No fundo do mar, 200 toneladas de ouro e um ícone literário
Quem se lembra da passagem do romance “O Amor nos Tempos do Cólera”, de Gabriel García Márquez (1927-2014), em que o personagem Florentino Ariza contrata um menino para mergulhar e tentar achar o mítico navio San José, nas profundezas do litoral de Cartagena, para que, com a fortuna encontrada, ele pudesse encantar e seduzir o amor de sua vida, Fermina Daza?
Pois esse navio existe e, em 2015, eu estava em Cartagena quando o então presidente colombiano, Juan Manuel Santos, anunciou que ele havia sido finalmente localizado, mais de 300 anos depois de ter naufragado. Armou-se, então, uma polvorosa entre buscadores de tesouros, políticos e diplomatas. A quem pertenceria, nos dias de hoje, aquela embarcação que, segundo os registros históricos, tinha afundado com 200 toneladas de ouro e outras riquezas, tiradas das então colonias espanholas na América e que rumava para a Espanha, em 1708? As ex-colônias de onde o ouro e as pedras preciosas haviam sido tiradas, hoje o Peru, o Equador, a Bolívia e a própria Colômbia teriam direito a reclamar o tesouro, se na época eram parte do território espanhol? A polêmica estava armada.
Pois, na tarde deste sábado, em Bogotá, os dois países chegaram a um acordo. A vice-presidente colombiana, Marta Lucía Ramírez, e o chanceler espanhol, Josep Borrel, em visita ao país, decidiram que, assim que for resgatado, o tesouro do navio não será explorado comercialmente. Além disso, os dois países farão juntos os esforços de retirá-lo do fundo do mar. A dificuldade tem permeado os diálogos desde então, afinal, além de estar muito fundo, o navio é pesado e a retirada em sua integridade seria altamente custosa. Há empresas norte-americanas de busca de tesouros interessadas, mas os dois países recusam essa ajuda.
Pois se a cooperação binacional para recuperar o San José deve ser comemorada, por outro lado, continuam as divisões sobre o que fazer com o conteúdo da embarcação. A Colômbia considera que se trata de um tesouro colombiano, importante também para o imaginário cultural do país, e gostaria de construir um museu para contar sua história e manter seu conteúdo ali mesmo, em Cartagena. Já a Espanha considera que, por ter sido um navio do Estado espanhol e que, com ele, morreram 600 marinheiros espanhóis, não haveria dúvidas de que deveria ser transportado para a Espanha. Onde se fariam, também, trabalhos de identificação dos mortos e uma devida homenagem.
O navio sucumbiu por uma emboscada da Marinha da Inglaterra destinada a impedir que as riquezas servissem a Felipe 5º, um Bourbon, em guerra pela sucessão do trono espanhol. Inglaterra, Portugal e Alemanha não queriam que ele ficasse com o trono, e sim que assumisse, em seu lugar, um Habsburgo. Ou seja, afundar o San José foi uma estratégia de guerra e, se este pudesse ter chegado a seu destino, poderia ter financiado ainda mais a Coroa espanhola para a guerra e alterado a geopolítica europeia da época.
Construído em 1698, em San Sebastián, em sua última viagem o San José foi carregado num porto panamenho e se aproximava de Cartagena para uma escala. Dali iria para Havana e, depois, para Cádiz (Espanha), o destino final. Próximo de Cartagena, porém, o San José foi emboscado por navios chefiados pelo capitão Charles Wager. Uma batalha naval de dois dias terminou com a derrota dos espanhóis, e o San José sucumbiu no dia 8 de junho de 1708.