Que ninguém limpe as paredes de Santiago
Desde 18 de outubro de 2019, o Chile vive um momento histórico. Começou com a onda de protestos que completou um ano na última semana, passa pelo plebiscito para aprovar ou não a redação de uma nova Constituição, neste domingo (24), e certamente continuará durante os próximos meses, ou anos, em que o país debaterá uma nova forma de organização do Estado e da sociedade.
Seja qual for o desenlace desse processo, um dilema já está no ar. O que fazer com a quantidade gigantesca de grafites, mensagens, bandeiras, pôsteres, cartazes tipo lambe-lambe e colagens com mensagens políticas que cobrem estátuas, muros de prédios públicos e particulares, comércios, pontes e bancos de praça?
Há quem defenda que tudo seja limpo, para preservar o belo patrimônio arquitetônico de Santiago. Em geral, esse grupo vê essas mensagens como vandalismo, sujeira, poluição visual. Há os mais neutros que sugerem que se tirem fotografias dessas imagens e que estas sejam exibidas como um retrato de época. E, por fim, os que creem que é melhor deixar assim, pois a cidade se mostra mais viva, como se estivesse dialogando com a sociedade em busca de uma saída de seus problemas. Sou das que opinam que se deve deixar tudo como está. Afinal, é a melhor maneira de entender o que pensam aqueles que se manifestam pró ou contra a atual situação.
“Fora Piñera”, “Mais lésbicas, menos policiais”, “fora, comunistas”, “liberdade aos presos políticos” são algumas das mensagens, acompanhadas de fotos ou desenhos de indígenas, mulheres, do compositor Victor Jara, assassinado durante a ditadura (1973-1990), além de mensagens escritas no idioma dos povos mapuches que habitam o sul do país. Há, ainda, imagens em branco e preto de manifestantes com um olho sangrando, em vermelho vivo.
Caminhar por Santiago e ver essas mensagens é uma das melhores maneiras de entender o que está acontecendo e o que se reivindica. Mais oportunidades para os jovens, melhores aposentadorias para os idosos, uma nova legislação sobre a reprodução feminina, representação para as minorias, a revolta contra os abusos da polícia. Passar os olhos por elas é entender o que vem movendo parte da sociedade chilena neste turbulento ano.
Mais, as mensagens visuais na cidade se conectam com uma tradição chilena. Pouco antes de começar a ditadura e mesmo durante o regime militar, havia grupos que se reuniam para pintar murais. Os primeiros surgiram ainda durante o governo do socialista Salvador Allende, representando os trabalhadores e indígenas do país. Depois do golpe que terminou com a democracia e com a vida de Allende, esses coletivos passaram a trabalhar na clandestinidade, usando a arte como uma forma de resistência.
Tanto naquela época como agora, as autoridades corriam para apagar as mensagens e intervenções. O caso é que, nos últimos meses, a profusão de manifestações foi tão grande que não há tempo para apagar tudo. A essa altura dos acontecimentos, talvez seja melhor deixar tudo como está.
É como se a cidade explicasse ao visitante o que vem acontecendo nela, ao mesmo tempo em que recorda diariamente seus cidadãos da lista de problemas que o país ainda têm para resolver.