Peronismo mostra fissura justo quando a pandemia se agrava

Nos próximos dias, o governo argentino deve decidir se continua com o plano de reabertura da economia e flexibilização da quarentena, ou se recua. Se olharmos apenas para os números da pandemia do coronavírus e ouvirmos apenas as opiniões dos infectologistas, o correto parece ser recuar, e de modo urgente. O país começou a ter mais casos diários que o México, a bater seu próprio recorde cotidiano de mortes, ultrapassando pela primeira vez os mais de 100 por dia, e o problema na região metropolitana de Buenos Aires, onde se concentram mais de 90% dos casos, só piora. O governo diz que a ocupação das UTIs, nesta zona, é de 74%, mas empresários do setor privado de saúde dizem que isso não é verdade, e que esta cifra já passou de 85%.

Por que, então, tanta hesitação em restringir novamente a mobilidade e insistir no isolamento? Porque já não parece haver mais capital político para pedir que as pessoas fiquem em casa. Depois de quase 150 dias de confinamento, grande parte dos habitantes da capital do país já não respeita mais a quarentena. Os controles afrouxaram, as avenidas estão com engarrafamentos, há festas clandestinas ocorrendo em casas ou em lojas fechadas, há comércios funcionando por detrás das portas metálicas e gente fazendo piquenique nos parques. Em vez de melhorar a comunicação com a sociedade, o governo agora se entretém com outra coisa: armar intrigas políticas.

No começo da quarentena, tudo parecia harmônico. Os três principais atores das decisões _o presidente Alberto Fernández, o governador da província de Buenos Aires, Axel Kicillof (ambos peronistas), e o chefe de governo da cidade de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta (que é da oposição)_ trabalharam lado a lado e não deixavam de mostrar sinais de respeito uns aos outros em público. Há algumas semanas, começaram as fissuras entre eles. Larreta quer reabrir tudo, Kicillof não. Fernández, insistindo em seu perfil moderado, ia equilibrando as coisas.

Agora, entramos num novo estágio, muito mais grave e perigoso se olharmos para a história argentina em retrospecto. Os peronistas estão se desentendendo entre si. E, quando isso acontece, costuma ser um problema para o país. O racha, ou, como vem sendo chamado, de modo eufemístico, “fogo amigo”, ocorre nada mais nada menos do que entre o presidente e sua vice, Cristina Kirchner.

Todos sabem que Cristina preferiu não se candidatar à Presidência no ano passado por conta de sua alta taxa de rejeição, mas que segue sendo a figura central do peronismo. Escolheu Fernández, que tem perfil de dialoguista, de um político que se adapta às dificuldades e que apara arestas. Ganhou a eleição. E, para o princípio da pandemia, foi um líder ideal, principalmente porque a Argentina começou lidando bem com a situação de emergência. Agora, que a crise econômica e social vai se fazendo mais intensa, e que os números da pandemia já não são os melhores, o desentendimento começou. E, quando há desentendimento, a polarização aparece.

Não apenas Cristina vem se fazendo presente, por meio de tuítes e de uma atuação mais enérgica na pauta do governo e da Justiça, como seu arqui-rival, Mauricio Macri, que se pronunciou ao lado dos anti-quarentena e fazendo críticas à atual gestão. Se essa polarização não é boa para o país, muito mais nociva é a fissura interna que está surgindo dentro do peronismo, e que parece inevitável. Isso porque o peronismo, por si mesmo, é um movimento parecido a uma religião, e portanto não pode ter dois ídolos de uma só vez. Com o passar do tempo, Cristina vai surgindo como a pessoa que está de fato comandando o país, e Alberto vai perdendo a confiança dos argentinos, justamente porque é moderado, num espaço político em que não existe a moderação, em que os líderes se destacam por serem únicos, com boa retórica popular e carismáticos. Fernández não é nada disso, Cristina, sim.

Cristina se apóia em fieis seguidores, que são mais radicais do que os “albertistas”. Entre eles, além de Kicillof, está Sergio Berni, o ministro de segurança de Buenos Aires, que age como uma espécie de xerife do kirchnerismo, e que tem tomado protagonismo na luta contra o coronavírus no “conurbano”, com estratégias polêmicas, como cercar favelas e tomar armas para defender o trânsito de ambulâncias. Fernández tenta esconder que exista um conflito, mas tem pouco mais em que se apoiar. Sua alta popularidade estava vinculada ao bom desempenho ante a pandemia. Agora que isso já não está ocorrendo, tem de um lado o opositor Larreta, que quer passar a priorizar a reabertura econômica, e, de outro, Cristina, que se cansou do comportamento democrático e institucional de Fernández e quer “tirar da foto” Larreta, assim como impedir o retorno de Macri aos holofotes. Fernández ainda poderia se apoiar num trunfo: conseguir renegociar a dívida externa, mas está perdendo nesse flanco também.

Curiosamente, justo quando o coronavírus está chegando com mais força ao país, em vez de encontrar uma classe política unida e com uma estratégia única contra o inimigo comum, o que encontra é a cizânia. Cada um tentando salvar o capital político que lhe sobra, defendendo seus interesses e de olho nas próximas eleições (a legislativa no ano que vem e a próxima presidencial em 2023, em que Larreta e Kicillof são pré-candidatos).

Parece um pouco a série “Game of Thrones”. Justamente quando “o inverno está chegando”, ou seja, o vírus com toda sua força, os poderosos do país estão preocupados com coisas menores, como seus espaços de poder e as vaidades pessoais.