Nunca desistir de buscar a verdade: lema de Ayotzinapa que devia ser universal
Esta é uma história de gente que não desiste.
Por um lado estão famílias, amigos e associações civis que, desde o dia 26 de setembro de 2014 querem saber o que aconteceu com 43 jovens, alunos da escola rural Raúl Isidro Burgos, em Ayotzinapa (estado de Guerrero), que desapareceram quando tentavam viajar para a Cidade do México para participar de uma manifestação. Foram interceptados pelas forças de segurança e entregues a um cartel local, o Guerreros Unidos. O resultado de investigações preliminares indica que foram mortos nessa ação conjunta. O caso evidenciou como autoridades locais e cartéis de narcotráfico estão intimamente ligados no interior do México, onde prefeitos e outros representantes se elegem com o dinheiro vindo da droga e, por sua vez, fazem vista grossa às atividades ilícitas da facções criminosas.
Por outro lado estão peritos mexicanos e organizações internacionais que foram chamadas pelas famílias para ajudar na busca e na identificação de prováveis restos humanos desses garotos. Uma delas é o laboratório genético da Universidade de Innsbruck, na Áustria. A outra, uma das mais reconhecidas do mundo nesse tipo de trabalho, é a Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF). “Nós nunca desistimos, e as famílias dos desaparecidos de Ayotzinapa também nunca desistiram e nossa busca vai continuar”, contou à Folha, por telefone, desde Nova York, Mercedes Doretti, que é uma das fundadoras e diretora para as atividades da equipe na América do Norte e Central.
Na última terça-feira (7), um pequeno avanço foi feito, mas que deve ser celebrado como grande vitória, ao mesmo tempo que confirma essa tragédia tão grande. Foi realizada a terceira identificação de um dos estudantes mortos naquela noite. Trata-se de Christian Alfonso Rodríguez Telumbre, que tinha 19 anos. Um dos fragmentos de seus ossos do pé foi encontrado, levado aos laboratórios forenses, e confirmado pela EAAF como sendo de Christian.
Onde? Não no lugar em que o então governo de Enrique Peña Nieto havia dito que os estudantes teriam sido queimados, no lixão de Colula, e sim a 800 metros dali, num local chamado de Barranca La Carnicería. Isso, por si só, ajudou a derrubar a versão oficial dos fatos que havia sido apresentada, além de abrir novas linhas de investigação sobre o que poderia ter ocorrido naquela noite e de onde poderiam estar os outros restos dos estudantes.
A notícia é uma vitória política da gestão do atual presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, que elevou a busca pela verdade e pela localização dos estudantes a uma das prioridades de seu governo, enquanto seu antecessor, Enrique Peña Nieto, além de ter oferecido uma explicação cujas evidências não corroboraram, também deixou o assunto de lado. O tema Ayotzinapa ajudou a desgastar muito sua imagem pública, pois gerou imensos protestos no México e deu projeção internacional aos abusos do poder aliado ao narcotráfico que ocorrem quase que diariamente no interior do país.
“A nova administração mudou tudo. Nosso trabalho no México não era desejado por Peña Nieto. AMLO (como é conhecido) nos dá mais autonomia, mais condições de trabalho e colocou pessoas qualificadas e interessadas em resolver a questão adiante do caso”, conta Doretti.
A EAAF está acostumada a grandes desafios. Fundada em 1984 para identificar vestígios humanos de vítimas da repressão encontrados depois da ditadura militar argentina (1976-1983), trabalha até hoje com restos de desaparecidos que ainda aparecem em valas comuns, em praias do Rio da Prata (onde muitos deles foram jogados pelos “voos da morte”). Seu trabalho técnico é reconhecido internacionalmente. Trata-se de uma fundação independente e apartidária, sem fins lucrativos.
Embora acostumados a trabalhar com vestígios encontrados décadas depois da morte das pessoas, Doretti conta que, no caso de Ayotzinapa, embora só tenham transcorrido seis anos, as dificuldades dos peritos são grandes, porque esses restos estão sendo encontrados em tamanhos muito pequenos e passaram pela exposição a altas temperaturas. A EAAF não faz especulações, mas é possível, por exemplo, que, diferentemente do que diz a versão oficial, os estudantes podem ter sido levados a lugares diferentes e sido mortos em circunstâncias distintas, antes de serem queimados. “A exposição a altas temperaturas dificulta muito, até mais que a passagem do tempo, para que possamos reunir material suficiente para uma identificação. No local em que encontramos os restos de Christian havia mais de 100 fragmentos, mas inferimos que não devem ser de mais de duas pessoas”. Onde, então, estariam os restos dos outros 40, uma vez que outros dois já foram identificados e não estavam nesse mesmo local?
Esta é uma saga ainda em aberto, mas que deixa um assunto para a reflexão. Há quem pense que atrocidades cometidas no passado devam ser esquecidas, que a página deve ser virada e os olhos devem ser postos no futuro. Um exemplo disso ficou claro quando o então procurador-geral do México, Jesús Murillo Karam, disse a jornalistas, apenas 33 dias do desaparecimento dos estudantes de Ayotzinapa, que estava cansado, sem dormir, e que era preciso deixar o assunto de lado um pouco, resumindo tudo na infame frase: “Já me cansei”.
Outro exemplo está no fato de a lei de anistia para crimes em ditaduras ainda existir em alguns países. Enquanto em alguns vai virando letra morta, como no Uruguai e no Chile, noutros ainda persiste, ainda que não tenha fundamento jurídico internacional, como no Brasil. Os argentinos, neste quesito, são vanguarda. Foram os primeiros a derrubar essas leis, em buscar saber o que houve durante os regimes militares e, por conta disso, abriram espaço para a fundação de organizações como as Avós da Praça de Maio, que ainda hoje buscam _e encontram_ filhos de desaparecidos apropriados por famílias de militares, e como a EAAF. Os peritos argentinos trabalham com a identificação de fragmentos de vítimas da repressão do estado até hoje, quase 40 anos depois do fim da ditadura.
Além disso, exportam sua expertise para ajudar a encontrar a verdade sobre a desaparição de pessoas e os abusos do estado em mais de 65 países. No caso de Ayotzinapa, falta saber muita coisa. O que aconteceu com os estudantes, por que morreram e onde estão seus corpos. Porém, antes faltavam 43. Agora, faltam 40. É um avanço.
“Deixamos claro que não estamos, a princípio, buscando pessoas vivas, e sim trabalhando com fragmentos de corpos. Mas saber a verdade é o fim último”, diz Doretti.
Diferentemente dos que pensam que os abusos do passado devem ficar no passado, o trabalho dos peritos argentinos é importante para que uma família, uma sociedade, um país, saibam a verdade sobre si mesmos, reconheçam os erros de sua história, se reconciliem com episódios brutais, e que, com isso, possam construir uma consciência comum. É um caminho, evidentemente, difícil e doloroso. Mas é necessário na construção de sociedades democráticas e justas.