Lápides com nome e sobrenome
Neste 2 de abril, lembra-se, na Argentina, com um feriado nacional, a memória dos 649 soldados mortos nas desastradas invasão e tentativa de ocupação das ilhas Malvinas/Falklands, que são parte do Reino Unido, e que o governo militar do general Leopoldo Galtieri resolveu “recuperar”, como uma forma de salvar o que restava de respaldo ao regime militar (1976-1983).
Naquele 2 de abril de 1982, centenas de jovens argentinos, muitos deles novatos no Exército e oriundos de províncias distantes do país, foram levados por água e mar para uma guerra que seria impossível vencer. Contando com a tresloucada hipótese de que os habitantes das ilhas _a maioria de ascendência britânica_ e a própria Inglaterra não reagiriam, os generais argentinos cantaram a vitória antes da hora. Logo, vieram os buques e os aviões da coroa, com soldados melhor treinados e melhor alimentados. A Argentina sucumbiu em algumas semanas. Quando o conflito completou 30 anos, estive pela primeira vez nas ilhas para fazer uma reportagem para o caderno Ilustríssima.
Os mortos do lado argentino, em sua maioria, afundaram junto com a nau Belgrano, mas centenas deles caíram em batalhas nas próprias ilhas, enfrentando os soldados ingleses. Depois da tragédia, muitos prisioneiros de guerra capturados pelos ingleses foram devolvidos ao continente. Por outro lado, os próprios habitantes das ilhas, sob o comando do general britânico Geoffrey Cardozo, começaram a criar o que hoje é conhecido como Cemitério de Darwin, porque era necessário enterrar os 237 corpos de soldados argentinos que tinham ficado pelo chão. Os generais do regime militar argentino diziam que estes não seriam resgatados nem entregues a suas famílias, porque tinham morrido lutando pelas Malvinas, e ali deveriam continuar. Os governos democráticos que se seguiram pouco fizeram para mudar isso. O máximo do que começou a haver foi a organização de visitas de familiares dos mortos a Darwin, para visitar as sepulturas.
Só havia um problema, elas não estavam identificadas. Como os garotos foram enterrados sem documentação e por pessoas desconhecidas, a maioria ganhou apenas uma lápide que dizia “soldado argentino, apenas conhecido por Deus”. Os poucos que levavam alguma identificação no corpo, ganharam placas com seu nome.
Até que, em 2016, já sob a gestão Mauricio Macri e em um diálogo proveitoso com o governo britânico, deu-se início a um processo longo de identificação dos corpos. Participaram a Cruz Vermelha, o Grupo de Antropologia Forense argentino, e profissionais das duas nacionalidades. A partir de 2018, começaram a dar resultados. Em duas etapas, conseguiram identificar quase todos os corpos que estão em Darwin, que então ganharam placas com nome e sobrenome. Apenas 10 ossadas ainda seguem sem ser identificadas.
Trocar uma placa sem nome por outra com nome pode parecer pouca coisa, mas não é, pelo menos não para as famílias. Antes, muitos familiares já tinham ido ao cemitério, mas como não sabiam a localização exata de seus filhos, irmãos, sobrinhos, rezavam em uma sepultura aleatória ou junto ao pequeno altar que há ali. Agora já não é mais assim. Em dois voos realizados pelo governo argentino nos últimos meses, dois grupos grandes de familiares, alguns infelizmente já muito idosos e com limitações físicas, puderam se aproximar e homenagear seus mortos no lugar exato onde de fato estão. O luto, para eles, está completo, o que não diminui a dor da perda, mas alivia. Afinal, muitos parentes morreram antes de saber a localização exata de seus seres queridos. Nos rostos dos que conseguiram estar lá para este momento era possível ver uma emoção imensa.
Em uma questão como essa, não se trata de disputar de quem é a soberania das ilhas, certamente ainda muitos governos passarão debatendo isso, uns com uma opinião, outros com outra. Mas identificar os mortos de Darwin era uma dívida de Estado com as famílias e com os que morreram ali por uma causa que não chegaram a entender bem. É um ato de humanidade, e é sempre bom saber que iniciativas assim, sem bandeira definida, seguem ocorrendo.