Tecnologia e arquitetura a serviço dos direitos humanos

Sylvia Colombo

 

O escritório de arquitetura norte-americano SITU, com sede no Brooklyn, tem experiência em reconstruir de modo técnico manifestações populares reprimidas pelo Estado em vários locais pelo mundo. Já atuaram na Ucrânia, no Mali e no Iraque, entre outros. Por meio de vídeos de celular recolhidos in loco durante os protestos, o SITU, usando mapas da cidade em questão e consultando especialistas em balística, urbanismo e som, é capaz de identificar que armas foram usadas pelos repressores e pelos manifestantes, que alcance tinham, em que locais os episódios ocorreram, em que momento foram feridos alguns personagens e por onde a manifestação passou. “A tecnologia, usada a partir de fontes visuais confiáveis e cotejadas com outras, pode ajudar a derrubar narrativas oficiais e fake news sobre determinado evento”, conta à Folha Brad Samuels, um dos fundadores do projeto. Em alguns casos, o trabalho do SITU foi levado a cortes internacionais em julgamentos de casos de lesa humanidade.

No último sábado, completaram-se dois anos da Marcha de las Madres, dia em que, em meio a protestos e repressão, foram mortas 109 pessoas. A Nicarágua vivia, então, meses de muita violência com as manifestações contra a ditadura de Daniel Ortega. Na repressão, perpetrada por polícia, Exército e grupos paramilitares, o regime nicaraguense assassinou mais de 300 pessoas, e centenas de outras foram detidas. Uma reconstrução em vídeo desta data acaba de sair, num projeto comandado pela Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF) e o SITU.

Os forenses argentinos são uma das principais organizações de direitos humanos da Argentina, que formou nas últimas décadas um time de técnicos especializados em estudar e identificar restos de corpos e condições da morte de indivíduos, mesmo depois de décadas. Sua projeção internacional ocorreu por conta dos serviços prestados, ainda hoje, para identificar pessoas que morreram durante a ditadura militar argentina (1976-1983). O EAAF cresceu tanto que já ajudou na reconstrução de eventos violentos no México, na Bolívia, no Sudão e em outros países.

“Marcha de las Madres”, que você vê no link abaixo, acompanha a marcha e o momento em que foram feridos três manifestantes em Manágua, capital da Nicarágua, nos protestos de 2018. São eles Jonathan Morazán Meza, Francisco Javier Reyes Zapata e Daniel Josías Reyes Rivera. Cotejando vídeos de manifestantes, é possível acompanhar os três homens durante o percurso recorrido, assim como captar o momento em que foram feridos, por que tipo de bala e o trajeto deles até um hospital. “O estudo de como foram atingidos mostra que houve uso desproporcional da força, e que seus certificados de óbito amenizam dados importantes sobre como foram mortos”, diz Mercedes Doretti, da EAAF.

 

“Narrativas oficiais costumam sugerir que protestos caóticas como este são muito complexos para entender, o que faz com que a busca por responsáveis pareça inútil. Nós usamos documentação cidadã e tecnologia e, com isso, pretendemos ajudar aos organismos que lutam por direitos humanos”, diz Samuels. 

O vídeo mostra o caminho percorrido pela marcha, que tipo de armas usavam os repressores, em que veículo viajavam, qual era o poder de alcance das pedras que os manifestantes atiravam de volta e seu poder de machucar alguém, além de mapas, que ajudam a entender as emboscadas, a posição das trincheiras e a distância percorrida pelas armas de fogo que atingiram os que morreram. Obviamente, não tem uma precisão matemática, mas se mostra como uma ferramenta muito mais completa para entender um episódio do que, em geral, o amontoado de registros de imagem que circulam livremente na internet.

O regime nicaraguense nunca respondeu pelo massacre cometido naqueles meses de 2018. Pior, em 2019, o ditador Ortega deu anistia a repressores, a quem homenageia por ter “salvo o país dos vândalos”. O vídeo apresentado no sábado desconstrói sua narrativa.

Mapa expõe distâncias em protesto (Divulgação)

Em tempos em que manifestações pelo mundo vão se fazendo mais presentes, e tendem a se agravar, em consequência do impacto do coronavírus nas economias e na política, esse tipo de instrumento deveria ser usado de modo mais amplo. Para confrontar “fake news” e levar responsáveis por crimes à Justiça, nada melhor que informação precisa e bem analisada. Este é apenas um exemplo de ferramentas que podem ser usadas.