Morre Carlos Cruz-Diez, o mestre das cores venezuelano
Quem chega pela primeira vez ao aeroporto de Maiquetía, na Venezuela, se defronta com mais uma beleza, além do azul esverdeado do mar Caribe: o tapete de cores que o maestro da arte cinética venezuelano Carlos Cruz-Diez produziu para o edifício. Nestes duros tempos que vive o país, é de se lamentar que sua obra não tenha tido como seguir se desenvolvendo e prosperando em Caracas, onde nasceu. Por sorte, nela deixou várias obras, que fazem com que o visitante e o venezuelano, cansados de encarar tanta miséria e destruição, possam de vez em quando topar com a beleza de sua arte. O presidente encarregado do país, Juan Guaidó, despediu-se neste domingo (28) dessa forma do artista veterano venezuelano: “Descansa em paz, maestro Carlos Cruz-Diez. Sua obra atravessou fronteiras e nos encheu de orgulho como venezuelanos. Logo, as cores que deixou no aeroporto de Maiquetía verão regressar milhões”.
Cruz-Diez, conhecido como um dos mestres da arte cinética, morreu aos 95 no último sábado (27), em Paris, onde estava radicado havia muitos anos. Nascido em Caracas, tem sua obra espalhada por museus do mundo, como o MoMa, de Nova York, a Tate Modern, de Londres e outros.
Em 2012, entrevistei-o durante uma breve passagem por Buenos Aires, onde ele exibia suas obras no Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires. Apesar de tantos anos vivendo na Europa, lembro de seu modo alegre e caribenho de cumprimentar uma desconhecida, de falar com saudades da Venezuela e de seu modo de se referir ao que estava ocorrendo em seu país de modo muito lúcido.
Vale ressaltar que a entrevista foi feita antes da morte de Hugo Chávez e antes da radicalização da crise venezuelana. Mesmo assim, creio que vale a leitura como documento histórico. Segue:
Folha – Seu trabalho vem sido revisitado por artistas jovens. Como vê isso?
Cruz-Diez – É uma beleza e estou feliz. Sinto que finalmente estão entendendo minha proposta, como minha geração jamais conseguiu.
Por quê?
Quando comecei a trabalhar com a cor, me diziam que essa questão estava resolvida. Que a cor era um tema que tinha caducado.
Mas eu sentia que era necessário mudar os hábitos milenares por meio dos quais as pessoas prestavam culto à forma e ao objeto. Na minha obra, não privilegio o objeto, mas sim o acontecimento.
Também acho que, na época, as pessoas se impressionavam com a matéria, com a composição dos quadros. Mas tampouco se tratava disso para mim. O que me importava era como tudo se movia, como as cores se transformavam. A prioridade era reforçar o contraste entre uma forma inerte e a dinâmica, e na dinâmica há algo mais para perceber do que simplesmente a forma.
E como as novas gerações o veem?
Entendem que a proposta não é a forma ou o suporte. Começam a entender que meu trabalho sempre se propôs a apresentar uma outra noção de cor. A cor é uma situação, um acontecimento, algo aleatório, sem noção de permanência, uma circunstância, algo que está acontecendo no tempo.
Os filósofos também deixavam a cor em segundo plano; foi o que me estimulou a experimentar com ela. Hoje percebo que não errei.
O senhor antes fazia pintura figurativa.
Sim e, quando eu a abandonei, as pessoas me diziam que eu tinha abandonado o homem, mas não era nada disso. Pelo contrário, eu estava ainda mais metido na investigação da alma humana.
Li que o senhor se incomoda quando usam o termo arte cinética para definir sua obra.
Não estava contra na época em que se criou o termo. Mas, a partir dos anos 1980, formou-se uma grande confusão, porque se generalizou a ideia de que arte cinética eram objetos movidos por motorzinhos -quando o que queríamos era criar uma outra realidade. E creio que funcionou desde o ponto de vista da criação, porque todos os artistas deram um aporte.
Eles me relacionam ao movimento cinético porque meu trabalho tem a ideia de participação. A possibilidade de mexer, o prazer produzido por observar a transformação da cor. Mas não há motorzinho no que faço. Quando pensam isso, fico incomodado.
O que o senhor pensa da pintura de propaganda, que está em voga na Venezuela?
Não se pode confundir tanto a arte com a política. Um sindicalista em cima de um banquinho pode mudar uma situação de um momento para outro, um pintor não consegue fazer isso, leva mais tempo para um quadro causar impacto na sociedade.
E a pintura de propaganda não muda nada. Todas as que existiram desde a Revolução Russa são reacionárias. Hoje, vejo como algo decadente.
Vivendo na França, como analisa a Venezuela hoje?
Estou na França há 51 anos. Mas amo muito meu país. Há quase 50 anos, sabíamos que chegaria a mudança que Hugo Chávez representa. A democracia, na Venezuela, mudou e melhorou muito o país, mas não fez nada pelos mais pobres. E se percebia que, se a democracia não levava prosperidade às favelas, elas viriam cobrar sua parte.
Agora, o populismo não resolve a fome dos pobres, apenas alimenta sua ilusão. O discurso de Chávez é arcaico, do século 19.
Como vê a arte contemporânea latino-americana? Há alguma renovação?
Vejo coisas interessantes acontecendo, principalmente na Argentina, no Uruguai e no Brasil. Artistas como Guillermo Kuitca [Argentina] e Ernesto Neto [Brasil] demonstram que a vanguarda está na América do Sul.
A Europa está muito pessimista e depressiva, mas por aqui (na América Latina) percebemos que estamos entrando numa nova época da história. Estamos vivendo um novo século 17. A filosofia, a matemática e a música de hoje são o ponto culminante do que se passou naquela época, mas tudo isso está se esgotando.
Agora há algo novo, relacionado à compactação do tempo, à rapidez das informações e à desaparição do proletariado.
Por que desaparição?
O proletariado já não está no campo. Como apresentar, para simbolizar as lutas do povo, uma foice e um martelo? É preciso começar mudando, de cara, o logo. Talvez colocar um dedo e uma tecla, por exemplo.
Já não há trabalhadores como no passado, nem soldados, nem camponeses. Há técnicos. É um outro mundo. E os políticos estão com os mesmos discursos dos séculos 19 e 20.