Ícone arquitetônico reabre para alimentar ditadura na Venezuela

Quem visita Caracas nos últimos tempos e levanta os olhos para admirar El Ávila, a imponente montanha que se sobressai entre a cordilheira do litoral, fica intrigado com a torre que vê ali, e que por muitos anos esteve fechada ao público.

Trata-se do Humboldt, um hotel e cassino inaugurado em 1956, dentro de um projeto que buscava expôr ao mundo o sucesso econômico da Venezuela e sua abundância então gerada pelo petróleo. Eram os tempos do ditador Marcos Pérez Jiménez e do início da construção das grandes obras arquitetônicas na cidade. A 2.140 metros acima do mar, e com 60m de altura, o Humboldt tem 19 andares e 70 suítes de luxo. Uma torre com restaurante e bar com vista de 360 graus, além de piscina coberta, cassino e um teleférico. Dali, se vê tanto a cidade quanto o mar caribe.

O edifício ficou fechado por muitos anos, depois que, ainda no início da gestão de Hugo Chávez (1999-2013), todas as casas de apostas do país ficaram proibidas.

Nos últimos tempos, porém, notei que a imponente torre estava iluminada quase todas as noites, mesmo quando Caracas vivia  apagões. Logo descobri que o hotel tinha voltado a ser usado, mas desta vez apenas pelos militares e por “boliburgueses” (os empresários ligados ao governo), para festas privadas. Mil lendas urbanas corriam, então, sobre o que ocorria ali, que havia bebidas importadas, prostitutas, jogo ilícito. A única coisa que era certa era que se aproximar dali era impossível. O acesso estava bloqueado pelo Exército.

Enquanto isso, foi divulgado que uma restauração havia sido iniciada, com a intenção de devolver o brilho do local assim como ele era nos anos 1950/60. Curioso como num país que vive uma crise humanitária tão terrível e que já obrigou mais de 4 milhões de venezuelanos a migrarem, o regime passou a se preocupar em gastar tanto para recuperar o velho hotel-cassino _o valor não foi divulgado, é claro, mas imagine, uma torre dessa dimensão e com esse luxo, no alto de um pico a mais de 2 mil metros acima do nível do mar…

Cartão-postal com o Humboldt e o teleférico, nos anos 1950 (Reprodução)

Nos últimos dias, o ditador Nicolás Maduro fez o anúncio oficial. O Humboldt irá reabrir ao público, e seu cassino estará disponível para jogos agora “legais”. Porém, seus lucros serão direcionados ao regime. Será possível apostar em petro (a criptomoeda venezuelana) ou em outras moedas estrangeiras. Nunca em bolívares, obviamente, a moeda oficial cuja inflação devora ferozmente a cada dia.

Também haverá visitas guiadas e será possível se hospedar em seus quartos de luxo, porém, igualmente pagando nessas moedas e com o lucro voltado a manter o falido Estado.

É claro que se trata de uma boa notícia para a arquitetura venezuelana, e para a beleza algo perdida da bela Caracas.

Por outro lado, não há como esconder a imensa crueldade desse empreendimento. Enquanto milhares passam fome e hospitais não têm recursos, gasta-se uma fortuna para restaurar essa imponente torre na cordilheira. Ali, por um preço altíssimo, hóspedes, que darão dinheiro à ditadura, poderão contemplar o lindo mar caribe, mas também a capital que agoniza a olhos nus abaixo do Ávila. Se isso os incomodar muito, poderão ir ao bar ou ao restaurante e apreciar comidas que os venezuelanos comuns não possuem, além de embriagar-se com drinks feitos com elementos contrabandeados. 

Triste epílogo para o Humboldt. Pelo menos por enquanto. Tomara que um dia ele volte a ser um patrimônio acessível a todos os caraquenhos.