Prisão de Uribe pode marcar fim de ciclo na Colômbia
A ordem de prisão ao ex-presidente de direita Álvaro Uribe, 68, determinada pela Corte Suprema da Colômbia na noite de terça-feira (4), pode marcar o fim de uma época na Colômbia. Uma época em que o Estado de Direito foi deixado num segundo plano, em que direitos humanos foram violados, em que houve corrupção e espionagem contra inimigos políticos e que um país que nunca em sua história tinha se curvado com tanta resignação ante um caudilho, acabou rendendo-se a este.
Uribe foi presidente durante oito anos, de 2002 a 2010. Com grande carisma, conquistou o apreço de milhões de colombianos. E continuou sendo o político mais influente do país até hoje. Prova de que seu governo foi um avanço contra as instituições, respaldado por parte da população, é que sua marionete que preside hoje a Colômbia, o pupilo Iván Duque, saiu correndo a fazer um pronunciamento em que elogiava a “inocência” e a “honra” de Uribe. Trata-se de algo no mínimo inesperado, além de altamente reprovável, que o líder do Executivo saia assim a enfrentar uma decisão do tribunal máximo de Justiça do país.
Uribe é amado e odiado na Colômbia, mas sempre representou uma referência.
Os que o amam creem que apenas com a mão dura que implementou no combate às guerrilhas e às facções criminosas é possível “colocar ordem” num problema ancestral do país: a violência. Também creem que o caudilho da Antioquia (seu reduto eleitoral, cuja capital é Medellín) é uma espécie de líder contra o “establishment” tradicional da Colômbia, por tantos anos governada pelas mesmas poucas famílias da elite de Bogotá. E que, nas relações internacionais, o correto mesmo seria resignar-se aos interesses norte-americanos na região, recebendo altas somas de dinheiro, teoricamente para combater o narcotráfico, mas que acabou em grande parte escoando-se via corrupção, e enfrentar-se com os países vizinhos. Uribe serviu de contraponto perfeito para a narrativa que fez com que o chavismo arrasasse com a vizinha Venezuela, antes seu aliado histórico.
Já aqueles que o odeiam sabem que a “mão dura”, que ele anunciava abertamente em seus cartazes de campanha, significaria inflar o Executivo e atropelar a Justiça. E que “colocar ordem” na violência da Colômbia não era atacar seus verdadeiros problemas, como a desigualdade no campo e as diferenças nascidas no século 19 entre conservadores e liberais (que deram lugar às tantas guerras tratadas de modo literário por García Márquez em “Cem Anos de Solidão”), depois agravadas pelo período conhecido como La Violencia e a guerra ao narcotráfico, no século 20. Sem ir à raiz dessas questões, Uribe escolheu a via mais direta e mais fácil. Armou fileiras de paramilitares, estimulou o enfrentamento bélico contra as guerrilhas, e, dentro deste abuso, cometeu outros abusos. Prova disso é um dos dez processos que há contra ele, o que o acusa de criar os “falsos positivos”. Neste escândalo, chamados a cumprir metas estabelecidas pelos altos comandos das Forças Armadas a pedido de Uribe, soldados assassinaram civis que, depois de mortos, foram vestidos de guerrilheiros e tiveram sua execução registrada como “queda em combate”. Ou seja, o Exército de Uribe matava camponeses, mas afirmava que estava eliminando a guerrilha.
Segundo a Procuradoria colombiana, houve pelo menos 2.248 execuções desse tipo durante o segundo mandato de Uribe.
Depois de sua Presidência, Uribe ajudou a eleger Juan Manuel Santos, um afilhado político que se virou contra o padrinho ao escolher um outro caminho para a Colômbia: o da negociação de um acordo de paz com as guerrilhas. Uribe o transformou em seu pior inimigo e considerou isso uma traição. Santos, depois de mais de quatro anos em diálogo com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) conseguiu o acordo e a guerrilha se desmobilizou. Trata-se de uma paz imperfeita? Sim, e há muito o que fazer para implementá-la de modo satisfatório. Porém, com ela, uma guerra foi terminada por meio do diálogo, e Santos saiu da história com um Nobel da Paz. Também tentou fazer o mesmo com a segunda maior guerrilha do país, o ELN (Exército de Liberação Nacional). Porém, seu mandato terminou antes que isso fosse possível.
Quando o uribismo voltou ao poder, com o presidente Iván Duque, em 2018, a implementação da paz com as Farc foi sendo freada e desestimulada, enquanto a mesa de negociação com o ELN foi derrubada de uma vez, trazendo novamente os atentados políticos para o cenário e levando mais instabilidade e guerra ao campo colombiano.
Já havia dez processos na Justiça com Uribe como alvo. Nunca foram adiante porque o caudilho sempre teve uma grande influência entre os magistrados do país, e também porque foi reelegendo-se senador _com isso ganhando um escudo parlamentário. Desta vez, porém, um desses processos está, enfim, avançando. E, embora o caminho ainda tenha de ser percorrido, é provável que Uribe tenha, por fim, de prestar contas diante de um tribunal.
A causa que conseguiu vencer os obstáculos foi aberta em 2012, quando o então senador de esquerda Iván Cepeda apresentou evidências de que, em uma propriedade da família de Uribe, havia sido criado um grupo paramilitar na década de 90. Na ocasião, Uribe era governador da Antioquia. As fotos e os depoimentos colhidos na investigação serviram para armar o processo. Porém, de modo inesperado, alguns dos personagens que tinham testemunhado contra Uribe voltaram atrás e mudaram sua declaração. A Justiça passou a desconfiar de que tinham sido comprados.
A decisão da prisão de Uribe não tem precedentes na história da Colômbia. O líder do Centro Democrático, partido que governa o país, e que travou a paz na Colômbia durante mais de uma década, agora terá de explicar e justificar seus métodos. Tomara que, depois deste processo, avancem aqueles que o acusam de espionar políticos e jornalistas, de receber suborno em superfaturamento de obras públicas, além do que trata dos “falsos positivos”. A Colômbia merece conhecer a verdade.
Esta é a oportunidade que o país tem de fechar esse ciclo e de iniciar outro que mire a reconciliação da sociedade. Só então será possível atacar de fato a desigualdade e os desgastes econômicos provocados pela guerra, recompor a Justiça e assumir sua responsabilidade no agravamento da crise na Venezuela.