Proteção ou estigmatização da velhice?
A quarentena obrigatória na Argentina, que já completou mais de um mês, é bastante restritiva, e tem dado bons resultados, comparando-se com o restante da região. Isso é muito positivo. Em alguns casos, porém, as autoridades vêm exagerando. Nos últimos dias, instalou-se um debate sério na sociedade quando o chefe de governo da cidade de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, decidiu proibir que pessoas de 70 anos saíssem de casa, sem qualquer exceção.
Segundo as regras da quarentena nacional, que vêm sendo fiscalizadas pela polícia, só se pode ir à rua para comprar comida e remédios _ou no caso de a pessoa fazer parte dos serviços considerados essenciais _o que parece razoável diante do desafio de conter a pandemia do coronavírus. Porém, condenar os idosos a sequer saírem, mesmo obedecendo essas regras, foi considerado demais para eles.
Os primeiros a vocalizar uma reclamação foram artistas e intelectuais. A atriz Nacha Guevara, 79, disse: “Quando escutei a notícia, me senti ferida, é uma decisão equivocada, que nos infantiliza, como se não fôssemos capazes de cumprir regras”. Depois, mais descontraída, publicou em sua conta de Instagram uma foto em que fazia um gesto obsceno com a mão, e uma mensagem contra a medida.
O escritor Marcos Aguinis, 85, disse que, apesar de saber que integra o grupo de risco e de estar cumprindo a quarentena, uma decisão destas não pode ser tomada dessa forma. “Parece considerar que somos um setor condenável da sociedade, ou, até mesmo, um setor que atrapalha”, afirmou.
Já a intelectual Beatriz Sarlo, 78, que lutou contra a repressão durante a ditadura militar (1976-1983), ficou ainda mais revoltada. “Trata-se de um estado de sítio seletivo. Impede a mobilidade de seus habitantes pelo território. Viola a Constituição e ignora que muitos de nós temos trabalhos que fazem diferença para a sociedade. Larreta pensa que somos todos aposentados”. E acrescentou: “A discriminação pela idade passa um símbolo muito negativo sobre a velhice para todos”.
O historiador José Emilio Burucúa, 76, fez uma espécie de performance, saindo com uma estrela de David amarela no peito, assim como faziam os nazistas para identificar os judeus nos anos 1940, e com a inscrição ‘+70’ escrita dentro dela. “Estamos presenciando uma nova forma escandalosa de discriminação”, afirmou.
A princípio, Larreta havia estabelecido que os maiores de 70 anos só poderiam sair em situações muito excepcionais, e pedindo permissão, por meio de um procedimento feito pela internet. Senão, poderiam ser penalizados. Mas a pressão dos afetados, que expressaram sua resistência à regra foi tão forte, que ele teve de retroceder. Na segunda-feira (20), quando a medida entraria em vigor, Larreta recebeu uma carta assinada por diversos intelectuais e personalidades que têm mais de 70 anos. Entre alguns dos mencionados acima, estavam também Edgardo Cozarinsky, Graciela Melgarejo, Juan José Sebreli e outros.
Como em todos os lugares, diante do coronavírus, a Argentina anda sobre essa linha-fina entre as proibições a direitos civis e a necessidade de conter a pandemia e o caos econômico que a acompanha. Por enquanto, vem se impondo o bom senso de manter a quarentena nacional _que, inclusive, deve ser ampliada. É necessário, porém, tomar cuidado para não estigmatizar um extrato da sociedade.