30 anos sem Manuel Puig
Na entrada da cidade de General Villegas, no interior da província de Buenos Aires, há um imenso cartaz que diz: “Terra do escritor Manuel Puig”, ao lado de um retrato do autor de “Boquitas Pintadas” e “O Beijo da Mulher Aranha”. O sinal de reconhecimento, porém, soa irônico para quem conhece sua biografia. Puig, após ser criticado por moradores da cidade que se sentiram mal representados ou distorcidos em suas obras, nunca mais voltou ao local. O mesmo fez com a própria Argentina, país em que nasceu, mas que abandonou quando, nos anos 1970, foi perseguido pela Triple A (esquadrão da morte que obedecia ao governo de Isabelita Perón).
Nesta semana, quando se completam 30 anos de sua morte, a realidade já é outra. General Villegas esteve em festa (ainda que virtual), com lembranças e eventos relativos à data, como ocorre a cada ano. Conhecido por seu vanguardismo e pelo cruzamento de gêneros que realizava em sua obra, assim como pela inovação da estrutura narrativa da literatura argentina, Manuel Puig (1932-1990) teve um reconhecimento tardio na Argentina.
Escritor nômade, com sua Olivetti portátil, Puig viveu em Roma, em Nova York, em Londres, no Rio de Janeiro, em Estocolmo e em Cuernavaca, no México, onde morreu aos 57 anos. Em suas obras, inspirou-se em personagens do submundo, em conversas que escutava entre desconhecidos e até mesmo em histórias contadas a ele por pedreiros e trabalhadores do Rio de Janeiro.
Não se pode dizer hoje que Puig é um autor minimizado. Na atualidade, encontra-se no cânone da literatura argentina. Mas não foi assim enquanto o escritor era vivo. Sentia-se deslocado, não se identificava com bandeiras políticas nem com gêneros literários. Chegou mesmo a ser ridicularizado num concurso editorial espanhol pelo Nobel peruano Vargas Llosa. Foi diminuído ao ser considerado um escritor “folhetinesco”, algo que ele não considerava que fosse negativo. Em constante conflito com a sua identidade, com o tratamento que recebia em seu país e com a hostilidade que sentia por conta de sua homossexualidade, Puig transformou seu sofrimento em literatura, espaço onde se mostrou livre do medo e dos possíveis julgamentos.
Puig odiava alguns elementos essenciais da cultura argentina, e especialmente da vida em Buenos Aires, cidade grande para onde se mudou, ainda adolescente, para estudar. Acreditava que a psicanálise, tão popular ali, era a responsável por “haver matado o romance do século 19” e, que, em seu país, era um vício da classe média. Também era extremamente anti-peronista, chegando a desfazer laços de amizade e afastar-se de pessoas que se mostravam apoiadoras dessa corrente política.
O exterior foi sempre sua casa, embora em suas obras a Argentina e suas contradições tenham estado sempre presentes. Sua primeira paixão foi o cinema, que começou a frequentar com a mãe ainda menino. A única sala de exibição de General Villegas era a do Cine Teatro Espanhol, e Puig esperava com paciência a lentidão das trocas na programação para ver as novidades. Aos poucos, por onde viveu, foi acumulando uma videoteca de fitas de VHS e livros sobre o tema. Porém, se deu conta, ao tentar escrever seus primeiros roteiros, que seu ambiente de criação, de fato, era a literatura.
Puig ia vivendo de um lugar a outro com trabalhos temporários. Chegou a ser garçom na Europa, professor de inglês e espanhol, e funcionário do aeroporto JKF, em Nova York. Foi se acostumando às mudanças contínuas, mas mantinha com amizades literárias e com a mãe, na Argentina, uma intensa correspondência. Parte dela está reunida nos dois volumes de “Querida Família”, pela editora Entropia, da Argentina. Ali há observações da vida nesses países, e mostra que no Rio de Janeiro foi feliz, embora com muitos altos e baixos.
Um de seus grandes sucessos foi “La Traición de Rita Hayworth”, onde surge uma adaptação de sua cidade-natal, rebatiza com o nome fictício de Coronel Vallejos. Trata-se de sua obra com mais experimentações, e com elementos do cinema no formato, como a ideia de montagem. Os elementos do folhetim e da linguagem televisiva são usados de modo aberto e inovador. Algo que não foi bem visto por vários críticos. Na Europa, foi publicado com elogios pela Gallimard (França).
Na Argentina, uma de suas obras mais conhecidas é “Boquitas Pintadas”, também escrita em formato folhetinesco, e que descreve a relação de um homem com três mulheres. A obra que causou sua despedida da Argentina, porém, foi The Buenos Aires Affair, que foi proibida pelo governo. Puig também recebeu, então, as ameaças da Triple A, e decidiu deixar de uma vez o país.
Foi no exílio no México que terminou “O Beijo da Mulher Aranha”, contando a história de dois prisioneiros que dividem uma cela na Argentina, durante o último governo do general Juan Domingo Perón, nos anos 1970. Um deles era um guerrilheiro de esquerda e, o outro, um homossexual envolvido em delitos com menores de idade. No Brasil desde 1980, acabou tendo o romance adaptado para o cinema por Hector Babenco (1946-2016). No elenco, estavam William Hurt, Raul Julia e Sonia Braga.
No Brasil, escreveu ainda mais dois romances, “Sangre de Amor Correspondido”, e Cae La Noche Tropical”, ambos inspirados em personagens e histórias que viu e ouviu no Brasil.
Era um militante dos direitos dos homossexuais e, em seus escritos, deixou claro que o projeto revolucionário das guerrilhas e dos movimentos de esquerda na Argentina não tinham sua simpatia porque não incluíam essa preocupação em sua agenda. Sentia-se incompreendido e não representado nem pela direita nem pela esquerda em seu país. Hoje, curiosamente, livros como “Boquitas Pintadas” integram o currículo de leituras obrigatórias nas escolas.