O que querem os mapuche?
Poucos quiseram responder ou sequer ouvir essa pergunta desde o tempo em que o Chile foi colonizado pelos espanhóis, e parece que mais ainda depois de sua independência, em 1818. Mas os mapuche, povo original que já vivia nas terras que hoje são o Chile, jamais desistiram de levantar a voz e fazer suas reivindicações, apesar de poucos ouvirem.
Depois de séculos de dominação, usurpação de suas terras, debilitação das fontes naturais que usavam para viver e tentativas de acabar com seu idioma, o mapudungun, os mapuche do Chile finalmente chegaram a um lugar de importância política para a tomada de decisões no país. Por 96 votos, a líder ativista e doutora em linguística Elisa Loncón, 58, foi eleita líder da Assembleia Constituinte, que durante um ano irá redigir a nova Carta do Chile. A que está agora em vigor, promulgada pelo general Augusto Pinochet, em plena ditadura militar (1973-1990), sequer registrava que os mapuche, assim como outros 9 povos originários que vivem no país, existiam. E não lhes conferia nenhum tipo de soberania territorial ou cultural.
Quando os jovens saíram às ruas em 2019, e continuaram saindo por meses e meses, até que a Assembleia Constituinte fosse uma realidade aceita pelo poder tradicional, uma das bandeiras que levavam era a do reconhecimento dos povos originários.
Passado o momento histórico do último domingo (4), porém, muitos podem se perguntar, quem são e o que querem os mapuche?
Os mapuche, grosso modo, habitam as regiões centro e sul do Chile, além de parte da Argentina. Estão concentrados no que é a Araucania chilena e parte da Patagônia argentina. No Chile, são atualmente 2 milhões de indígenas. A comunidade mapuche argentina é menor, com cerca de 600 mil pessoas.
Seus objetivos e sua forma de chegar a eles diferem, mas seu objetivo é resgatar a soberania dessa nação indígena, e poder viver segundo costumes, idioma e organização política de acordo com suas tradições.
Loncón é uma líder mapuche moderada, ativista principalmente no que diz respeito à manutenção do idioma e da celebração da cultura. Tanto que se dedica a ensinar e fomentar que se fale o mapudungun. Porém, ela também entrou, logo nos primeiros dias, num tema mais polêmico, o dos chamados “presos políticos” mapuche, que ela pede que sejam libertados.
Os indígenas creem que se tratam de presos políticos porque o governo atual, do centro-direitista Sebastián Piñera, é hostil à causa mapuche e persegue os indígenas, usando contra alguns grupos de ativistas, por exemplo, a lei anti-terrorista. No sul do país, a maior parte da população branca também pensa assim, principalmente os donos de terra que se veem confrontados pelos mapuche que pedem devolução das terras que reclamam pertencerem a eles. Alguns grupos, em suas manifestações, são violentos e atacam fazendas, chegando a colocar fogo em propriedades com os donos dentro.
O tema é sensível e divide os chilenos. Afinal, trata-se de graves delitos. Também divide os mapuche. Tanto que Elisa Loncón, assim como outras lideranças, optaram pelo caminho democrático para participar da política e serem ouvidos. Mas existem grupos, como o CAM (Coordinadora Arauco-Malleco), que usam violência. Alguns chegam a defender delitos violentos contra os brancos considerados, por eles, invasores.
Há, também, outros meios que os mapuche usam para levantar sua voz, como realizar protestos e manifestações pacíficas, tentar eleger-se para cargos municipais nas comunidades em que vivem. Apesar de alguns agirem de modo violento, a maioria dos mapuche toma decisões de modo coletivo em enormes assembleias.
A propriedade da terra é um tema central. O CAM, por exemplo, defende uma demarcação do território mapuche, incluindo a parte argentina, e que este seja um país independente, não-capitalista, vivendo de acordo com a cultura ancestral. Outros grupos creem que isso pode ser algo mais flexível, que eles são mapuche, mas também chilenos. E gostariam apenas de incorporar a ideia do “bem viver”, como é conhecido o conceito do “sumak kawsay” ao sistema político de seu país. O “bem viver” é uma ideologia que adota o ponto de vista indígena para as questões da sociedade, e foi incorporado, por exemplo, nas Constituições do Equador, por Rafael Correa, e da Bolívia, por Evo Morales. O sumak kawsay certamente será uma expressão muito ouvida e debatida nos encontros constituintes.
Outros temas de interesse dos mapuche virão à tona nas sessões legislativas e nas manifestações mapuche nos próximos meses. Os indígenas querem o fim de uma segregação marcada pelo preconceito com relação a eles. A cultura elitista chilena costuma colocar os mapuche num lugar inferior, e por muito tempo eles estiveram praticamente invisibilizados. O movimento de 2019 levou a bandeira mapuche para o centro de Santiago. Nos últimos anos, jovens brancos adotaram outros símbolos e roupas mapuche como um sinal de que esperavam um novo tempo em seu país.
Também a pauta ambiental é importante para os mapuche, e defendida pelos jovens manifestantes. São históricas as brigas dos mapuche para garantir seu acesso à água e aos recursos naturais, em terras em que foram instaladas mineradoras que as secaram ou as envenenaram.
Os mapuche também pedem um reconhecimento de seus padecimentos desde a chegada dos espanhóis. O Estado chileno, entre 1861 e 1883, ordenou a “pacificação da Araucania”, o que afastou os mapuche de suas terras mais ricas para lugares mais inóspitos, onde conheceram a pobreza em que muitos ainda estão. Essa campanha militar do século 19 também assassinou a muitos. E não houve uma reparação histórica desses abusos. Essa reparação ajudaria, quiçá, num processo para chegar a uma sociedade mais igualitária. Hoje em dia alguém de ascendência mapuche num emprego bem remunerado ganha 60% menos que os brancos.
Há também casos de violência contra os mapuche, mais recentes, em que ainda faltam explicações, como o assassinato do ativista Camilo Catrillanca, 28, que foi baleado pelas costas quando fugia de um confronto numa manifestação.
A lista de itens é longa, e as diferenças, históricas. Mais uma vez é inspirador que o Chile esteja canalizando seus problemas e diferenças por uma via democrática, de diálogo, para a redação de uma nova Constituição. A outra alternativa inevitavelmente levaria a mais polarização e violência.