Argentina ri da própria desgraça em filme que lembra crise de 2001

Os argentinos andam assustados com o que está ocorrendo na economia. Desvalorização do peso, instabilidade política, expectativa de medidas que podem diminuir ainda mais seu poder de compra, além de aumentos de alimentos e de tarifas que já não cabem mais no salário de muita gente.

O principal trauma recente da sociedade, que todos torcem para que não ocorra de novo, é a crise de 2001. Naquela época, houve um bloqueio do dinheiro que os argentinos tinham nos bancos (o “corralito”), uma grande desvalorização do peso, além de grande turbulência urbana, que levou a piquetes e mais de 30 mortos nos enfrentamentos. Houve também gente que perdeu muito mais do que o dinheiro na conta, porque não pôde comprar remédios para tratamentos de parentes, negócios quebraram, mais pessoas adoeceram ou morreram.

Ricardo Darín, Verónica Llinás e Luis Brandoni em cena de “La Odisea de los Giles”

Ninguém quer voltar a esses dias. A não ser que seja em modo de comédia. Nesse caso, uma comédia sarcástica, auto-flagelatória, irônica com o modo de ser e de falar do argentino médio e do habitante do interior, longe das intrigas e bastidores políticos de Buenos Aires.

É por isso que “La Odisea de los Giles” (a odisseia dos idiotas), filme de Sebastián Borensztein (o mesmo de “Um Conto Chinês”), é um verdadeiro sucesso e tem lotado as salas de cinema em Buenos Aires. Conta a história de pessoas comuns, que vivem no povoado esquecido de Alsina, que sonham em transformar um velho armazém de cereais numa cooperativa agrícola. Ninguém tem os 300 mil pesos (que na época valiam 300 mil dólares) para o investimento, mas vão recolhendo entre amigos e famílias da região. Na época 1 peso valia 1 dólar, e a empreitada não parecia tão complicada assim (a maxidesvalorização do peso que veio pouco depois, com a crise, transformaria as dívidas contraídas em dólares em algo impagável).

Na cena acima, Fermín Perlassi (Ricardo Darín), um ex-jogador de futebol de trajetória medíocre, sua mulher, Lídia (Verónica Llinás) e o anarquista Antonio Fontana (Luis Brandoni) se perguntam se o negócio vale a pena. Com olhares sonhadores, se perguntam. Um deles responde: “Claro que sim, o que pode dar errado?”.

Eis que, na tela, aparecem os dizeres: “Argentina. Agosto de 2001”.

O cinema então vem abaixo, as pessoas gargalham. Certamente muitos ali lembram ou sofreram as consequências da explosão dessa crise, que estourou apenas quatro meses depois, em dezembro de 2001. Mesmo assim, a risada é inevitável, ainda que amarga. Todos se reconhecem um pouco em cada um dos nove protagonistas (ou os idiotas do título), que perdem tudo o que tinham guardado para seu investimento. Porém, se armam como podem de estratégias precárias e esquemas rocambolescos para reaver seu dinheiro. Que não apenas tinha ficado preso pelo “corralito”, mas também roubado por um malandro que, pelo visto, sabia o que ia acontecer no país.

O filme é baseado num romance de Eduardo Sacheri, autor também do livro que deu origem ao lindo “O Segredo de Seus Olhos”, premiado com um Oscar. Desta vez, o filme se baseia em outra novela do mesmo autor, “La Noche de la Usina”. Se há grande mérito no roteiro, com diálogos inteligentes e engraçados, não se pode falar menos das atuações. Estão Darín pai e Darín filho, que fazem papel também de pai e filho, em cuja família ocorre a pior das tragédias. Brandoni faz um anarquista de excelente oratória política, mas que na vida real se dedica apenas a trocar rodas de automóvel numa oficina que quase ninguém visita. A ótima Rita Cortese faz uma empresária local, um papel que poderia ser melhor aproveitado devido a seu imenso talento cômico.

É certo que “La Odisea de los Giles” fará sucesso internacional. Mas é talvez o filme mais argentino das produções argentinas recentes. Faz com que o público lembre de recordações dramáticas detalhadas daqueles dias, mas que as exponham em forma de catarse coletiva, de gargalhada, e de longos aplausos ao final. Mesmo que, do lado de fora do cinema, a realidade que todos estão enfrentando na Argentina nesses tempos confusos seja muito parecida ao desespero que move os personagens desse filme.