Governo argentino cria ‘observatório da desinformação’ e levanta velha polêmica
Durante a gestão de Cristina Kirchner (2007-2015), o avanço contra os meios de comunicação independentes foi hostil. Criou-se uma polêmica Lei de Meios para tentar desarticular grandes conglomerados. Colocaram-se, ainda, de modo indireto, travas para a publicação de anúncios em grandes jornais e criou-se uma grande rede de jornais, revistas e sites cujas linhas editoriais estavam alinhadas ao governo, e que eram por ele subsidiados.
Desde que assumiu, no final do ano passado, Alberto Fernández tem se diferenciado neste ponto. Até aqui, nenhum ataque à liberdade de expressão tinha surgido. Até agora.
A Defensoria do Público, órgão do Estado criado em 2012 –na gestão de Cristina, hoje vice-presidente da Argentina– anunciou o lançamento de um “observatório da desinformação e da violência simbólica”. A apresentação de seu conceito é vaga: “trabalhará na detecção, verificação, identificação e desarticulação das estratégias argumentativas de notícias maliciosas e na identificação de suas operações de difusão”. O nome desse observatório é NODIO, um jogo de palavras juntando “no” e “ódio” (não + ódio).
A atual titular da Defensoria do Público, Miriam Lewin, reconhecida ativista dos direitos humanos e investigadora, diz que o objetivo é o de dar uma resposta “à preocupação das audiências pela circulação de mensagens carregadas de violência e de desinformação nas redes sociais e nos veículos de comunicação”.
Lewin, porém, não esclareceu como o Observatório irá combater a desinformação e o discurso do ódio. E a ideia vem provocando incômodo entre a oposição e diversos meios de comunicação, que veem aí uma possível criação de uma agência para controlar conteúdos. Que esteja vinculada ao Estado torna tudo mais grave.
“A internet deu mais potência à liberdade de expressão dos cidadãos”, diz Lewin. “Porém, isso também contribuiu para a propagação e a viralização da desinformação fomentada pelas lógicas de funcionamento das redes digitais, o que representa um problema para o desenvolvimento da vida democrática”, completa.
O debate sobre conteúdos online, desinformação, “fake news” já existia na Argentina, assim como em todo o mundo. Também há agências de checadores de informação independentes, como a renomada Chequeado. Agora, que o governo esteja assumindo esse trabalho para si é algo que levanta preocupações.
Silvina Giudici, presidente da Fundação Liberdade de Expressão, afirma: “Este é o primeiro passo para algo mais grave. É como um primeiro passo para um Ministério da Verdade. Se confunde o papel que o Estado tem sobre a liberdade de expressão e se tenta, a partir de um organismo estatal, decidir que informação é maliciosa e que informação é verdadeira ou falsa. Isso significa uma ingerência direta sobre princípios constitucionais, que claramente dizem que o Estado não pode intervir sobre a liberdade de expressão e de imprensa”.
Miriam Lewin defende que os problemas com a desinformação se agravaram na pandemia. “Em um tempo de isolamento, em que meios de comunicação digitais e redes sociais são nossa janela ao mundo, a difusão de mensagens favoráveis à ditadura cívico-militar, misóginas, sexistas, racistas, xenofóbicas, homofóbicas intoxicam o debate democrático e reforçam opiniões que promovem a polarização, cancelam a diversidade e podem conduzir, inclusive, à violência física”.
A ADEPA (Asociación de Entidades Periodísticas Argentinas) lançou um comunicado demonstrando preocupação com a iniciativa: “monitorar o pensamento não favorece a liberdade de expressão”, diz o texto. O organismo, que reúne os principais veículos independentes do país, diz que “uma coisa são as iniciativas provenientes da sociedade civil para promover a análise crítica dos conteúdos que circulam no ecossistema digital, outra muito diferente é que organismos públicos, que perfeitamente podem usar esses mecanismos de observação como uma espécie de censura indireta, o façam”.
O debate, conhecido em tantos os cantos do mundo, inclusive no Brasil, chega à Argentina em um tempo de polarização política intensa, com os anti-peronistas cada vez mais críticos ao governo Fernández-Kirchner. A criação do NODIO parece uma resposta do governo, embora ainda não se conheça ainda como irá funcionar na prática.
No ano que vem, há eleições legislativas no país. Por ora, vive-se o incômodo com uma quarentena que tem mostrado seu desgaste, e por outro lado, a séria preocupação com o rumo da economia. Os ânimos estão alterados, e, ao criar o NODIO, talvez o governo esteja colocando ainda mais lenha na fogueira de uma polarização que vai se intensificando.