Quando Buenos Aires se rebela
“Recebi o Whats App do presidente avisando que ia retirar a verba de Buenos Aires às 19h29. E ele saiu para anunciar a medida às 19h30”.
Assim, com o despeito de um namorado que levou pé na bunda por mensagem de texto, foi que Horacio Rodríguez Larreta relatou como o presidente Alberto Fernández havia dado a ele a notícia de que deixaria de enviar 1% do repasse do Estado para a Cidade Autônoma de Buenos Aires, da qual ele é chefe de governo, e a repassaria à província de Buenos Aires.
E foi com esse gesto rápido que a aliança suprapartidária gestada por conta da pandemia do coronavírus se transformou em confronto. Voltando no tempo, lá em março, quando o problema sanitário começou, Larreta, que é da oposição (PRO, partido de Mauricio Macri), aceitou coordenar as estratégias lado a lado com Axel Kicillof, governador da Província de Buenos Aires e Alberto Fernández, ambos peronistas.
Os gestos de cordialidade, com poucas fricções, haviam se mantido até aqui. Alberto chamava Larreta de “amigo Horacio”, Kicillof divulgava fotos dos dois conversando amistosamente, como se, no fundo, não fossem os dois pré-candidatos, em pólos opostos, à sucessão presidencial de 2023.
Quando os policiais da província saíram para protestar, nesta semana, a situação ficou mais tensa, obrigando cada um a defender sua trincheira. Depois de uma ameaça de suicídio público de um oficial, bloqueios de pontes e vias essenciais na província, além de um protesto diante da residência presidencial de Olivos, com os policiais empunhando armas, a seriedade midiática do protesto escalou, e cada um saiu a garantir que bomba não estourasse em sua mão.
Fernández disse que atenderia pelo menos parte das reivindicações por salários, e que Kicillof, portanto, teria mais verba para atender os pedidos. Só deixou de explicar direito em público que esses recursos sairiam da Cidade de Buenos Aires para ir à Província. Foi a tal mensagem de Whats App que mandou a Larreta, curta e sem esperar resposta.
Mas ela veio na noite seguinte. Um Larreta de olhos raivosos e gestos determinados se diferenciou do até aqui suave “amigo Horacio”, que se senta a cada 15 dias ao lado dos líderes peronistas para definir as estratégias sanitárias de combate à pandemia. Larreta diz que o que o presidente fez foi algo “inconstitucional” e que ele tinha “todas as razões para estar bravo”. Mais, declarou que a Cidade de Buenos Aires (que tem status de província) irá à Corte Suprema para ter seu dinheiro de volta. Se ganhar, isso será uma derrota para o presidente, uma retirada das promessas aos policiais e a probabilidade alta de novos protestos. Se perder, ficou claro que a oposição que se alinhou com ele enfrentará de forma mais direta o peronismo.
Os acontecimentos desta semana são apenas mais um capítulo de uma longa história. A das diferenças abissais que existem entre o porto de Buenos Aires e o resto do país. Esta divisão marcou a história colonial do que hoje é a Argentina. O porto ia ficando mais rico, politicamente mais importante, as demais províncias tinham de acompanhá-lo, muitas vezes a contragosto.
No século 19, Buenos Aires era a capital da ilustração argentina, mas também o coração de seus problemas políticos. E palco dos embates violentos do resto do país, também. As forças se dividiam entre os chamados “federais”, caudilhos do interior, que lutavam por uma divisão do poder mais descentralizado, e de outro, os “unitários”, que consideravam que Buenos Aires tinha as ferramentas econômicas, institucionais e intelectuais para tomar as rédeas do país. De certo modo, essa cisão existe até hoje.
Claro, naquele tempo as coisas ainda se decidiam na ponta das espadas. Como em 1828, quando o governador de Buenos Aires, o “federal” Manuel Dorrego foi derrubado e assassinado pelo “unitário” Juan Lavalle. Dizem que essa foi uma das razões pelas quais José de San Martín, herói da Independência argentina, depois de muito resistir em deixar seu exílio na Europa para visitar de novo a Argentina depois de tantos anos, ao chegar aqui e ouvir falar da guerra fratricida, ficou tão decepcionado que deu às costas, para nunca mais voltar e morrer longe da pátria.
Os tempos agora são outros, claro, mas as feridas abertas permanecem no tempo. E, enquanto Buenos Aires e o resto da Argentina não encontrarem reconciliação, a “grieta” política continuará aberta.