Não se trata de azar, drama do Haiti é a pobreza e o passado de abusos
A sequência de tragédias que vêm ocorrendo no Haiti hoje, como no passado, trouxe à tona uma pergunta frequente: “por que o país tem tanto azar?”. Em pouco mais de um mês, os haitianos assistiram ao assassinato de um presidente e a mais um terremoto, que causou, pelo menos, 2 mil mortes.
A ligeireza da indagação, porém, ofusca a verdade. Os tenebrosos eventos recentes não estão relacionados a uma tremenda falta de sorte, mas sim a uma história marcada por um passado colonial, escravista e em que a interferência estrangeira sempre foi constante. O resultado, além de uma economia cambaleante, instituições frágeis, vulnerabilidade para a corrupção e uma imensa desigualdade, é a extrema pobreza, que impede que o país responda a tragédias naturais de modo apropriado.
O Haiti foi uma das colônias exploradas de modo mais brutal pelos europeus. E também das mais rentáveis, chegando a produzir 45% do açúcar consumido no planeta. A documentação histórica dá conta do uso de torturas e de castigos terríveis aos escravos africanos por parte dos colonos franceses. Em 1789, havia 55 mil pessoas livres no país, e mais de 500 mil escravos. Mais de 10% da população escrava morria de doenças e 70% não atingia os 30 anos de idade por conta do excesso de trabalho e dos maus tratos.
Em 1791, teve início o processo conhecido como Revolução Haitiana, que levou à proclamação da independência em 1804. Marcado pela violência contra os brancos, o processo deu lugar à primeira república governada por descendentes de africanos nas Américas. E virou um símbolo para as demais rebeliões sul-americanas.
O custo desse processo histórico, porém, foi alto. Os franceses tentaram reconquistar o território várias vezes, não sem muito derramamento de sangue. Na nascente sociedade haitiana, se reforçou a ideia de que os líderes do país deveriam ser autoritários e de pulso firme, o que daria, ao longo do tempo, espaço para que militares se transformassem em uma peça fundamental no comando do país.
No século 20, as coisas não foram mais fáceis, com uma invasão por parte dos EUA em 1915 que resultou numa ocupação de quase 20 anos. Uma ditadura familiar e de culto ao líder começou em 1957, com François Duvalier, e foi continuada por seu filho, Jean-Claude, até 1986. Ambos ficaram conhecidos como Papa Doc e Baby Doc. Governaram de modo brutal, usando um esquadrão da morte, os Tonton Macoute, para perseguir opositores.
A redemocratização mal havia começado quando, em 1994, houve uma nova intervenção dos EUA, desta vez para tirar do poder um brutal regime militar instalado por um golpe contra o então presidente eleito Jean-Bertrand Aristide. Os norte-americanos ficariam no país até 1995. De lá para cá, os governantes haitianos tiveram de lidar com a herança de tantos anos de instabilidade política e econômica e com o aumento da pobreza, num país com instituições e estruturas precárias nas áreas de saúde e educação, entre outras. Neste território, a corrupção e a violência floresceram.
Nos últimos anos, o país viu crescer a formação de gangues especialmente nas grandes cidades, ocupando espaços onde há vazio de poder. Os sequestros viraram uma arma comum de controle e extorsão. Nos meses que precederam o ainda misterioso assassinato de Jovenel Moïse, a crise armada por conta do questionamento de sua legitimidade aumentou o vazio de poder, que agora, com sua morte, já virou um abismo.
Os esforços internacionais para tentar reconstruir o país depois do terremoto de 2010, que causou mais de 200 mil mortos, não foram suficientes. A situação só fica mais grave com a saída de algumas ONGs por acusações de desvio de fundos. Segundo a ONU, por conta do impacto da pandemia na economia local, o Haiti 4,4 milhões, de seus 11 milhões de habitantes, com fome.
Não se trata, portanto, de má sorte. A tragédia que atinge o Haiti hoje é a pobreza. Uma pobreza causada por centenas de más decisões, em geral tomadas por atores estrangeiros ou por ditadores locais. Enquanto não houver um governo democraticamente eleito e com apoio internacional para investir na estrutura e no fortalecimento das instituições do país, seguiremos vendo episódios tristes como os mais recentes. Levar aos haitianos remédio e comida a cada terremoto não colabora com o problema de fundo, e é para isso que a comunidade internacional deveria abrir os olhos.