Era uma vez na Venezuela
Por que a Venezuela tem esse nome? A origem está numa observação de Américo Vespucio (1454-1512). Quando o explorador italiano chegou ao território que hoje conhecemos como Venezuela, reparou nas inúmeras casas dos indígenas que estavam em palafitas, sobre as águas. Segundo historiadores, Vespucio teria feito uma observação de que aquilo “se parecia Veneza”, porque era preciso usar barcos para ir de uma casa à outra ou para transportar alimentos. A partir daí, o território passou a ser apelidado de “pequena Veneza”. E, com o tempo, virou Venezuela.
A anedota histórica ajuda a entender e a dar mais drama à trama de “Once Upon a Time in Venezuela” (Era Uma Vez na Venezuela), filme que vem recolhendo prêmios e elogios em festivais e que tem tido estreias em lugares em que os cinemas já voltaram, como em Madri e outras cidades europeias. Também pode ser visto por streaming, por meio de colaborações para o “crowdfunding” para ajudar a pagar os custos que a produção teve (www.onceuponatimeinvenezuela.com).
O documentário acompanhou a vida dos moradores de um povoado em vias de extinção chamado Congo Mirador, localizado na beira do lago de Maracaibo. Ali, vive-se em casas de palafita, também nelas estão a escola local, os mercados de comida e demais comércios. Em barco, os cerca de mil moradores se deslocam. Sua principal atividade é a pesca. A vida é a de uma pequena comunidade, todos se conhecem, casam entre si (em geral muito jovens), e tem costumes tradicionais do país, como os concursos de miss, do qual participam garotas muito jovens.
Dirigido por Anabel Rodríguez, o filme tinha por objetivo, no início, tratar da expectativa dos personagens com relação à eleição legislativa de 2015, a que foi ganha pela oposição e trouxe esperanças para o fim do chavismo. Ao mesmo tempo, o povoado vinha enfrentando um problema grave, mas que, naquela época, ainda parecia ter solução. Devido à mudança climática e à falta de cuidados sanitários, o Congo Mirador estava cada vez mais seco, e em muitos lugares a mata descontrolada ia tomando o lugar das águas, trazendo insetos, ratos e doenças e abalando a principal atividade da região, a pesca.
Neste cenário, dois personagens são os pilares da história. A líder chavista local, Tamara Villasmil, uma engajada militante que crê de fato na “revolução”, tem bonecos de Hugo Chávez e pôsteres do ex-ditador pela casa. Convoca reuniões de moradores, leva comida e distribui benefícios do governo, entre eles celulares, para os moradores, pedindo em troca seu voto. “Ela de fato crê na revolução, e quer honestamente salvar seu povoado, mobiliza esforços, mas não sabe que seu modo de atuar é anti-democrático. Ela está iludida com as promessas do chavismo, como tantos foram e ainda são”, diz à Folha a produtora do filme, Claudia Lepage.
Uma das cenas mais impactantes que a têm como protagonista é a reunião que, depois de muito esforço, consegue ter com o então governador da província de Zulia (onde está o Congo Mirador), o também chavista Francisco Arias Cárdenas. Nela, pede que se faça algo para que o Congo Mirador sobreviva ao processo de sedimentação, que está fazendo com que o povoado seja tomado pela mata. O governador a trata muito bem, serve café da manhã, fala de mil outros temas, mas Villasmil sai dali de mãos abanando.
O povoado está dividido politicamente. O segundo pilar da história é Nathalie Sánchez, que é anti-chavista, não vê futuro para o regime, comemora a vitória da oposição naquela eleição, mas vai aos poucos se desiludindo com a possibilidade de uma mudança maior na Venezuela. O maior símbolo disso é a própria escola da qual é responsável. Suas estruturas estão desabando, os livros didáticos começam a mofar, parte do teto vai caindo. Ela quer ir embora dali com sua filha.
A crise da Venezuela é vista por meio desses moradores cada vez mais desiludidos e que vão deixando o Congo Mirador, carregando consigo suas próprias casas, transportadas em barco. As imagens do lugar, por outro lado, são belíssimas. Ainda nos bons tempos, as crianças nadavam, buscavam conchas e pescavam. Encontram tartarugas, brincam, e saem da água muitas vezes cobertas de petróleo. O que mostra mais uma contradição do drama venezuelano. Os habitantes da região do lago de Maracaibo, uma das maiores reservas petrolíferas da Venezuela, vivem a escassez de combustível que afeta todo o país.
Quando o filme começou a ser rodado, viviam no Congo Mirador cerca de mil pessoas. Hoje, o lugar está tomado pelo mato, e só há cinco habitantes, que são pessoas mais velhas que nasceram ali e já não querem partir. “Pensávamos que íamos contar uma história dramática, mas não imaginávamos um final como esse”, diz Lepage.