Ángel Asturias renova perguntas aos ‘senhores presidentes’

A Guatemala reapareceu no noticiário nas últimas semanas, outra vez com cenas de tensão social. Houve manifestações pacíficas nas ruas, porém com alguns grupos violentos que invadiram o palácio do Congresso e colocaram fogo em algumas das salas. 

O caso causou preocupação na região. Não é de hoje que a sociedade está inquieta com uma sequência de presidentes corruptos, acompanhados de Congressos corruptos, e tendo de conviver com diferenças sociais históricas cada vez mais agravadas. Neste ano, em especial, com o impacto da pandemia e da passagem de dois furacões pelo país.

As crises recentes estão relacionadas à figura do presidente. Primeiro, foi Otto Pérez Molina (hoje preso, aguardando julgamento), o segundo, Jimmy Morales, que, para evitar ter o mesmo fim, dissolveu o tribunal que investigava crimes de corrupção entre altos funcionários. Já o atual, Alejandro Giammattei, na pior crise sanitária da história recente do país, decidiu enviar ao Congresso um orçamento que beneficia empresários amigos e retira verba de ajuda a vítimas da pandemia e dos desastres naturais.

Não são os únicos mandatários guatemaltecos a promover abusos, mas os mais recentes.

Em momentos em que o tema sobre a figura do presidente aflora na Guatemala, a memória nos traz um romance atemporal, que dialoga com os dias de hoje.

Trata-se de “O Senhor Presidente” (editora Mundaréu), escrito pelo prêmio Nobel guatemalteco, Miguel Ángel Asturias, em 1946, e que é considerado um pioneiro das chamadas “novelas de ditador”, que são várias na América Latina. Entre elas, “A Festa do Bode” (Alfaguara), de Vargas Llosa, “Yo, el Supremo”, de Augusto Roa Bastos, “El Recurso Del Método”, de Alejo Carpentier, e “O Outono do Patriarca” (editora Record), de Gabriel García Márquez.

A obra de Ángel Asturias (1899-1974), que foi censurada na Guatemala e ficou 13 anos sem poder ser lida, recebe agora uma nova edição comemorativa, lançada pela Real Academia Espanhola. Entra, assim, para a série de reedições históricas que a RAE promoveu de obras singulares como “Cem Anos de Solidão”, de García Márquez, “A Cidade e Os Cachorros”, de Mario Vargas Llosa, “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, e “A Região Mais Transparente”, de Carlos Fuentes, entre outras.

As reedições são artigos de coleção. Capa dura e anexos inéditos ou muito raros. No caso de “O Senhor Presidente”, estão ali textos do nicaraguense Sergio Ramírez, do peruano Vargas Llosa e do venezuelano Arturo Uslar Pietri (1906-2001).

Mas, de que trata “O Senhor Presidente” e o que o faz atual? A trama mostra em detalhes a personalidade autoritária do ex-ditador Manuel Estrada Cabrera (1898-1920). Nela, o pano de fundo é a crise da Guatemala no começo do século 20, enquanto, no poder, está um sujeito autoritário que não economiza na perseguição a seus opositores, com uso da tortura e das desaparições.

A sociedade surge não muito diferente da que existe nos dias de hoje, em que os indígenas ocupam lugar muito marginal e são discriminados, mas sua cosmologia e modo de ver o mundo têm uma forte influência cultural.

Ángel Asturias observa com atenção os povos originários e incorpora algo de sua linguagem. Por exemplo, o relato é cheio de repetições e reiterações, algo que era comum na narrativa das histórias no idioma que era falado pelos maias.

Com riqueza de detalhes, Ángel Asturias descreve os personagens daquela sociedade. Não é só o presidente quem é o investigado, de modo literário, mas também os trabalhadores, a classe dominante, os indígenas. Ainda, paira sobre o livro o passado maia e as perguntas que deixou para o presente.

O livro não está disponível em português, assim como as demais edições especiais da RAE. Mas pode ser conseguido, em espanhol, pelos sites de venda online mais conhecidos.