Estupro coletivo ou ‘alívio’ sexual?

Na última semana, o grupo feminista Ni Una Menos completou cinco anos de sua primeira manifestação na Argentina. A partir daí, passou a ser uma das principais vozes da defesa dos direitos das mulheres no país. A organização também ganhou espaço no Chile, na Colômbia, no Peru e em outros países. Quando se acompanha o movimento feminista desde Buenos Aires, é possível notar sua organização e suas conquistas. Além de ter ajudado a que o feminicídio fosse tipificado pela lei argentina, o movimento conseguiu colocar a lei do aborto na pauta. Depois de derrotado por poucos votos em 2018, agora o assunto voltará ao parlamento, desta vez com o apoio do presidente Alberto Fernández.

Porém, o empoderamento da mulher que ocorre na capital do país, infelizmente não é regra para o resto do território.

Movimentos como o Ni Una Menos não parecem ter conseguido chegar ao interior da Argentina, e tampouco ao dos países vizinhos, onde o machismo da sociedade se impõe, apoiado pela força da religião e das culturas ancestrais. No livro “Chicas Muertas”, da excelente autora argentina Selva Almada, é possível ter uma ideia disso. Ela investiga, como numa longa reportagem, como morreram três garotas nos anos 1980, e como os três crimes ficaram impunes. Eles ocorreram em regiões distantes de Buenos Aires. Andrea Danne, aos 13, foi vítima de uma punhalada no peito enquanto dormia. Almada se lembra desse crime que a impressionou porque era uma garota na época e porque ocorrera num vilarejo perto de onde ela vivia, em Entre Ríos. Sara Mundín, aos 20, no interior da província de Córdoba, apareceu com o corpo despedaçado, enquanto María Luisa Quevedo, aos 15, foi encontrada sem vida num terreno baldio depois de ter sido estuprada, no Chaco.

O que une os três crimes de “Chicas Muertas” é que, além do fato de terem sido cometidos contra jovens mulheres, todos ficaram impunes, e isso tem muito a ver com o tipo de Justiça insensível para as questões de gênero que existe no interior da Argentina.

Nesta semana, outra atrocidade como as mencionadas acima estava prestes a também ficar impune, mas para algo parece servir ter um movimento feminista ativo e insistente no país. A gangue conhecida como “manada de Chubut” teve recusado um acordo que tinha sido imposto a uma jovem de 16 anos estuprada por quatro homens, num local de veraneio.

O crime ocorreu em 2012, em Playa Unión, na cidade de Rawson, no sul do país. A garota foi emboscada pelo grupo e estuprada. Saiu do episódio terrivelmente traumatizada e sem querer fazer a denúncia. Depois de anos de terapia e de ajuda psicológica, ela apresentou queixa na Justiça, e passou a ser hostilizada. Afinal, os rapazes envolvidos no drama são filhos de empresários conhecidos na região. A família da menina resolveu, então, mudar-se de cidade, para Puerto Madryn, descrente de que se faria Justiça e com medo de retaliação.

Parentes dos rapazes conseguiram convencer o promotor do caso a oferecer à jovem um acordo. Nele, ela receberia uma soma de dinheiro não divulgada, e eles não iriam ao tribunal por esse crime, mas sim por uma ofensa bem menor. Em vez de caracterizar o delito como o que foi, um “abuso sexual com acesso carnal agravado pela participação de duas ou mais pessoas”, o promotor o chamou de “ato de alívio sexual contra a vontade da vítima”. O dinheiro seria aceito em troca de uma pena de prisão.

As mulheres foram às ruas, em Chubut e em Buenos Aires, para expôr o absurdo acordo. Houve manifestações na frente da casa dos acusados e na do promotor, Fernando Rivarola. Começou, ainda, uma coleta de assinaturas por meio de uma plataforma digital para pedir a invalidação do acordo. Recolheu nada menos que 800 mil assinaturas.

No começo desta semana, por fim um desenlace satisfatório, oito anos depois do delito. O juiz Marcelo Nieto de Biase cancelou o acordo e encaminhou os acusados para um julgamento formal por “estupro coletivo agravado”, pelo fato de a vítima ser menor de idade na época. De Biase ainda disse que o acordo proposto pelo promotor era “inadmissível” e “repugnante”, e afirmou que a vítima o tinha aceitado sob ameaça das famílias poderosas dos rapazes.

O caso ganhou espaço nos meios de comunicação e nas redes sociais, sob a hashtag #manadadeChubut, e os grupos de defesa dos direitos da mulher pedem agora, além do julgamento dos culpados, também o do promotor, acusando-o de também ter ganho dinheiro com o acordo, que não tem base na lei. Na semana de aniversário do Ni Una Menos, o país hoje tem um movimento feminista mais articulado. Isso parece abrir os olhos de juízes e promotores para que deixem de minimizar crimes terríveis como este.

Se é de se comemorar o fato de que esses homens irão enfrentar o tribunal pelo crime cometido, ainda fica a sensação amarga de que a maioria dos crimes contra a mulher, em regiões mais afastadas dos centros urbanos na América Latina, continuem impunes. Ou, pior, que sejam rotulados com expressões absurdas e machistas como “alívio sexual”, em vez de “estupro coletivo violento”. E, que, sendo cometidos por gente rica, sejam desculpados e esquecidos.