‘Se estivesse vivo, Carlos Gardel estaria fazendo lives’, diz historiador

“Era uma pessoa muito atenta às novidades e foi um pioneiro. Um dos primeiros artistas a realizar videoclipes na América Latina, estava sempre muito ligado nas novidades tecnológicas. Quando esteve em Barcelona, queria provar o microfone elétrico, gostou tanto que regravou, com ele, várias canções, em busca de um registro de melhor qualidade. Por conta disso, acho que se estivesse vivendo esses tempos de pandemia e quarentena, Gardel estaria fazendo lives e atividades por Zoom”, conta o historiador Felipe Pigna, 61, que lançará em novembro, na Argentina, a biografia do tangueiro, cujo título é “Volver”, pela editora Planeta.

Pigna é um autor best-seller, conhecido por várias biografias (“Evita”, “La Voz del Gran Jefe – José de San Martín”) e livros de divulgação histórica, como “Los Mitos de la Historia Argentina”, em cinco volumes, e “1810”, sobre o processo de independência do país. Em uma conversa com jornalistas estrangeiros, Pigna falou sobre tango, pestes e peronismo.

Para ele, Carlos Gardel (1890-1935) “anda um pouco esquecido” pela cultura e pela historiografia argentina. Daí a ideia de dar o título de “Volver” (que significa “voltar”, em português, e que é o nome de um de seus tangos mais famosos) a essa biografia histórica, que retrata o personagem e seu tempo. “Gardel viveu numa época de muita convulsão no mundo e na Argentina. O da virada do século, da Primeira Guerra e da Gripe Espanhola. Além disso, viveu de modo muito intenso seus 44 anos de vida, pois não chegou a completar 45”.

Gardel morreu de modo trágico, em um acidente aéreo, em Medellín, quando seu avião estava decolando. Por conta disso, o tango é muito popular hoje também na Colômbia. No último dia 24, completaram-se 85 anos de sua morte.

“Considero que foi um revolucionário no gênero, ao dar qualidade única a algo que já existia. Era um letrista e um intérprete muito sofisticado. Até 1917, porém, tinha se dedicado mais ao folclore. O tango chega depois em sua vida, pois não era um gênero muito bem aceito em vários âmbitos. Gardel deu ao tango um status novo, mais elevado, passou a ser apreciado por distintas classes sociais. Além disso, o popularizou com seus filmes e viagens à Europa e aos EUA”, resume Pigna.

Pigna lembra que Gardel também viveu uma pandemia, a da Gripe Espanhola, em 1918, que atingiu bastante a Argentina, principalmente nas províncias do norte. “Em Buenos Aires, Gardel ficou impedido de atuar porque os teatros e locais de espetáculos públicos foram fechados”. Situação dramática similar têm ocorrido nos dias de hoje com os artistas e bailarinos de tango, que não estão podendo se apresentar por conta da pandemia do coronavírus.

“Este é um momento difícil para a cultura argentina em geral, pois o teatro, o tango e os espetáculos ao vivo são parte importante de nossa vida. Mas os artistas argentinos sempre se viraram diante das adversidades. Estamos assistindo a uma reação forte por meio de apresentações por streaming de obras, shows e monólogos. A arte argentina atravessou ditaduras, censuras e pestes por meio de alternativas criativas. Creio que desta vez não será diferente.” Após essa entrevista, o governo argentino liberou as apresentações por “streaming” também de obras coletivas, tanto shows como espetáculos de teatro.

O historiador se mostrou esperançoso com relação ao modo como a Argentina está enfrentando a pandemia. “Temos uma presença do estado mais marcada. Se estivéssemos num governo não peronista, creio que tudo ia ser pior”. E comparou a atual pandemia com a Gripe Espanhola. “Foi claramente pior, pelo número de mortos no mundo todo e pelo fato de os países não estarem nada preparados. Havia, ainda, uma sensação de fim de mundo muito mais intensa do que hoje.”

Em Buenos Aires, uma peste anterior já tinha mudado muito a cidade, a epidemia de febre amarela, em 1871, que transformou a capital. Bairros inteiros foram cercados, houve culpabilização dos imigrantes, um clima de muita tensão social e de muito medo no ar. Além disso, foi necessário construir um novo cemitério e muito grande, o da Chacarita, para dar conta do fluxo dos enterros.

“Foi um período terrível, e a doença atingiu primeiro os bairros mais ricos, que nesta época eram os mais próximos à Praça de Maio, como Santelmo e Monserrat, onde havia grandes mansões. Essas famílias decidiram migrar, sair de Buenos Aires, e essas grandes casas acabaram virando ‘conventillos’ (espécie de cortiço), habitados por várias famílias, menos abastadas. Mudou o mapa social da cidade. Além disso, foi um período de preconceito, de racismo, um grande trauma histórico.”

Sobre o atual presidente, Alberto Fernández, Pigna o classificou como um “peronista moderno”, que “carrega a genética peronista de querer o estado bastante presente na economia e no funcionamento do país. Ao mesmo tempo, é mais dialoguista que os peronistas clássicos. É  mais conciliador, o que é um bom perfil para esse momento”, conclui.