Teatro argentino luta para sobreviver na pandemia
Portas metálicas de lojas que faliram estão fechadas, cartazes de filmes que estavam em cartaz antes de a pandemia começar, rasgados, mas ainda colados nas vitrines dos cinemas. Livrarias e sebos atendem do lado de fora por conta das restrições de entrada nos comércios, pouca gente caminhando, mendigos nas esquinas pedindo trocados.
Assim está a avenida Corrientes, epicentro da boemia portenha, que em outros tempos reunia centenas de pessoas todas as noites. Elas a frequentavam em busca de diversão nos cinemas e nos teatros de rua, ou porque queriam comprar livros de madrugada, ou, ainda, encontrar um último bar ou restaurante aberto no amanhecer de um novo dia.
Os efeitos da pandemia do coronavírus, as restrições de uma longa quarentena e as atuais, ainda que mais flexíveis, calaram esse símbolo da cidade de Buenos Aires. Nas últimas semanas, o governo local, de oposição ao governo nacional, tenta reabrir os negócios ali, sob pressão dos sindicatos da gastronomia e do mundo do espetáculo. Já o governo nacional, temendo a disseminação de novas variantes do coronavírus nos grandes centros urbanos, resiste em permitir a retomada total das atividades no centro portenho. Detrás da queda-de-braço política, que tem como pano de fundo as eleições legislativas que ocorrem em novembro, há atores, produtores e diretores que insistem que “o show deve continuar”.
Um deles é o polêmico e renomado Luis Brandoni. O humorista, conhecido no Brasil por alguns dos filmes de que participa, como “A Odisseia dos Tontos” (2019) e “Minha Obra Prima” (2018), é um deles. Crítico do peronismo e da atual gestão de Alberto Fernández, ex-deputado opositor e militante da União Cívica Radical, Brandoni considera que a política de restrições e de confinamento é ineficaz e vem levando toda uma categoria à ruína, a de atores, diretores e funcionários dos teatros. “Se cumprirmos todos os protocolos, estou seguro de que ninguém vai se contagiar no teatro. E temos um montão de protocolos. O teatro alegra as pessoas, as faz pensar, é necessário para o espírito. A humanidade precisa do teatro há séculos, temos de continuar”, diz Brandoni à Folha, caminhando pela Corrientes, buscando onde comer algo já depois da função, entre os poucos lugares ainda abertos.
Na última quinta-feira (24), em sessão da obra “El Acompañamiento”, Brandoni, um dos principais atores do país, agradeceu o público ao final do espetáculo dizendo: “Não tenham medo, voltem aos teatros, chamem os amigos. O teatro está na alma de Buenos Aires e precisamos fazer com que Buenos Aires continue viva”. Foi aplaudido de pé. O público era majoritariamente maior de 50 anos, com muitos em idade mais avançada.
Atualmente, os teatros da cidade de Buenos Aires estão com permissão de funcionar com apenas 30% da capacidade das salas. Na entrada, toma-se a temperatura e se distribui álcool em gel. A sala não é arejada. Antes do início da sessão, um funcionário explica as regras aos espectadores, que se sentam com duas cadeiras de distanciamento uns dos outros: “Não retirem a máscara em nenhum momento. Quando a peça terminar, sairemos fila por fila, peço paciência a todos”.
A iniciativa de reabrir os teatros é vista com maus olhos por médicos e sanitaristas, num momento em que a Argentina já perdeu mais de 90 mil pessoas para o coronavírus. “Estamos operando no limite das unidades de terapia intensiva, não é possível fazer mais reaberturas”, diz Claudio Belocopitt, dono da Swiss Medical, um dos principais planos de saúde da Argentina. “Se algo já sabemos desta pandemia é que ficar em lugares fechados, com pouca circulação de ar e com outras pessoas é arriscado, ainda mais agora com as novas variantes”, diz o infectologista Carlos J. Regazzoni.
Brandoni não concorda, e defende que mais gente possa frequentar as peças. “Com 30%, mal cobrimos os custos da operação do teatro. Estamos vendo que, com o passar do tempo, mais gente vai perdendo o medo e vendo que, com protocolos, se pode continuar”, afirma. Já vacinado e recusando-se a ser chamado de negacionista do vírus, como dizem seus críticos, crê que “outras alternativas devem ser pensadas para a pandemia, não a de tirar a liberdade das pessoas”.
A peça com a qual está em cartaz, aliás, é sobre o tema da liberdade. “El Acompañamiento” foi escrita em 1981 pelo dramaturgo Carlos Gorostiza, quando a Argentina vivia um regime militar (1976-1983). A peça estreou no movimento Teatro Aberto, que reuniu vários autores, diretores e atores de teatro para mostrar seu desacordo contra a liberdade de expressão. Muitos terminaram presos. Embora não trate diretamente da ditadura, a representa na forma de como dois velhos amigos encaram a vida dentro de suas limitações. O personagem de Brandoni, Tuco, é um frustrado cantor de tango que passou a vida trabalhando em uma metalúrgica, mas ainda sonha em cantar para um grande público com uma orquestra. Sebastián (David Di Napoli), dono de um quiosque, tenta trazê-lo à realidade.
“A peça é um diálogo sobre a capacidade de sonhar e de almejar a liberdade. Não dá para comparar a ditadura com a pandemia, obviamente, mas creio que estamos também num momento em que precisamos valorizar a liberdade, fazer-nos pensar sobre o que está ocorrendo. Vou continuar lutando para que o teatro resista, porque é a alma de Buenos Aires”, afirma.