Os ‘fatos alternativos’ e o desprezo de AMLO ao jornalismo
Desde o início de sua gestão, em 2018, o presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador (conhecido como AMLO) deixou claro que pelo menos um aspecto de seu mandato seria autoritário: o da relação com os meios de comunicação. Com a justificativa populista de que não favoreceria nenhum grupo midiático em especial, mas que seria “transparente” diariamente, determinou que quase toda a comunicação presidencial fosse feita por meio do espaço das “mañaneras”. Trata-se de uma sessão matutina que pode durar mais de duas horas, em que recebe poucos jornalistas num solene e belo espaço do Palácio Nacional.
Ali, ele fala livremente e responde a poucas perguntas. Muitas vezes monótona de escutar, por seu tom pausado e inalterado, a narrativa de López Obrador contém uma tentativa frustrada de transmitir imagens poéticas e históricas de sua própria gestão, que ele compara a um processo revolucionário. Desde então, porém, do ponto de vista factual, as sessões se mostram não apenas inócuas como equivocadas. Nas “mañaneras”, as cifras da pandemia, da violência causada pelo enfrentamento ao narcotráfico ou do assassinato de jornalistas são todas minimizadas e alteradas, sempre para tirar a responsabilidade do governo nessas tragédias.
É certo que há liberdade de imprensa no México, e que diversos meios de comunicação estrangeiros trabalham ativamente ali, muitas vezes questionando cifras e informações oficiais. E o que AMLO decidiu fazer com relação a eles? Abrir uma sessão em suas “mañaneras” para criticar sua cobertura. Chama-se “Quem é Quem Nas Mentiras da Semana”, um espaço oficial vergonhoso em que o mandatário critica e desmente matérias e jornalistas. Justo ele, que segundo uma agência de fact-checking local, mencionou fatos incorretos em mais de 56 mil oportunidades desde dezembro de 2018.
O embate mais circense que ocorreu recentemente em uma “mañanera” foi com o jornalista mexicano-americano Jorge Ramos. Este, com números oficiais na mão, questionou AMLO sobre o fracasso de sua política de enfrentamento aos homicídios relacionados à guerra contra o narcotráfico. López Obrador, com ar professoral e apontando o dedo indicador para o experiente jornalista, disse que Ramos estava errado, e que tinha “fatos alternativos” para dar a ele.
Num país em que 43 jornalistas foram assassinados durante o exercício de sua profissão desde 2018, a desmoralização diária que AMLO faz da imprensa independente do México é perigosa e antidemocrática. Ela anima a serem ainda mais hostis e violentos os milhares de inimigos dos jornalistas pelo país: autoridades corruptas, chefes de cartéis e milícias –em geral aqueles que estão por trás dos assassinatos desses profissionais. Pior ainda, normaliza a impunidade total –nenhum desses casos terminou até hoje em condenação– a quem comete esses crimes. Isso garante que continuarão ocorrendo.
AMLO iniciou sua gestão prometendo “abrazos y no balazos” (abraços e não tiros) em sua abordagem à violência no país. Claramente a estratégia não deu certo, uma vez que sua gestão, em comparação com seus antecessores recentes, já é a mais violenta do México, com mais de 86 mil homicídios desde que chegou ao poder.
Enfrentar a verdade e os que dizem a verdade pode parecer mais fácil do que enfrentar os assassinos. Mas, no fundo, acaba encorajando-os a serem ainda mais perigosos.