Venezuela perto de outra eleição fracassada

Se não bastasse a pandemia do coronavírus, que pode atrapalhar o calendário eleitoral venezuelano, fatores políticos também direcionam a renovação do parlamento pelas urnas _previsto para dezembro deste ano_ a mais um possível fracasso do que ainda poderia restar da democracia venezuelana. Esses fatores políticos se devem, em muito, à ação de mão-dura da ditadura de Nicolás Maduro. Desde o início do ano, o regime vem aplicando derrotas à liderança do opositor Juan Guaidó, que, por sua vez, também demonstrou irresponsabilidade política e parece estar atirando contra o próprio pé.

Nas últimas duas semanas, porém, Maduro aplicou alguns duros golpes contra a possibilidade de uma votação limpa em dezembro. Mais ou menos como fez nas votações da Assembleia Constituinte, em 2017, na da eleição regional, no mesmo ano, e, por fim, na votação presidencial de 2018 _todas acompanhadas pela Folha in loco. As estratégias são as de sempre: interferência no órgão eleitoral, o CNE (Conselho Nacional Eleitoral), inabilitação de opositores, provocação de rachas numa oposição que já não é muito chegada a alianças duradouras destinadas a lutar por um objetivo comum.

Com relação ao CNE, cuja mudança dos titulares era uma reivindicação antiga, uma vez que sua chefia já excedia, em muito, os limites de seu mandato estabelecido por lei, foi feita a nomeação de um novo corpo diretivo para o órgão. Só que isso foi feito apenas pelo poder Executivo, sem levar o assunto para votação da Assembleia Nacional, como manda a lei.

Maduro considera que a Assembleia Nacional está “em desacato”, e, por conta disso, o que decide ou vota raramente se concretiza. Além disso, no início do ano, o regime implementou a discórdia na AN, cuja maioria é opositora, alimentando ali dentro um grupo de dissidentes da aliança pró-Guaidó. Com isso, hoje há duas chefias no órgão, a do deteriorado Guaidó, e a do agora pró-chavista Luis Parra, e os desentendimentos ameaçam diluir o principal objetivo que os unia até pouco tempo atrás: o de remover o ditador de seu posto.

O grupo de Guaidó não reconhece o novo CNE e ameaça boicotar a eleição de dezembro. Erro semelhante foi cometido pela oposição em 2005, o que provocou, na época, que todo o parlamento fosse composto por apoiadores do então líder Hugo Chávez (1954-2013). Com isso, quem se opunha ao regime não tinha representantes no legislativo, a oposição desinflou, e Chávez consolidou seu projeto autoritário de poder.

Depois da ação para colocar em jogo mais um CNE de cunho governista, Maduro avançou contra dois dos principais partidos políticos do país. Primeiro, suspendeu a junta de diretores do Ação Democrática, o mais tradicional partido venezuelano, de inspiração social-democrata. Depois, na última terça-feira, foi a vez de fazer o mesmo com o Primero Justicia, qual saíram lideranças como Henrique Capriles e Leopoldo López.

A Ação Democrática pode ser considerada uma das fundadoras, ao lado de outro partido, hoje meio ofuscado, a Copei, da democracia venezuelana a partir de 1958, quando passou a funcionar um sistema de bipartidarismo que dominaria a política do país. A AD, com mais história, teve importantes presidentes, como Rómulo Betancourt, mandatário em dois períodos (1945-1948 e 1959-1964). Já o Primero Justiça nasceu em 2000, com o projeto de enfrentar o chavismo.

Como se precisasse de razões para atuar como um ditador, coisa que já é, Maduro acusou a Assembleia Nacional atual de planejar contra ele a falida Operação Gideon, um episódio ainda mal explicado em que um grupo de mercenários norte-americanos e venezuelanos tentaram invadir o país e avançar contra o regime. A empreitada foi reprimida pelo chavismo, e salpicou a popularidade de Guaidó ao sugerir um possível envolvimento deste na trapalhada.

 

Apenas essas três movimentações políticas já debilitariam demais a possibilidade de termos uma eleição limpa para eleger o novo parlamento venezuelano ainda neste ano. A isso, se pode acrescentar a pandemia do coronavírus, um inimigo nada menor que poderia servir de justificativa para um adiamento da votação. Neste caso, uma nova confusão se formará. Guaidó sugere que o atual mandato da AN prossiga até que seja possível realizar eleições. Já Maduro indica que isso poderia não acontecer, e que, após terminado o mantado da AN opositora e até a eleição de um novo parlamento, quem exerceria o poder legislativo seria a Assembleia Nacional Constituinte. Esta foi eleita em 2017, supostamente para redigir uma nova Carta, algo que até agora não foi apresentado, e para referendar ações do Executivo, maquiando-as de democráticas. Trata-se de um órgão formado por chavistas, uma vez que os opositores ou se recusaram a participar de sua escolha, em 2017, ou foram inabilitados pelo regime.

A democracia na Venezuela, por ora, parece continuar sendo um sonho distante.