As várias vidas de Isabel Allende
Ser uma escritora e jornalista feminista no Chile dos anos 1970 e ter o mesmo sobrenome do presidente que foi derrubado por um golpe militar não era exatamente uma posição confortável. Longe disso. Os desafios, as tragédias e as conquistas da vida de Isabel Allende, 78, até hoje a autora latino-americana que mais vendeu livros no mundo (74 milhões de exemplares de seus 24 romances) são o tema da mini-série de 3 episódios “Isabel”, que está no Amazon Prime.
Embora siga a vida de Isabel Allende –que é filha de um primo-irmão de Salvador Allende– de modo cronológico, a obra faz vários flashbacks, inspirada na ideia de voltar ao passado e seus fantasmas por meio de espelhos, na toada de seu livro mais famoso, “A Casa dos Espíritos”, de 1982, que começou a escrever quando seu avô estava morrendo.
A série, de elenco e produção chilenas, faz uma fantástica e colorida reconstituição de época, mostrando o Chile dos anos 1970, suas roupas, carros e cortes de cabelo. Ao mesmo tempo expõe o embate entre os costumes de uma sociedade de tradição católica que vinha sendo desafiada pelo espírito setentista, o rock, o feminismo e o espírito revolucionário.
Allende (interpretada por Daniela Ramírez) aparece num primeiro momento como uma dona de casa que, quase casualmente, é chamada para redigir artigos sobre mulheres na revista “Paula” –que, anos depois, marcaria uma época. Só que os temas que vai escolhendo começam a mexer com a sociedade, como a infidelidade feminina e a crítica aos costumes masculinos. Atormentada pelo fato de seu pai ter abandonado a família quando ela era pequena –Tomás Allende era diplomata e a escritora nasceu quando ele estava em funções no Peru–, a autora questionava o formato das famílias tradicionais e o papel da mulher.
Todo a euforia da época da revista, porém, vira um trágico drama quando amanhece o dia 11 de setembro ano de 1973. Depois do bombardeio do La Moneda e o fim do governo Allende, Isabel, que não estava envolvida nas questões políticas do país, começa a ajudar pessoas perseguidas, até que ela mesma entra na lista da repressão. Com os dois filhos e o marido, foge para Caracas, onde sua vida pessoal dá uma guinada. Isabel se apaixona por um músico argentino e escapa com ele para a Espanha, para depois quebrar a cara e voltar arrependida.
A maior dor de sua vida, a morte de sua filha, Paula Frías Allende, aos 28 anos, permeia toda a série, refletindo no modo como a autora lidou, em sua obra, com os dramas familiares, a perda e a culpa. A própria autora confessou, em uma entrevista, que não pôde ver essa passagem da série, pela dor que ainda lhe causa. Paula também inspiraria Isabel a voltar a escrever depois do luto, e o resultado foi o livro “Cartas a Paula”.
Hoje radicada nos EUA, Isabel Allende lançou há pouco tempo “Largo Pétalo de Mar”, inspirado na viagem de mais de 2 mil espanhóis que foram ao Chile fugindo da Espanha franquista, num navio fretado pelo poeta e Nobel Pablo Neruda.