Argentina inicia outro ano de debate sobre aborto

Os lenços verdes (pró-lei do aborto) e os celestes (anti-lei do aborto) já voltaram a ser mostrados com mais frequência nas ruas de Buenos Aires. Amarrados às mochilas, enrolados nos braços, com as insígnias tatuadas ou pintadas nos muros da cidade. Isso porque, a partir de março, com o início do novo ano legislativo na Argentina, será possível apresentar novamente o projeto que descriminaliza o aborto até as primeiras 14 semanas de gravidez, apenas pela vontade da mãe.

Lenço e bandeira celestes, das manifestantes anti-lei do aborto (Foto Clarín)

Hoje, a legislação argentina permite o recurso apenas em casos de má-formação do feto, de estupro e de risco de morte da mãe. De todo modo, a chegada do dia 8 de março, Dia da Mulher, já está sendo esperada também para que os movimentos feministas de distintas correntes saiam às ruas. E o aborto não será o único tema, estão na pauta também a violência contra as mulheres, a igualdade salarial, o uso da linguagem inclusiva como oficial, e outros.

Mas 2019 já tem sua polêmica neste verão. Ela veio com um editorial do conservador jornal “La Nación”, publicado em 1 de fevereiro, com o título “Meninas mães com maiúsculas”. O texto apresentava casos de casos de menores de idade que, contra a vontade de suas “mães abortistas” (designação feita pela publicação) tinham preferido manter a gravidez, mesmo tendo 11, 12 anos, mesmo tendo sido estupradas, mesmo preenchendo os requisitos da lei já em vigor.

O texto do editorial dizia: “O relato dessas realidades nos faz refletir sobre o que é natural na mulher, o que vem de seu instinto de mãe e que vem de seus ovários ainda infantis. Elas disseram: ‘ninguém os tira de mim’, aferradas à vida engendrada em seus ventres.” O resto do artigo era um elogio sem fim ao que se considerava uma “valentia” dessas crianças.

O jornal “La Nación” é conhecido por sua linha editorial muito conservadora em termos de valores morais. Modernizou-se em várias áreas e temas, prega um liberalismo econômico, tem a melhor seção de cultura e comportamento do país e, em suas páginas de reportagem, dá lugar a uma pluralidade de vozes políticas até maior que seu concorrente direto, o “Clarín”.

Também é o jornal com a melhor cobertura web e com a informação sempre mais confiável.

Lenço verde, usado pelas defensoras da lei do aborto até a 14a semana (Foto Clarín)

Porém, em seus editoriais, temas como ditadura militar (termo que não usam), valores da família e aborto, são extremamente conservadores.

Tanto que, em 2015, logo depois da eleição do centro-direitista Mauricio Macri, soltaram um editorial pedindo anistia a genocidas de avançada idade que estavam cumprindo penas perpétuas em prisões comuns pela repressão do período militar (1976-1983). Penas a que haviam sido sentenciados pela própria Justiça argentina.

Internamente, houve um rebuliço. O principal repórter da casa ameaçou pedir demissão logo pela manhã. Os profissionais da Redação reuniram-se com cartazes dizendo não estar de acordo com o editorial. E o jornal, corretamente, respeitou isso. Afirmou publicamente que a linha editorial representada pelos artigos editoriais não tinha de ser compartilhada pelos jornalistas da empresa. Além disso, publicou uma matéria contando sobre a rejeição causada internamente no diário e exibiu uma foto dos jornalistas que se mostraram contra, protestando com cartazes.

Desta vez, com a questão do aborto, não foi diferente. O dia já amanheceu com vários jornalistas importantes do plantel divulgando nas redes sociais que suas posições não eram as mesmas que as mostradas no editorial. Logo, repetiu-se a cena da foto de grupo de jornalistas, a maior parte deles pró-lei do aborto, tirada na Redação e publicada pelo jornal no dia seguinte.

Concorde-se ou não com a linha editorial do “La Nación”, que não parece que vai mudar jamais, é saudável que, em um país cuja imprensa é tão parcial e polarizada, um dos mais renomados diários abra espaço para o dissenso entre seus profissionais. Nenhum jornalista pró-lei do aborto foi perseguido, demitido ou advertido, até onde se tenha registro. A linha editorial do jornal, porém, segue sendo a mesma.

Fora do “La Nación”, a reação também foi grande. Organismos como Anistia Internacional e Unicef se pronunciaram contra o editorial, assim como organizações feministas, afirmando inclusive que o texto pode sugerir que sexo com uma criança menor de idade pode ser visto com normalidade, até mesmo se for o caso de um estupro, que, na Argentina, muitas vezes ocorre dentro do círculo familiar.

“Não há que admirar essas meninas, e sim protegê-las e evitar o delito”, disse a Anistia em documento oficial. Em 2017, os dados oficiais mostram que nasceram 2.493 crianças geradas por meninas de 14 anos ou menos no país.

A Unicef ainda acrescentou: “a gravidez na infância não está vinculada ao instinto materno, é considerada abuso sexual e, portanto, é uma gravidez forçada. Os adultos são responsáveis em proteger as meninas e os meninos da agressão sexual, que é um crime.”

Os movimentos feministas adotaram a hashtag #niñasnomadres, que passou a circular como “trending topic” nos ataques ao jornal. Atores, intelectuais e famosos se pronunciaram sobre o assunto nas últimas semanas.

Se o governo Macri preferia não enfrentar um tema tão polarizador num ano eleitoral (há eleição presidencial em outubro e ele deve concorrer à reeleição), e deixar a discussão para o ano que vem, terá de mudar de ideia, porque a pressão para o debate legislativo com relação a esses temas femeninos já começou, com os dois lados muito ativos.