O Peru entre as más escolhas, ontem e hoje
“Talvez o destino do Peru seja sempre o de escolher entre duas desgraças”.
Não, a frase não foi dita neste processo eleitoral peruano, em 2021, em que dois candidatos despreparados para o cargo, pouco votados no primeiro turno, disputaram com uma campanha de baixo nível o posto de presidente do país.
Trata-se de uma fala do capitão Lorenzo Robles, personagem da série histórica “El Último Bastión”, produção da TV Peru em parceria com a Netflix, que conta a história da independência do país, cujos 200 anos serão comemorados no próximo dia 28 de julho. Entre outras coisas, com a posse do novo presidente.
Estamos em 1821, e Lorenzo é um soldado “realista”, ou seja, um “criollo”, descendente de europeu nascido nas Américas, que combate ao lado dos espanhóis contra os “patriotas”, aqueles que querem a independência. Seu irmão, Francisco, é um “patriota”, e as diferenças entre ambos marcam a trajetória decadente de sua família aristocrática na transição da colônia para o Peru independente.
Quando as tropas do libertador San Martín estão às portas de Lima, prestes a tomar a capital do Vice-Reinado do Peru, um dos mais importantes da Coroa espanhola nas Américas, o exército realista decide depor o Vice-Rei Joaquín de la Pezuela, por considerar que ele não tinha mais forças para defender o território. Porém, em vez de entregá-lo nas mãos dos patriotas, o confiam a outro “realista”, o general José de la Serna.
Justamente no dia da deposição de Pezuela, Francisco Robles, o irmão independentista, pergunta a Lorenzo, o “realista”: “Mas não é pior tirar Pezuela para colocar um outro realista no lugar? Não é melhor abraçar a causa da Independência?”. Lorenzo então diz a frase, que agora soa tão atual: “Talvez o destino do Peru seja sempre o de escolher entre duas desgraças”.
Apesar de tratar-se de uma ficção, a série trata com fidelidade os fatos históricos. A trama parte do núcleo familiar aristocrático dos Robles, cheio de conflitos. Além dos irmãos que discordam das soluções para o país, estão os pais, católicos e fiéis ao rei. Ele, porém, não duvida em passar a apoiar a independência com a decadência financeira da família. Ela esconde por anos que o marido teve um filho com uma escrava liberta, que agora ronda sua casa em busca de esclarecer a verdade.
Outro núcleo é o de um grupo de humoristas de rua, gente simples, mestiça, que se coloca ao lado da independência, sofre preconceitos, e tem de se virar em uma Lima conturbada, em que bombas de canhão anunciam a cada tanto a chegada das tropas do libertador San Martín. Há, ainda, o núcleo indígena, capitaneado por Justina, uma mulher mais velha que defende que se continue a falar o quéchua e a respeitar os deuses de seus antepassados. Seus filhos e netos são livres, mas são tratados com desprezo e preconceito pelos brancos, além de serem explorados no trabalho.
Trata-se de uma super-produção com excelente caracterização de época, os mercados de rua, a suntuosa Lima colonial, os fortes que a vigiavam, as roupas e as comidas são retratados de modo fidedigno.
Apesar da presença dos próceres San Martín, Monteagudo e Bolívar serem importantes, o foco central da série está na gente comum do Vice-Reinado e de como esta recebeu a independência. Não só politicamente, mas no que significou na mudança de costumes e de como se dariam as relações. Alguns problemas que existem hoje podem ser identificados, como o preconceito, a força como a moral católica abafa as culturas ancestrais, além do papel do jornalismo em informar e iluminar a realidade mesmo sofrendo diferentes tipos de pressão política.