Glossário histórico e cultural para entender o Uruguai

O Uruguai continua surpreendendo o mundo. Na década passada, foi com o avanço das leis de direitos individuais, como o casamento gay, a do aborto e a da regulamentação da produção e da distribuição da maconha.

Nos últimos tempos, o país tem se sobressaído por ter feito uma transição sem atropelos de um governo de centro-esquerda para um de centro-direita. E, recentemente, se destaca no combate ao coronavírus, com uma política agressiva de cercar e atacar os focos do vírus, através de numerosos testes e contando com um bom sistema de saúde.

Mas, como tudo o que ocorre no planeta, nada acontece por acaso. Sempre há um contexto histórico que explica porque um país é de um jeito, e outro, de outro. 

E é claro que tampouco pode-se dizer que, no Uruguai, não existam os problemas dos dias de hoje na América Latina, como a desigualdade, a queda na qualidade da educação, e a presença da corrupção, entre outros. 

Mesmo assim, trata-se de um país com particularidades positivas que surpreende seus vizinhos.

Aqui vai um glossário resumido de 15 termos, canções, acontecimentos e nomes de pessoas que ajudaram a moldar o Uruguai dos nossos dias. Faltam itens, obviamente, mas serve para entender melhor esse país que tem sido notícia por seu equilíbrio democrático, seu respeito às instituições e seu êxito em distintas áreas.

A Redoblar – Canção do grupo Rumbo, de 1979, virou o hit simbólico contra a ditadura militar no país (1973-1985). A letra remete à liberação contra a repressão, com a frase “voltará a alegria”, e sugestões de que a luta armada deveria ter um fim, assim como a repressão do regime. Teve inúmeras regravações. Essa é a original:

Artigas – José Gervasio Artigas (1764-1850), considerado herói da Independência do Uruguai, lutou antes pela libertação das Províncias Unidas do Rio da Prata, e era um defensor do federalismo. Queria que a chamada “Banda Oriental”, como era chamado o que se transformaria no Uruguai, tivesse autonomia diante das províncias do que hoje é a Argentina. Tinha ideias republicanas, era um seguidor de Thomas Paine (1737​-1809), um dos “pais fundadores” dos EUA. Lutou contra espanhóis e portugueses. Seus restos mortais estão no subsolo da praça Independencia, em Montevidéu, no mausoléu construído em sua homenagem em 1923.

Candombe – Uma das manifestações culturais que diferenciam o Uruguai da Argentina. Enquanto a cultura predominante argentina fez um esforço para apagar sua herança afro, no Uruguai ela foi valorizada. Hoje o candombe, manifestação dos uruguaios de origem africana, está presente na música e nas festas locais. O candombe influenciou o que hoje é considerado “mainstream” dos dois lados do Rio da Prata, como o tango e a milonga. Mas apenas no Uruguai há uma cultura de celebrar essas raízes, em eventos, desfiles de rua, com uma batida afro algo diferente à que se escuta e se vê no Brasil.

Cisplatina – A chamada Província Cisplatina foi o nome do Uruguai dado temporariamente pelos portugueses, e depois, pelo Império do Brasil, entre 1817 e 1828, quando houve uma tentativa de anexar esse território. Ocorreram intensas tensões na disputa, só resolvidas pela pressão diplomática do Reino Unido. 

Batlle & Ordoñez – O construtor do Uruguai moderno. José Batlle y Ordóñez (1856-1929), então do partido colorado, era o que hoje se classificaria como um social-democrata liberal. Aprovou leis progressistas e de vanguarda para a época na região. Entre elas, a jornada de oito horas, a compensação pelo desemprego, o divórcio apenas a pedido da mulher. As gestões de Batlle & Ordoñez foram nacionalistas, anti-imperialistas e aumentaram a participação do Estado na economia. Preocupado com a qualidade do álcool que a população consumia, por exemplo, passou o monopólio de sua produção ao Estado _algo que inspiraria a regulamentação da maconha tantas décadas depois. Enfrentou latifundiários e os setores católicos da sociedade. Apoiou a lei do voto feminino, em 1927 (o Uruguai foi o primeiro país da América do Sul em que as mulheres puderam votar), estimulou a imigração e ajudou os pequenos proprietários de terras.  

Ditadura militar – A ditadura militar uruguaia começou em junho de 1973 e terminou apenas em 1985. No período, desapareceram 172 pessoas e centenas foram presas. Os partidos políticos foram proibidos, assim como os sindicatos, enquanto houve controle dos meios de comunicação e censura. As tensões começaram no fim dos anos 1960, com uma grave crise econômica e com o surgimento de guerrilhas urbanas de esquerda, inspiradas na Revolução Socialista, em Cuba (1959). A repressão a essas agrupações foi violenta. Até que, em 1973, com a anuência de um presidente constitucional, Juan María Bordaberry (1928-2011), as Forças Armadas deram um golpe de Estado. Depois da transição à democracia, em 1986, foi decretada uma lei de anistia, vigente até hoje. Mesmo com essa legislação, porém, foram possíveis os julgamentos de alguns repressores e de guerrilheiros, baseados no conceito de crime continuado. Um deles foi o próprio Bordaberry, condenado e sentenciado por delitos de lesa humanidade. 

Frente Ampla – Criado em fevereiro de 1971, esse partido de centro-esquerda reúne diversas agrupações progressistas e esteve à frente do poder em três mandatos de dois presidentes: José “Pepe” Mujica (2010-2015) e Tabaré Vázquez (2005-2010 e 2015-2020). Tem uma estrutura muito bem definida e de bases, em que as decisões são tomadas de baixo para cima. Dentro da aliança, existem social-democratas, democratas cristãos, socialistas e ex-guerrilheiros marxistas. Em sua gestão, foram aprovadas as leis do casamento de pessoas do mesmo sexo, do aborto e da mudança de nome para pessoas transgênero. Também representaram um período de crescimento econômico sustentado do país, com média de 3% a 4% ao ano. Houve, porém, demonstrações de insatisfação, na área da educação e por ter uma política de altos impostos. Também houve casos de corrupção. Hoje, a Frente Ampla mantém a maioria no Congresso.

Juan Manuel Blanes – Foi o pintor que melhor representou episódios históricos no Uruguai no século 19. Blanes (1830-1901). Fez retratos de gaúchos e trabalhadores do campo, também de presidentes e de passagens dramáticas, como assassinatos de generais e imagens da peste de febre amarela, em Buenos Aires. Também imortalizou o chamado Juramento dos Trinta e Três Orientais (ler abaixo). Boa parte de sua obra está reunida no bonito Museo Juan Manuel Blanes, localizado num casarão no bairro do Prado, em Montevidéu.

Laicismo – O Uruguai é o país mais laico da América Latina, e a separação entre Estado e Igreja está entranhada na cultura local. E quem a transformou em lei escrita foi, outra vez, o mesmo José Batlle & Ordoñez, que confrontou a Igreja pública e privadamente _por exemplo, vivia com sua companheira sem casar-se, o que não era comum na época. Não há no país, por exemplo, feriados dedicados a santos. A Semana Santa é chamada de “semana do turismo”. Os presidentes, quando assumem, não juram sobre uma Bíblia nem existem crucifixos em escolas ou hospitais públicos. Por ser um Estado laico, segundo vários analistas, foi por isso muito mais fácil aprovar leis que costumam ser barradas onde a Igreja é forte, como as de morte digna e do aborto.

Murga – A manifestação cultural mais típica do Uruguai, herdeira das murgas espanholas, mas que ganhou contorno próprio no Rio da Prata. Mistura música, performance e paródia. Na murga, os instrumentos de percussão afro predominam (tambores, “redoblantes” e pratos) e se desfila como se fosse o Carnaval brasileiro, ou se representa num palco. Em Montevidéu, a murga e o candombe estão vivos o ano todo, especialmente nos bairros Sur e Palermo. Nas letras das murgas há muita política e gozação a figuras públicas, também se cantam os dramas e as denúncias sociais, assim como as dores de amores e do exílio.

Partido Nacional – Um dos dois partidos mais tradicionais do Uruguai, fundado em 1836, reúne setores de centro-direita e direita. Possui uma vertente mais progressista e outra mais ligada à Igreja. Nasceu como um partido muito ligado aos interesses do campo, e ainda tem um forte reduto entre esse eleitorado. Está hoje no poder, com Luis Lacalle Pou, filho de um ex-presidente do mesmo partido, Luis Alberto Lacalle (1990-1995), por sua vez neto de um dos fundadores da agrupação. Conhecido também como partido “blanco”, em oposição ao “colorado”, também se diferenciava do “batllismo” por pregar uma ideologia mais liberal e de menos interferência do Estado na economia e na vida dos cidadãos.

Partido Colorado – Fundado no mesmo ano que o partido Nacional, 1836, o colorado é uma verdadeira mescla de ideologias, embora hoje esteja mais ligado à centro-direita liberal. Foi formado por republicanos, social-democratas, liberais e progressistas. Entre suas figuras de destaque estão Batlle & Ordoñez, que corresponde a sua vertente mais vanguardista, Julio Sanguinetti, que governou em dois períodos, o primeiro deles logo depois a ditadura (1985-1990 e 1995-2000) e Pedro Bordaberry, filho do ex-ditador Juan María Bordaberry.

Tupamaros – Foram uma das guerrilhas urbanas de esquerda mais famosas da época das guerrilhas na América Latina. Começaram a atuar no fim dos anos 1960, reunindo uma juventude de classe média, homens e mulheres jovens, ainda em tempos democráticos. Realizaram ações, atentados e protagonizaram fugas cinematográficas de prisões. Também sofreram grande repressão. Entre seus nomes mais famosos estão o ex-presidente José “Pepe” Mujica, sua mulher, Lucía Topolansky, Eleuterio Fernández Huidobro, Mauricio Rosencof, Raúl Sendic (pai) e outros. Com o retorno à democracia, os tupamaros se transformaram em uma agrupação política, o MPP (Movimento de Participação Popular), que hoje integra a Frente Ampla.

Sítio de Montevidéu – Período em que a cidade permaneceu cercada, entre 1843 e 1851, durante a chamada Guerra Grande, em que se enfrentaram os chamados “blancos” uruguaios, aliados aos “federales” argentinos, liderados pelo autoritário comandante portenho Juan Manuel de Rosas (1793-1877), e por outro lado os “colorados” uruguaios, aliados aos “unitários” argentinos. O episódio demonstrou a força de resistência de Montevidéu, então amuralhada, apoiada nas correntes migratórias que deram o contorno cultural da cidade portuária. Em sua defesa atuaram franceses, espanhóis e italianos instalados na cidade. Entre estes últimos, Giuseppe Garibaldi (1807-1882), um dos líderes da unificação da Itália. Sua casa, localizada na Ciudad Vieja, virou um museu.

Treinta y Tres Orientales – Grupo de homens liderados por Antonio Lavalleja e Manuel Oribe que, em 1825,  lutaram pelo fim do domínio brasileiro sobre a chamada Banda Oriental. Esse movimento acabou sendo fundamental para a Independência do país. Usavam uma bandeira azul, vermelha e branca, com os dizeres: “Liberdade ou Morte”. O episódio pelo qual ficaram conhecidos ocorreu quando, ao desviar da vigilância brasileira, cruzaram o Rio Uruguai e fincaram ali sua bandeira, realizando um juramento. Depois, houve uma polêmica sobre se eram 33 homens mesmo ou mais. Nunca ficou esclarecido de fato, mas passaram à história com esse número.