Gabo, visionário sobre Cartagena
O escritor Gabriel García Márquez (1927-2014) adorava a cidade que o acolheu quando estudante. Tanto que sempre repetia que em seus livros sempre havia algo ou alguém inspirado em histórias que tinha escutado em Cartagena. Aqui ele desafiou o pai, dizendo que abandonaria a faculdade para ser escritor, aqui dormiu no chão de uma praça porque não tinha dinheiro para uma pensão, aqui escreveu alguns de seus primeiros contos no jornal local e aqui aprendeu a ser repórter. Também em Cartagena ambientou “Amor Nos Tempos do Cólera” e “De Amor e Outros Demônios”, entre outras histórias. E deixou partes da sua própria história na cidade caribenha, como relata na biografia “Vivir para Contarla”.
Mas Gabo não era um deslumbrado com relação à cidade. Ao contrário. Sentia a crueldade intrínseca à sua cultura, por conta de seu passado colonial e escravista. Cartagena fora um porto de tráfico de escravos, de forte presença da Igreja na vida da sociedade _esta, por sua vez, com regras anacrônicas que geravam amarguras por toda uma vida. Por ser um porto, também servia às máfias e ao contrabando.
Por isso que, de volta a cidade agora, às vésperas de uma eleição regional, penso que Gabo não se espantaria com o que está ocorrendo aqui. Chego no dia em que se revelaram áudios que expõem um complicado esquema de subornos e comissões ilegais por trás da construção de obras na região. Cartagena vem sofrendo na mão de políticos corruptos há tempos, tanto que num espaço de apenas seis anos, teve 11 prefeitos, um caindo após o outro depois da revelação de algum escândalo. Das regiões colombianas, 79% dos casos de corrupção revelados pela imprensa nos últimos tempos ocorreram na costa caribenha, da qual Cartagena é um dos pontos vitais.
A pobreza é outro de seus problemas crônicos, e foi retratada por Gabo em seus romances. A desigualdade entre a cidade aristocrática, hoje paraíso turístico, e a periferia para além da cidade amuralhada apenas aumentou nas últimas décadas. Se Gabo a reviveu retratando a vida nos casarões em contraste com o mercado ilegal e a vida dos excluídos do passado no bairro de Getsêmani, hoje o problema se mudou para outras periferias, como a comunidade do Mandela. Segundo a prefeitura, 26% da população de Cartagena hoje está abaixo da linha de pobreza, e 3% é indigente.
O bairro Mandela, que retratei para a Folha na época do plebiscito pela paz, segue sendo refúgio dos chamados “deslocados” da guerra. Gente que foi vítima da violência de paramilitares, guerrilheiros e facções criminosas de vários departamentos da Colômbia se refugia ali, e acaba montando uma nova comunidade. Porém, estão longe de ter paz, porque também no Mandela se instalaram bandos que praticam extorsão contra a população e vivem do tráfico de drogas.
Os problemas de Cartagena hoje são muitos. E a literatura de Gabo sempre foi capaz de ilumina-los. Como não sentir os efeitos de sua moral histórica no sofrimento de Sierva María e do padre Caetano? Ou a ilusão de seus meninos pobres diante da possibilidade de que um galeão espanhol, que de fato está afundado em sua costa com um imenso carregamento de ouro, venha à tona? Ou que o amor simplesmente possa vencer as convenções, como ocorreu com Florentino Ariza?
As cinzas de Gabo estão aqui e podem ser visitadas durante todo o dia, no pátio de uma universidade, a apenas alguns metros do mar Caribe. Se não compartilhasse suas maravilhas e suas dores, Gabo não pediria que seus restos descansassem em Cartagena. Parece ter sido uma sábia decisão do Nobel colombiano.