Com livro ingênuo, Macri tenta voltar à política em ano eleitoral

A grande maioria de livros de ex-presidentes costuma ser elogiosa com relação à sua gestão. Se o de Mauricio Macri, à frente da Argentina entre 2015 e 2019, tem uma diferença positiva é a de fazer diversas autocríticas sobre o período em que um setor da sociedade alimentou a esperança de que houvesse uma enorme transformação na política e na economia, promessa que acabou sendo frustrada.

Em “Primer Tiempo” (ed. Planeta), Macri admite que a rapidez da retirada do cerco ao dólar, ocorrida nos primeiros dias da gestão, foi precipitada, e que deveria ter sido acompanhada por outras medidas. Diz que o discurso que usou, o de não culpar a gestão anterior do estado das finanças e sim fazer propostas para o futuro, não serviu. A polarização está tão viva no país que uma narrativa conciliatória não permitiu, segundo ele, que a população soubesse o quão quebrado estava o país e o quão dura era sua tarefa. Também afirma que gastou demasiado tempo em questões relacionadas à produtividade e à política externa, e que delegou a outros membros do governo a articulação política interna, e que por isso esta teria falido.

Por fim, admite ter falhado a estratégia de cooptar os peronistas moderados em torno de sua proposta. No livro, diz que alguns aceitaram num primeiro momento, mas logo o abandonaram porque deixar o peronismo significaria que perderiam diversos benefícios. “O kirchnerismo sequestrou o peronismo”, diz, ainda tentando atrair os peronistas não alinhados à ex-presidente Cristina Kirchner, também atual vice.

Nas últimas semanas, as desculpas pedidas por Macri à sociedade por meio desse mea culpa vêm sendo analisadas, debatidas, criticadas. Têm servido, também, para que o ex-presidente retome o diálogo com seu eleitorado, que vê honestidade em suas explicações.

“O senhor se sente frustrado por ter falhado e, com isso, permitido o retorno do peronismo?”, perguntou uma jornalista num programa de entrevista.

“O que te parece? Claro que sim, não trabalhei quatro anos para entregar o poder de volta para eles.”

Macri tem essa característica, em respostas rápidas, comete alguns “sincericídios”.

No livro, ele conta como foi a passagem do bastão e da faixa presidencial a Alberto Fernández. Na Argentina, é bastante incomum existirem transmissões de poder entre partidos opositores que ocorram em paz. Ao contrário, Macri quebrou uma tradição mais parecida a uma maldição, a de ser o primeiro não-peronista a terminar um mandato de forma democrática.

Foi onde apostou sua última ficha, como conta no livro. Aceitou a derrota como um democrata e decidiu comparecer à posse, abraçar o sucessor e desejar-lhe sorte, cumprindo com seu dever institucional, mesmo com a cara feia de Cristina Kirchner, e o canto da marcha peronista em alto volume como hostil trilha sonora.

Toda a simpatia que tentou mostrar nesse dia se desmonta, porém, com essa resposta. Na verdade, Macri estava enfurecido naquele dia. E começaria aí, também, a montar sua vingança, embora sempre repita que os peronistas é que são os vingativos da história argentina.

O título do livro, “Primer Tiempo”, mostra bem a que vem. Não só apela para sua identificação com o futebol (é fanático pelo esporte e foi presidente do Boca Juniors), como anuncia que vem aí um segundo tempo, talvez até com uma nova candidatura Macri.

O livro é fraco e infantil. Na falta de grandes feitos em seu mandato, Macri narra episódios desimportantes como se fossem uma saga digna de um filme. Como por exemplo quando conseguiu driblar o trânsito em Roma para chegar à tempo da cerimônia de investidura do papa Francisco.

Em outros momentos de “sincericídio”, fala de como sofre não ter podido mudar o país, e que isso só não é pior porque tem suas estâncias de fim de semana e suas possibilidades de passar o tempo que for sem trabalhar e jogando futebol com os amigos –a família de Macri é uma das mais ricas do país.

Mas, se a narrativa é ingênua, Macri não o é, e tampouco seu entorno. O livro chega às livrarias, e ele volta a estar no palco das atenções, justamente quando o país passa por um grave momento. Neste fim de semana, noticia-se que hospitais em Buenos Aires estão com as UTIs saturadas pela primeira vez. A pandemia se mostra mais agressiva nesta segunda onda do que no ano passado, e a quantidade de mortos por coronavírus se aproxima dos 60 mil. O governo, por não ter mais caixa, deixou de dar ajudas à população, o desemprego aumenta e a atividade comercial vai se estancando.

A popularidade de Alberto Fernández vem despencando. Faltam vacinas, enquanto políticos governistas são imunizados ilegalmente. Por fim, os argentinos começam a sentir que não há comando e que o ano de 2021 será dificílimo.

Haverá eleições legislativas no segundo semestre, e o grupo político de Macri, a aliança Juntos por el Cambio, liderada por ele e seu partido, o PRO (proposta republicana), pretende aproveitar esse mau momento do peronismo para retomar espaços no parlamento, voltar a crescer como força política e, em 2023, talvez voltar ao comando da nação.

“Primer Tiempo” apresenta vários problemas da gestão de Macri, mas tenta passar a sensação de que todos eles não são piores do que o que vem ocorrendo agora na Argentina. E que, num segundo tempo, ele saberia que erros não cometer e como voltar a apresentar sua proposta. “Às vezes é preciso dar dois passos atrás para dar um passo à frente”, repete o ex-presidente.

O segundo tempo do jogo político argentino recente, marcado pela polarização entre Macri e Cristina, pode estar mesmo por começar. Porém, além de dois times combalidos e desgastados, é preciso reforçar que o campo está todo esburacado, a bola está murcha, e a torcida, desanimada.