Margaret Atwood, guia das feministas argentinas
Quando a escritora canadense Margaret Atwood, 80, escreveu “O Conto da Aia”, romance de 1985 que deu origem à série homônima, afirmou que, apesar do terrível tom “dark” da trama, ela nada mais era do que uma coletânea de situações reais, que já vinham ocorrendo na história da humanidade. Para quem não leu o livro ou não viu a série, trata-se de uma distopia, que ocorre no que uma vez foram os EUA, após a tomada do poder por extremistas religiosos, que transformam o país numa teocracia chamada de República de Gilead. A base dessa sociedade, na qual a fertilidade por alguma razão está em queda, são as “criadas”, as poucas mulheres férteis que, reduzidas a meras reprodutoras, vão se revezando em casas de famílias prósperas, com o objetivo de dar-lhes filhos, antes de ir prestar seu serviço a outros senhores.
Na época, pouco tempo depois de terminada a ditadura na Argentina (1983), Atwood disse que um dos “exemplos reais” dos quais tinha tomado inspiração era o roubo de bebês por militares durante a ditadura (1976-1983). Estima-se que cerca de 500 bebês tenham sido retirados de seus pais, considerados subversivos pelo regime. Com os progenitores assassinados, as crianças eram entregues a famílias consideradas “mais apropriadas” à sua criação _a saber, as de militares ou policiais, ou seja, “gente de bem”, segundo seu modo de entender.
Mal podia imaginar Atwood que, mais de 30 anos depois, seu livro seria referência fundamental a jovens feministas argentinas. Desde 2014, com o movimento Ni Una Menos, que luta pela diminuição da violência doméstica, e de 2018, quando uma lei de aborto (até a 14a semana de gestação) foi votada e, posteriormente, rejeitada pelo Senado, a leitura do livro de Atwood é praticamente obrigatória entre as garotas que vestem lenços verdes (pela lei do aborto), e usam glitter em numerosas manifestações pelas ruas de Buenos Aires e outras grandes cidades, em favor dos direitos das mulheres.
E eis que agora chega às livrarias uma obra importante para entender o motor dessa onda feminista na Argentina. Trata-se de “Somos Belén”, de Ana Correa, uma das fundadoras do Ni Una Menos, e com prefácio da própria Atwood.
Em ritmo de livro-reportagem, a obra conta a história real de Belén (nome fictício), uma jovem de 27 anos, da Província de Tucumán, que, em 2014, foi parar num pronto-socorro por conta de uma hemorragia vaginal. Foi diagnosticado um aborto espontâneo. Porém, ainda assim, Belén foi acusada de ter causado de forma proposital a perda do feto. Quando acordou da anestesia, estava cercada por policiais. Foi presa e condenada a oito anos de cadeia.
Houve uma grande mobilização social, que cresceu, caminhando lado a lado com as reivindicações de mais segurança para as mulheres contra a violência machista e pelo aborto legal, seguro e nas redes públicas de hospitais. As marchas por Belén aconteceram em várias cidades do país, e sua mobilização foi fundamental para construir a imensa base de apoiadores que o movimento feminista argentino tem hoje. O resultado foi que, em 2017, a Corte Suprema de Tucumán libertou Belén e, seis meses depois, a absolveu completamente.
Escreve Atwood no prólogo: “O caso de Belén não é uma injustiça isolada. Que uma mulher tenha sido presa por abortar, quando na verdade teve um aborto espontâneo, é uma história que poderia ter saído diretamente das páginas de meus livros sobre Gilead”.
“Somos Belén” sai em um momento oportuno. A Argentina muda de presidente no próximo dia 10. Mauricio Macri, o atual, apesar de ser contra o aborto, permitiu em sua gestão que uma legislação fosse votada pelo Congresso, ainda que tenha sido derrotada. Já Alberto Fernández, comprometeu-se com a causa, e afirmou que enviará um novo projeto ao Congresso, e fará campanha por sua aprovação, assim que assumir. É para anotar e conferir. Outras Beléns sofrem dramas parecidos de forma rotineira.