Vacinar jogadores de futebol antes da população de risco?

Sylvia Colombo

Uma notícia escandalosa foi divulgada nos últimos dias. No mesmo momento em que o Cone Sul registra recordes de contaminações e mortes pelo coronavírus e a vacinação caminha de modo lento, a Conmebol anunciou, em modo de festejo, que vacinará 25 mil jogadores para viabilizar seus torneios. Isso mesmo. Serão 50 mil doses do imunizante do laboratório chinês Sinovac que irão proteger 25 mil atletas jovens e saudáveis, antes mesmo de que isso seja feito com grande parte da população de risco desses países, num momento em que temos UTIs saturadas e profissionais de saúde esgotados.

O meu espanto com essa notícia só fez aumentar quando me dei conta de que ela não parece escandalosa para muita gente…

A impressão é de que, quando falamos de futebol por essas bandas, há licença para tudo. Há pouco tempo, vimos outro exemplo, aqui na Argentina. Em novembro, estávamos em plena fase dura da primeira onda da pandemia, com restrições de mobilidade e de horários, até que morreu Maradona. Por um instante, tudo passou a ser possível e permitido. Aglomerar-se, juntar-se, circular sem máscara, gritar, abraçar, chorar junto. O governo até abriu as fronteiras do país, que até então estavam super controladas, para que jornalistas viessem, sem fazer teste de covid prévio. O próprio presidente Alberto Fernández abriu as portas da Casa Rosada para os torcedores e se jogou nos braços do povo, sem lembrar que havia meses vinha sendo duro e firme no discurso sobre a necessidade do distanciamento social.

Houve críticas? Sim, algumas, mas não foi quase nada perto do tamanho do fuzuê. A justificativa ficava no “Ah. Mas é o Maradona…”. Como se isso desculpasse tudo, até contagiar gente de modo irresponsável.

Outra dessas licenças irrestritas que os sul-americanos dão ao futebol se mostrou esses dias, com a falta de reação de torcedores, governos, jogadores e da sociedade em geral contra a indecente iniciativa da Conmebol. Tampouco parece ter chocado muita gente que um dos mediadores da negociação tenha sido um presidente, Luis Lacalle Pou, que ainda não conseguiu imunizar nem 50% da população do Uruguai e tem visto a curva de contágios e mortes em seu país disparar. E muito menos que outro incentivador dessa campanha tenha sido ninguém menos que o super-astro Lionel Messi, que mandou aos diretores da Sinovac três camisetas autografadas para agradecer a doação que “alegrou a família do futebol”, segundo as palavras da Conmebol.

Messi? Aquele que é idolo da molecada em todos os países da região? Sim, ele mesmo. Não lhe ocorreu pedir que essas vacinas fossem dadas à população de risco das “villas” argentinas. Nem aos profissionais de saúde de seu país, que estão à beira do esgotamento.

O que explica essa indiferença? Ouço de gente bem informada que “ah, mas o futebol entretém as pessoas na pandemia” ou “ah, mas o futebol justifica”. Como assim? Na Europa os grandes campeonatos continuaram a ser jogados com segurança e sem essa palhaçada de colocar os jogadores furando fila de vacinação.

Outro capítulo dessa mesma novela começará em breve, com a Copa América a ser jogada entre Argentina e Colômbia. A Conmebol também quer vacinar os jogadores das seleções, para que suas equipes europeias os liberem. Haverá corredores sanitários, bolhas e privilégios para jogadores, técnicos, dirigentes e, óbvio, amigos e familiares destes. Isso numa região desigual, pobre, em que a pandemia está descontrolada e criando novas variantes. Só quem não estará vacinado será o torcedor, que não poderá ir aos estádios e talvez tenha de estar também correndo atrás de trabalho e de recursos para ajudar a familiares contaminados.

Seremos todos cúmplices dessa aberrante falta de empatia?