Piazzolla
Uma das cenas memoráveis do documentário “Piazzolla, Los Años del Tiburón” (HBO) é a gravação de uma conversa entre o compositor argentino e um radialista/crítico de música que atacava suas obras por “não serem tango de verdade”. Para quem tinha a ideia de que Piazzolla nunca ligou para esse tipo de simplificação, é engraçado e triste ao mesmo tempo ver o quão furioso fica o artista com o comunicador. “Vou até aí te pegar”, diz, furioso, Piazzolla. “Vou com os oito integrantes da banda”, ameaça. O outro simplesmente desliga na sua cara. Mais adiante, Piazzolla responde que sua música é, sim, tango, justamente por conta das experimentações que fez com o gênero e porque “não mexeu com sua essência”. Além disso, dizia, “o que faço é música de Buenos Aires. Mais de Buenos Aires não pode ser”, defendia-se.
O documentário de 2018 que agora estreia no “streaming” traz várias passagens inéditas da história de um dos maiores ícones da cultura argentina. O diretor Daniel Rosenfeld optou por um documentário menos tradicional, ou seja, sem as vozes de terceiros falando sobre Astor Piazzolla (1921-1992). Para isso, buscou e encontrou arquivos desorganizados e inéditos em que Piazzolla conversa por horas e horas com a filha, Diana. O papo, que foi a matéria-prima da biografia do pai escrita por ela, é também uma busca da filha pelo pai e vice-versa. Eles haviam estado anos sem se ver por conta da militância política desta, que saiu da Argentina, mudou de nome e passou mais de dez anos no México. Astor, em tour por esse país, decide passar uns dias com a filha e rememorar sua vida, misturando a história familiar com a musical.
O filme está armado em torno das histórias que Astor conta aí e das reações de seu filho, Daniel, o único sobrevivente da família, ao escutá-las. Tanto o pais como Diana estão mortos. Ela suicidou-se aos 65. Daniel ouve a voz dos dois comovido, e comenta as passagens visivelmente emocionado.
Está ali, contado na voz do próprio Piazzolla e com perguntas e comentários de seus dois filhos, sua trajetória de encontro com a música e de como ela foi transformando sua vida. Primeiro, foi uma obrigação, porque o pai queria que ele se transformasse em tocador de bandoneón, mesmo que Astor desconhecesse o instrumento. “Quando ele me deu aquilo, era como se estivesse me entregando um ventilador, eu não sabia para que era”, confessa. Com o tempo e as aulas, pagas com esforço numa difícil vida da família em Nova York, Piazzolla foi melhorando, até chegar ao ponto de decorar de memória os arranjos de músicos como Aníbal Troilo. Conhece, ainda, Carlos Gardel, para quem toca e que o elogia, quando ainda era um menino.
Depois, relata a vida entre Buenos Aires e Nova York, na qual a família sempre o acompanhou, passou por mil dificuldades, e conta com amargura que sua obra sempre havia sido mais reconhecida na Europa e nos EUA do que na Argentina. Aqui, era criticado por “distorcer” o tango e porque o tango que ele fazia “não se podia dançar”. Fora do país, era convidado a compor e tocar com os grandes de seu tempo. “Meu principal inimigo na Argentina foram os pés das pessoas, elas não queriam escutar, só dançar. E minha música é para escutar”, dizia.
Na vida pessoal, Piazzolla mostrou-se um tanto egoísta, como ele mesmo reconheceu. Não buscou o conforto da família e a levou consigo para todo lado sem ter dinheiro no bolso. Fez com que passassem necessidades reais. Até que abandonou a mulher quando começou a fazer sucesso. De Diana, se afastou quando ela começou a militância política nos anos 1970, e a Daniel, o puniu por uma frase em que ele criticou suas escolhas musicais.
O filme mostra cada fase de sua evolução musical e como impactou em sua vida pessoal, até o reconhecimento mais ao final da vida, quando por fim tocou no teatro Colón (o principal da Argentina) como artista reconhecido e disputado. “Foi uma vingança”, ri Piazzolla. Uma pena que isso ocorreu a pouco tempo de ele começar a ter problemas de coração, ficar fraco, e já não poder fazer as duas coisas que mais amava na vida. Uma, tocar o bandoneón, a outra, pescar tubarões. As duas atividades pressupõem uma força física que Piazzolla já não tinha, ainda por cima atrapalhado por uma falha na perna que trazia de nascença.
O documentário é um mergulho sentimental e artístico na obra de um gigante, mas que deixa uma certa angústia no final. Mais ou menos como acontece depois de escutarmos um belo tango.