Quando um crime é o retrato de uma sociedade
A Argentina é famosa por seus crimes cinematográficos sem solução. Muitos têm elementos políticos e mostram tensões sociais. A maioria recebe uma cobertura midiática sensacionalista e, ao final, ficam como sagas de suspense em aberto, mas que entram para esse macabro folclore nacional. Quem roubou as mãos de Perón de sua sepultura? Quem derrubou o helicóptero que matou o filho de Carlos Menem? Quem matou (ou “suicidou”) o procurador Alberto Nisman, que tinha uma denúncia preparada contra a então presidente Cristina Kirchner?
Todas essas histórias seguem com final inconcluso, mas são excelente material para longas novelas de mistério.
Pois mais um desses casos sem solução, mas que mobilizam o país até hoje, acaba de chegar ao streaming no formato de um excelente documentário de suspense. Quem acompanhou ou leu algo sobre o “caso Belsunce” na época, vai identificar personagens e o passo-a-passo da investigação, e vai gostar da organização de informações que, na época, eram apresentadas de modo caótico. Quem não sabe nada sobre o caso, ainda assim vai se sentir atraído pelo suspense. E, mesmo de fora da Argentina, é possível identificar como a impunidade é algo comum nos sistemas judiciários da América Latina, principalmente quando os personagens da trama são pessoas ricas e com contatos e poder político.
“Carmel” (Netflix) conta mais uma história misteriosa ocorrida nos bairros privados que abundam na Argentina. Os chamados “countries” são condomínios fechados parecidos aos brasileiros, onde praticamente não há policiamento, além de segurança particular, e onde é muito fácil ocultar comportamentos que, do lado de fora, não seriam aceitos ou poderiam causar problemas diante das autoridades.
A escritora Claudia Piñeiro explorou o potencial dos “countries” para darem lugar a tramas tipo Agatha Christie em seu livro “Las Viudas de Los Jueves” (as viúvas das quintas-feiras), que virou também filme. Na obra, famílias abastadas que convivem no bairro fechado “Altos de La Cascada” são retratadas a partir de sua relação com o fato de terem sido encontrados, na piscina de uma das casas, três cadáveres.
A história que se conta em “Carmel” foi uma verdadeira novela, repetida dia e noite nos noticiários, e que surgia invariavelmente nas primeiras páginas dos jornais quase todos os dias naquele ano de 2002. Os editores de meios de comunicação e jornalistas aparecem no filme admitindo que a demanda por novidades sobre o crime era altíssima, entre outras coisas, porque o restante do noticiário era basicamente sobre a grave crise econômica que o país passava.
O “caso Belsunce” era a cruel distração de todos do drama do cotidiano de crise que a Argentina vivia.
A vítima nesse caso foi a socióloga María Marta García Belsunce, encontrada morta sozinha no banheiro de sua casa, num “country”, em 27 de outubro de 2002. A princípio, os familiares disseram a todos que foi um acidente, que María Marta teria, talvez, caído e batido a cabeça na banheira. Um primeiro relatório do médico que foi chamado confirmava isso. O marido, apressadamente, acelerou seu enterro, com o caixão fechado.
Até que algumas dúvidas começam a surgir, o corpo é desenterrado a pedido da investigação do caso. E qual não é a surpresa de todos ao encontrar-se com o fato de que María Marta havia recebido cinco tiros na cabeça. Que seu corpo havia sido arranjado, provavelmente com a cumplicidade de marido, irmãos e amigas de María Marta, para que os sinais de violência sumissem –até os furos das balas haviam sido preenchidos com uma cola usada para consertos caseiros.
O caso estourou como uma bomba. Os familiares de María Marta, se não tivessem eles mesmos a matado, no mínimo poderiam ser acusados de encobrimento. E várias pessoas parecem ter sido compradas para ficarem quietas, a começar pelo primeiro médico que a atendeu, por quem assinou a certidão de óbito falsa com a qual foi enterrada, a segurança local, e o próprio promotor que viu o corpo pela primeira vez e não disse nada. Mas depois passou a ser o principal defensor da ideia de que María Marta tinha sido morta pela família.
O marido da vítima, Carlos Carrascosa, levou anos sendo investigado, julgado, e acabou sendo preso e, também anos depois, inocentado. O caso, agora, tomou outro rumo. Igualmente de forma misteriosa, tantos anos depois, a polícia passa a investigar um dos vizinhos. Todos falam no documentário.
De todo modo, naquela época não se falava de “feminicídio” e eram tempos pré-“metoo”. Ou seja, a morte violenta e à queima-roupa de María Marta causava interesse geral, mas não a mobilização que hoje teria como um crime de gênero –todos os suspeitos e envolvidos diretamente no caso eram homens.
É curioso tentar descobrir, em cada depoimento, como cada um parece mentir mais que o outro. E também como as mulheres que estavam relacionadas a homens poderosos silenciavam-se para não perder seus benefícios. Isso fica claro numa das melhores cenas, quando uma das amigas de María Marta, numa acareação no tribunal, repete que tudo havia sido muito suspeito no modo como o corpo fora rapidamente encerrado no caixão e enterrado, e que ela desconfiava de algo. E outra das amigas a acusava então de estar revelando essas coisas só porque “não tinha marido, nem filhos, nem homem, nem nada a perder”. Um machismo de classe, entre mulheres, atuando forte onde havia tanto dinheiro envolvido.
É impossível dar “spoilers” neste post, pois até hoje não se sabe a verdade. O que faz de “Carmel” uma obra tão interessante para assistir é seu retrato da sociedade portenha de alta classe naqueles anos de crise econômica nacional, com tantas similitudes com a de outros países, inclusive o Brasil. O documentário ainda se mostra muito atual para mostrar que a impunidade dos poderosos ainda é algo muito comum na região.