A maldição de Gabo nas telas
O mundo cultural entrou em polvorosa na semana passada, com a notícia de que a Netflix comprou, por uma cifra desconhecida, os direitos de levar o clássico do colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), “Cem Anos de Solidão” às telas em forma de uma minissérie. A empresa busca um novo êxito em espanhol, como a série “Narcos” ou o filme “Roma”, vencedor do Oscar de filme estrangeiro, entre outros prêmios.
O desafio a que a Netflix se propôs agora, porém, é muito mais difícil. Lembro-me de uma mesa sobre a obra de Gabo e o cinema, que mantivemos justamente durante o festival da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano, criada pelo Nobel, em 2016. Estávamos eu, o escritor Hector Feliciano e o crítico de cinema do “New York Times”, A. O. Scott. Em dado momento, perguntei a Scott o que ele achava das obras de Gabo já transpostas ao cinema.
Educadamente, ele não especificou as experiências até aqui frustradas, mas considerou que a obra literária do colombiano era tão cheia de imagens e de poesia, tão estimulante para a imaginação de cada leitor, que transporta-la à tela do cinema ou da televisão era muito arriscado. E propôs, por exemplo, que quem voltasse a tentar, que o fizesse com sua obra não literária, como o livro-reportagem “Noticia de Un Secuestro”, sobre os anos da guerra contra o narcotráfico (vídeo da conferência abaixo).
Obviamente isso não é uma condenação ao fracasso. Mas há indícios negativos que não podem ser ignorados. “Crônica de Uma Morte Anunciada”, de Francesco Rossi, apesar de gravado em Cartagena, não conseguiu captar a “colombianidade” da história, e “Amor nos Tempos do Cólera”, de Mike Newell, ficou parecendo uma novela de má qualidade. Pior, teve de chamar um ator espanhol, Javier Bardem, para que o filme tivesse algum alcance fora do mercado hispano-americano. O que chegou mais perto de ter algum êxito, ao menos de crítica, foi “El Coronel no Tiene Quien le Escriba”, dirigida por Arturo Ripstein.
O próprio Gabo, em vida, apesar de amar o cinema, havia dito mais de uma vez que “Cem Anos” não serviria para ser filmado. Qual seria o rosto do general Aureliano Buendía?, perguntava-se, ou o tamanho dos peixinhos que a família fabricava? Como filmar a cena do massacre dos trabalhadores da industria bananeira norte-americana, episódio sobre o qual nem os historiadores têm certeza do que aconteceu até hoje?
O fato é que “Cem Anos” é, justamente, um convite à imaginação para que cada um crie sua Macondo com as caras e trejeitos que cada um queira dar a seus personagens. A beleza de Remédios, a Bela, por exemplo, seria igual para um colombiano, um norte-americano e um europeu? Também é necessário ter em conta que o autor negou pelo menos duas propostas milionárias para adaptar “Cem Anos” ao cinema justamente porque não queria restringir a imaginação dos leitores.
Mas os tempos mudaram. E uma das justificativas da família para autorizar a gravação da minissérie sobre o livro, cujo lançamento está previsto para 2020, é que o formato, que permite que a história se alargue por muitos capítulos, daria tempo para que os inúmeros personagens da novela fossem bem desenvolvidos. Também foram impostas condições: a série será gravada na Colômbia, em espanhol e com atores que sejam do primeiro escalão do cinema e da TV latino-americanos.
Para os que gostam de Gabo e de sua obra, é torcer muito para que dê certo. Porque ambos não merecem menos do que uma produção que, no mínimo, esteja a altura do livro, uma vez que superar o livro é absolutamente impossível.