Dia do jornalista na Venezuela, e há o que comemorar

Sempre que vou a Caracas para uma cobertura, tomo várias precauções, passo nervoso o tempo todo, a adrenalina está dia e noite em alta, e durmo poucas horas, sempre alerta _aliás, dormir poucas horas foi o que me proporcionou presenciar ao vivo o último levante de 30 de abril, quando o líder da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, e o opositor Leopoldo López conclamaram os militares a segui-los em sua tentativa de tirar o ditador Nicolás Maduro do poder. Estava ainda escuro e eu tateava insone o quarto do hotel em Caracas, quando vi o celular vibrando várias vezes com mensagens de colegas que, por volta das 4am locais, já sabiam que algo estava por acontecer.

Mas minha preocupação constante sempre se desvanece e se renova em forma de entusiasmo pela profissão quando encontro os colegas jornalistas venezuelanos. A quantidade de obstáculos e de ameaças que eles enfrentam no dia-a-dia, sem perspectiva de grandes logros financeiros, é enorme. O que fazem é por paixão e pela ideia de que é necessário informar ao mundo sobre o que se passa na Venezuela, por valentia, por compromisso com seu ofício.

E é por isso que, neste 27 de junho, dia do jornalista na Venezuela, creio que é preciso homenagear os que acreditam na importância deste ofício e o praticam ali com mil fatores em contra, até mesmo com suas vidas em risco. Porque eles seguem, com valentia e coragem, e não desanimam com prisões, expulsões do país ou mesmo vendo a morte de colegas.

Noutro dia, conversando com meu amigo e mestre, o colombiano Jaime Abello Banfi, da Fundação Novo Jornalismo Iberoamericano, sobre a quantidade de jornalistas venezuelanos que migraram para o digital e fazem praticamente milagres para seguir informando num país que se despedaça, ele compartilhou comigo essa admiração, e fez uma observação pertinente: “Temo que, no futuro, o jornalismo da América Latina se parecerá ao que se faz hoje na Venezuela. Jornalismo de resistência e desde empreendimentos digitais.”

É óbvio que Abello Banfi não crê, e nem nós esperamos, viver em ditaduras num futuro imediato, mas a ideia de que teremos de nos armar de valentia para enfrentar dificuldades, além de focarmos na inovação, principalmente digital, e na criatividade, como fazem os colegas venezuelanos parece ser o caminho mais realista.

Comecemos com as boas notícias. Hoje há vários sites confiáveis e premiados no país. São eles Efecto Cocuyo (ganhador de um prêmio Gabo), El Pitazo (ganhador de um prêmio Ortega y Gasset), TalCual (que já existe há tempos e foi fundado por um veterano admirado no país, Teodoro Petkoff, 1932-2018), Runrunes, Armando.Info, El Estímulo, Prodavinci, La Vida de Nos, Caracas Chronicles e outros.

Em suas equipes há muitos jovens, mas também veteranos de redações de jornais em papel, que sofreram um estrangulamento financeiro e obstáculos para compra de recursos que os obrigou a fechar ou migrar para o digital, como fez o tradicional “El Nacional”. Outros vieram de rádios ou TVs expropriados pelo chavismo. Trouxeram frustração e ânimo de fazer algo novo, e também experiência para ensinar aos que iniciam a carreira.

Seu conteúdo é confiável, ainda que tenha as lacunas previstas pelas dificuldades que enfrentam, mas colaboram para que não exista, de modo algum, um apagão informativo no país.

Passemos para alguns números que dão conta de obstáculos e logros dos amigos caribenhos.

IPYS (Instituto Prensa y Sociedad) soltou um estudo sobre o exercício do jornalismo nos últimos anos. Entre as tantas cifras desanimadoras estão as seguintes:

  • 18% dos jornalistas que estavam no país até 2014 o abandonaram
  • Os principais países que os acolhem são Chile, Colômbia, Argentina, México, Estados Unidos e Espanha
  • 34 jornalistas da capital, Caracas, buscaram outras regiões do país, para viver na clandestinidade ou com menos impedimentos
  • 48% dos jornalistas venezuelanos hoje trabalham em meios digitais
  • Apenas 18% seguem em veículos impressos
  • Em 2018 e 2019, foram registrados 327 casos de violação à liberdade de expressão, garantida por lei
  • Foram reportados 147 casos de uso abusivo do poder do Estado para impedir o trabalho dos jornalistas e 86 de agressões físicas
  • Desde 2013, 26 meios em papel foram fechados, por impedimentos colocados pelo governo para a compra de dólares para adquirir papel e outros meios de estrangulamento financeiro
  • 87% dos jornalistas consultados afirmaram que não conseguem obter informações dos órgãos do Estado
  • 46% admitiram não terem divulgado alguma informação por ameaça e medo de uma represália ou ataques a familiares
  • Em 2018, houve 24 detenções arbitrárias, número que cresceu em 2019, quando está havendo mais protestos e atos de rua: foram 40 detenções, incluindo a de jornalistas estrangeiros

Alguns casos são exemplares. A equipe do site Armando.info, por exemplo, formada por Roberto Deniz, Joseph Poliszuk, Alfredo Meza e Ewald Scharfenberg, teve de deixar o país e seguir seu trabalho de investigação principalmente a partir de Bogotá, na Colômbia.

O jornalista independente Nelson Bocaranda, que dirige o portal Runrunes, está impedido de deixar a Venezuela, teve seu passaporte confiscado no aeroporto de Maiquetía. A mesma coisa aconteceu com o jornalista Luis Carlos Díaz, após ter sido  detido por mais de 30 horas e estar enfrentando um processo por incitação à desobediência.

Tirando a perseguição física, os jornalistas venezuelanos, e nós, estrangeiros, quando estamos lá, temos de lidar com a falta total de informações oficiais. Nem o Banco Central de Venezuela (BCV) ou o Instituto Nacional de Estadísticas (INE) ou o ministério da Saúde entregam as cifras mais básicas sobre economia, dados sociais, pobreza, incidência de doenças, nada. 

Neste último caso, recorre-se a médicos que, na clandestinidade, estão armando listas e gráficos de incidências de doenças e epidemias, além das mortes por conta de enfermidades graves ou falta de insumos e medicamentos em distintas regiões do país.

Outro obstáculo é lidar com a internet, com um regime que controla o sistema de telefonia no país e derruba páginas ou diminui a velocidade dos servidores quando quer. Os meios tentam driblar isso, hospedando seus sítios fora do país. Ainda assim, o acesso a eles fica complicado, e aí funciona a rede de solidariedade dos colegas que estão fora da Venezuela.

A imprensa estrangeira que se encontrava fixa em Caracas já praticamente não existe. Entre 2014 e 2019, deixaram o país Antena 3 (España), National Geographic (Estados Unidos), 24 Horas e TV Chile (Chile), CNN Español (Estados Unidos), El Tiempo Televisión (Colombia), Caracol (Colombia), RCN (Colombia) e Todo Noticias (Argentina). Seu sinal, mesmo para quem tem cabo ou satélite, praticamente não pega ali. Poucas agências ainda resistem.

É por isso que no dia do jornalista na Venezuela, vale render uma homenagem aos bravos colegas que seguem honrando a profissão, entre bombas de gás lacrimogêneo, ameaças e restrições de distintos níveis.

Uma das primeiras coisas que faz um regime ditatorial é restringir a palavra, a comunicação. Por isso é tão importante que esses veículos, ainda que pequenos e com tantas dificuldades, sigam existindo.