Jornalismo posto à prova em Tijuana

“Tijuana”, sobre jornalistas mortos e a realidade social na fronteira do México (Foto Divulgação)

Como fazer uma boa série sobre a situação mexicana e o jornalismo local sem cair em estereótipos e mostrando com as cores reais a complexidade de uma cidade como Tijuana? Que sim, é violenta, perigosa, mas também tem, como tantas regiões do México, disparidades incríveis, cassinos, casas luxuosas, gente rica vivendo bem, e tramas entre a mídia e o poder que selam pactos ou abrem guerras entre famílias por décadas? A solução é trabalhar com uma maioria de criadores, produtores e atores mexicanos e que se estude bem a história e a construção do tecido social local.

Assim é “Tijuana”, exibida antes na Univisión e que estreia agora na Netflix. Criada pelo veterano da TV mexicana, Daniel Posada (de “El Chapo”), a série tem no elenco um ator peso-pesado, Damián Alcazár, que interpreta Antonio Borja, um dos donos do jornal “Frente Tijuana”, e outros muito talentosos, como Claudette Maillé, que faz a ponderada diretora do diário, Federica. Além deles,  uma geração de novatos, como Ivan Aragon, que faz Andrés, o filho de Borja, motivado a descobrir os segredos do passado do jornal, Tamara Vallarta, que é Gabriela, uma repórter que vai ao limite para provar seu talento, e Tete Espinoza, a fotógrafa Malú, que se envolve emocionalmente nas coberturas. À frente da equipe, o calejado chefe de redação Lalo (Rolf Peterson).

O elenco acaba refletindo também um dos aspectos relevantes não apenas para o jornalismo mexicano como o mundial, o “gap” entre a geração anterior, acostumada a um modo de fazer reportagem, uma ética e, principalmente, um formato, o de papel, e que, pelas mesmas razões que estão mudando o jornalismo no mundo inteiro, hoje precisa aprender com os mais novos como ser mais ágil, ousado, dar novos enfoques às reportagens, e como sobreviver financeiramente. Os mais velhos por sua vez, principalmente encarnados na figura de Antonio Borja, insistem em passar adiante a velha e ainda válida ética jornalística, que se faz complicada de seguir em uma terra sem lei como Tijuana, com políticos corruptos, cartéis de narco por trás das campanhas eleitorais, empresas de fachada, que por fora são “maquiladoras”, e por dentro, facilitadoras do transporte de substâncias ilegais aos EUA.

É nesse ambiente que se desenvolve a trama. A equipe do “Frente Tijuana” quer investigar quem mandou matar um dos candidatos a governador de Baja California, Eugenio Robles (Roberto Mateos), um ex-operário que quer mudar, em favor dos trabalhadores, as regras a que são submetidos nas fábricas locais, as “maquilas”. Óbvio que, assim como os jornalistas incômodos, o candidato Robles não dura muito tempo, e é brutalmente assassinado por um sicário.

O jornal abraça o caso e, de repente, começa a sentir pressão do partido do governo, que na série se chama PTI, mas usa o logo e as cores do tradicional PRI (Partido Revolucionário Institucional), conhecido, entre outras coisas, pelo seu passado de corrupção. O “Frente Tijuana” passa a sofrer sufoco com os preços da gráfica e do papel, por parte dos anunciantes e a pressão para migrar para o digital. Antonio Borja resiste o que pode, sob o lema: “sem imprimir, não existimos”.

Além da história principal, que se baseia na caça de pistas na investigação da equipe do “Frente Tijuana” para encontrar o assassino de Robles, há outras subtramas. Andrés, o filho de Antonio, quer descobrir como foi morto o tio, co-fundador do semanário, e com isso se envolve perigosamente na zona de influência do empresário que é tido como o mandante do crime, às costas do pai. Também surgem subtramas sobre imigrantes centro-americanos mortos na fronteira pelos próprios “coyotes” que haviam recebido dinheiro para cruzá-los, e sobre prostituição e contrabando de crianças.

O “Frente Tijuana” se inspira na história de um semanário que existe no país, o “Zeta”, também famoso por não intimidar-se diante de ameaças. O “Zeta” tem já 39 anos, teve um de seus diretores, Héctor “El Gato” Félix Miranda, assassinado em 1988, e um jornalista, Francisco Javier Ortiz Franco, que investigava o narcotráfico local, morto em 2004. Na série, histórias parecidas ocorrem, incluindo uma quase destruição de sua redação por bandidos armados por metralhadoras.

Não há exageros nas histórias que conta “Tijuana”, que reflete o que vem passando em várias redações do interior do país nos últimos anos. Além de mostrar muito do que é a violência no México hoje, e principalmente a violência contra jornalistas, é um bom ponto de partida para a discussão sobre como seguir fazendo jornalismo, com as regras básicas de ética da profissão, num ambiente como este e num mundo em transformação.

São lembrados jornalistas famosos e reais, mortos nos últimos anos, como Javier Valdez e Miroslava Breach. Eles integram a lista de, pelo menos, 124 jornalistas assassinados entre 2000 e 2018, além dos 19 desaparecidos. Segundo a ONG Artículo 19, que monitora esses números, houve, apenas em 2018, 544 ataques contra a imprensa. E talvez o número mais assustador seja o da impunidade _99,13% desses crimes não foi sequer julgado.

Em tempos em que o presidente do México elegeu-se com um discurso de que a violência no país era um problema a ser atacado de uma nova maneira, sem o recurso único do enfrentamento direto, “Tijuana” também serve para aumentar o ponto de interrogação nesse sentido. Como e quando as cifras de homicídios irão baixar? Como se garantirá a liberdade de expressão? E como se desarmará esse sistema já solidificado em que os poderosos se aliam aos narcos, enquanto os mais pobres e os jornalistas morrem?