Mataram ‘el Gordo’!

Os correspondentes estrangeiros que cobrimos a Venezuela acordamos com uma má notícia no último sábado (26). Embora cobrir Venezuela seja acostumar-se a ver coisas feias, sangrentas ou tristes com uma frequência mais do que desejável, às vezes a situação se aproxima demais de nós. “Mataram o Gordo”, me contou um colega que havia recebido a notícia na Cidade do México. Logo vieram mais detalhes de uma amiga em Caracas: tinha ocorrido uma briga de rua que se complicou e surgiu um sujeito armado que terminou dando dois tiros na cabeça do Gordo, como era conhecido Daniel Torres, 47.

Jornalistas que cobrem situações complicadas como zonas de guerra, países em conflito, lugares em que há repressão ou violência de bandos ou do Estado estão acostumados com o procedimento de recorrer a um “fixer”, como é conhecido alguém do local que seja de confiança, que tenha um veículo, que te ajude em coisas práticas (trocar dinheiro, conseguir um chip, um contato), que possa te levar a zonas perigosas ou a recorrer locais em que predomina a tensão.

Pois o Gordo era isso, um “fixer” ou “o motorista dos correspondentes”, como foi noticiado pela imprensa local. Mais do que um profissional que prestava esses serviços, o Gordo também era um personagem risonho, conversador, contador de histórias, que se sentava na mesa no fim do dia junto aos jornalistas para comentar os assuntos da jornada. Era, também, morador de uma zona conflagrada, onde predomina “el hampa” _na gíria local, as gangues criminosas que controlam os bairros pobres, cobram imposto dos pequenos comércios, registram os horários de circulação das pessoas. O Gordo vivia no Petare, bairro em que, infelizmente, “el hampa” predomina. Embora o assassino tenha fugido, testemunhas oculares contam que o Gordo ia a caminho de sua casa de moto, à noite, quando chocou-se numa esquina com um carro. O motorista saiu do veículo armado e, depois de uma breve discussão, atirou e matou o Gordo com dois tiros na cabeça.

Embora tenha trabalhado com diferentes “fixers” nas minhas viagens a Caracas, o Gordo me ajudou em algumas ocasiões, noutras compartilhei a mesa do fim do dia com ele e com colegas. O que mais me impressionou ao longo do fim de semana, nas homenagens que jornalistas faziam a ele nas redes sociais, era que todos o tratavam de amigo, de “pana” (na gíria local, companheiro), e que em todas as fotos ele aparecia sorrindo. Para chegar rápido e, mais importante, sair rápido de determinadas situações de violência, em Caracas, é sempre melhor estar de moto do que de carro. E o Gordo levava as pessoas em sua moto, em viagens vertiginosas, desviando de buracos, das quais muitos temos registro. Lembro que ele contava histórias ao dirigir, sem se dar conta que muitas de suas palavras, pela rapidez em que íamos, se perdiam no vento e não eram escutadas.

A morte do Gordo deixa tristeza em todos nós. E também um alerta. A crise política, social e econômica é o que mais analisamos e reportamos, mas nem sempre nos lembramos de mostrar que quem é vítima da violência generalizada _consequência da ditadura_ são os habitantes dos bairros mais humildes. Caracas é a capital latino-americana com mais assassinatos por cada 100 mil habitantes. Lidera o ranking com 76 mortos por 100 mil habitantes. Depois dela vêm a Cidade da Guatemala, com 42,5 por 100 mil e Tegucigalpa (Honduras), com 41 por 100 mil habitantes.

 

 

De certa forma, o Gordo ajudava a contar essas histórias. Uma tragédia que tenha terminado sendo vítima delas.