. Em vez de uma maioria de dois terços, exigirá apenas a de 50% mais um voto.
A ideia é apresentar essas reformas ao texto de 1983 ao Congresso no próximo dia 15 de setembro, dia do bicentenário da independência de El Salvador. No parlamento, o partido de Bukele (Nuevas Ideas) é hegemônico. Depois disso, elas teriam de ser votadas num referendo. Mas isso não será um obstáculo para Bukele, que continua sendo um líder da aprovação popular na América Latina.
Em pesquisa recente, da Gallup, 87% dos salvadorenhos afirmaram seu apoio ao presidente, enquanto sua gestão tem apenas 11% de rejeição.
No México, o presidente de esquerda Andrés Manuel López Obrador passa já da metade de seu mandato encrencando com a Justiça eleitoral de seu país. Após seu partido, o Morena (Movimento de Regeneração Nacional) ter encolhido das Legislativas e seu esdrúxulo plebiscito para julgar ex-presidentes ter tido uma participação pífia (7% do eleitorado), o mandatário decidiu partir para cima das autoridades eleitorais.
AMLO (como é conhecido) considera que o Instituto Nacional Eleitoral (INE) e o Tribunal Electoral do Poder Judicial da Federação (TEPJF) são responsáveis pela baixa participação nas últimas votações e, assim, os responsabiliza indiretamente por suas próprias derrotas. Os ataques incluem chamar o poder eleitoral de “Frankenstein” e de um instrumento a serviço dos partidos tradicionais.
A solução para isso, ele já vem trazendo ao debate: uma reforma eleitoral. López Obrador afirmou que esta faria uma “renovação total” desses órgãos, por meio da remoção de todos os seus funcionários. “Uma mudança total, eles não são democratas, não respeitam a vontade da população e não estão a altura das circunstâncias. Precisamos de uma troca de funcionários para estabelecer a autêntica democracia no país”, afirmou.
Espera-se que a proposta chegue ao Congresso nas próximas semanas. Não se sabe, ainda, como seria o mecanismo para realizar essa demissão coletiva, quando muitos são funcionários do Estado, e como seriam as novas contratações, caso fossem aprovadas. Mas, com tantas prioridades na pauta, como a pandemia do coronavírus, seu impacto na economia e a imigração ilegal, essa não parece ser a principal das questões do país.
Chama a atenção, ainda, que AMLO continue obcecado com o sistema eleitoral mexicano. Afinal, não é de hoje que ele ataca essa instituição.
Em 2006, AMLO não aceitou a derrota na corrida presidencial contra o então vencedor, Felipe Calderón (PAN), e resolveu fazer uma campanha contra o resultado. Chegou a comandar o bloqueio de vias e a acampar no Zócalo da Cidade do México em protesto. Em 2012, fez o mesmo quando vencido por Enrique Peña Nieto (PRI).
Outro que está de olho em reescrever as leis de seu país é o também esquerdista Pedro Castillo, no Peru. Embora venha agindo com cautela nestas primeiras semanas desde que assumiu (em 28 de julho), por conta das polêmicas com relação a seu gabinete, o mandatário deixou claro em sua campanha e em sua posse que sua ideia era trocar a Constituição do país, de 1993, por uma nova.
O problema começa com a própria lei. Segundo atual texto, não é possível formar uma Assembleia Constituinte ou chamar um referendo para tal sem que seja por meio do Congresso. Ou seja, o Executivo sozinho não pode propor tal mudança. “Não é possível que o povo esteja condenado a continuar prisioneiro da atual Constituição”, já esbravejou Castillo em um discurso. A força política do mandatário, o partido Perú Libre, apesar de compor a maior bancada da assembleia unicameral do país, não tem a maioria.
Enquanto busca acordos improváveis ante um Congresso que, por pouco, não rejeitou logo de cara seu primeiro time de ministros, o Perú Libre, partido governista comandado pelo polêmico Vladimir Cerrón busca uma alternativa para colocar o plano em marcha. A agrupação considera a atual Constituição “neoliberal” e que apenas serve aos grupos de interesse que comandam a economia do país. Para Castillo, é necessário incorporar a ideia de uma nação pluricultural. Isso na teoria. Na prática, a oposição considera que uma nova Carta pode ser usada para o mesmo fim de seus aliados e gurus, o venezuelano Hugo Chávez e o boliviano Evo Morales. Ambos de fato promoveram novas Constituições mais inclusivas e que se refletiram em melhorias sociais. Porém, por outro lado, significaram uma ampliação dos poderes desses mandatários e uma escalada autoritária.
É importante que as sociedades salvadorenha, mexicana e peruana busquem fiscalizar esses processos pelas vias democráticas e pacíficas.